quinta-feira, 28 de julho de 2011

Contos Contados de Minas (4)

Bolo-roxo

“Bolo-roxo” nada tem a ver com um outro cavalo de mesmo nome, também de minha lavra e propriedade, freqüentador de outro dos meus redis. Deu-me muito prazer, embora dele não me lembre muito bem, talvez pelos poucos anos que eu trazia, à época de sua curta passagem pelos socavões da Fulminante, Serra feia, Brejo Comprido e cercanias. O nome, de ignorado batismo, era engraçado e não menos criativo. A pelagem pode ter lhe deixado, ou não, a origem. De tão diminuto, pelo nascimento prematuro, apenas mereceu ser trocado por um cacumbu de enxada, ambos, certamente, de pouca serventia aos donos daqueles sobe-e-desces de morros. De humilhação em humilhação, aquela miniatura de ser movente foi se fazendo adulta, até que, pelo que se conta, morte ignominiosa o veio colher ainda na pouca idade.
Para mais desdouro, o cavalinho dos tempos de eu-menino, foi carregado nas costas do Brechó, que, ainda rapazote, morava na casa de meus pais. Depois de homem formado, o Brechosão, como passou a ser chamado, de revólver na cintura, no Pântano dos coromandéis, e, mais tarde, detrás de um balcão de armazém, na Vila Guimarânea, me contava as histórias do Bolo-roxo, enquanto ria, desbragadamente, naquele seu vozeirão tonitruante, de pitador (mesmo sem pitar pito de palha e fumo de rolo) e, garanto, sem omitir umas reticências das brincadeiras que se reservara ao desmerecido animal.
o Dadinho, Geraldo de nascimento, filho do Geraldo, este compadre de meu pai e marido da Mãe-Maria (de quem me sobreveio, em menino, um apelido, por me ter dado de mamar, como era costume do lugar), também me contou outra malvadeza aprontada ao Bolo-roxo. Isso, acrescido do gáudio, ou “gáusea”, em dizer que ele próprio, de uma feita, instado pelo tio Tonico, cabritão que adorava um mal-cosido, jogaram o pobre animalzinho esbarrancado abaixo, para o desfrute do ridículo do tombo. Segundo sua viva memória, assim fora o combinado: ele, Dadinho, iria por uma banda da voçoroca e o safado do fanfarrão do tio, pelo outro lado, até o exato ponto e momento de assustarem o pobre eqüino, que pastava distraído, próximo do perigo. Retirá-lo de lá não seria tarefa dificultosa, considerados o pouco peso e a paga pelo espetáculo a usufruir
Entrementes, um tio meu, de porte avantajado, embora nem um tanto dado a troças, da mesma forma, como se conta, não deixou de ensejar uma desfeita ao apoucado animal. Montou-o sem sela, para arrastar os pés no chão, perante uma platéia hilária.
O Bolo-roxo me pertencia, assim como de minha mãe eram todas as éguas bastardas, nascidas nos pastos da fazenda, talvez para que os homens pudessem se safar de uma vergonha atávica em montá-las, ou pela quase nenhuma serventia, que não fosse a de parirem, de quando em quando, algum potro macho, para a lida do gado. Não me lembro se cheguei a desfrutar de sua natural mansidão e subserviência. Entretanto, sem ser de plástico ou de pano, Bolo-roxo foi um de meus raros brinquedos, com o qual alimentei vontades e imaginação, nos muitos momentos de criança solitária. Certamente, foi meu carrossel de carne e osso, em pelagem indefinida e bastarda, como se presume. Contento-me saber que era meu, o cavalinho de nome tão sugestivo.   
Dele retrato o que ouvi contar, de seus poucos anos de vida, de sua quase nenhuma valia, e de como morreu, de morte mais ignominiosa não pôde haver. Entregou o ânimo “encalhado”, entupido, constipado, sem conseguir trazer ao alívio da luz aquilo com o qual mais em vida fora comparado: um bolo de capim duro de campo, mal remoído e digerido, arroxeado da nódoa do pouco caso, no inútil esforço do evacuar.

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