domingo, 27 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (25)

            Coisas fáceis e difíceis 

Meu pai nunca disse para ninguém gostar das coisas difíceis, mas como sempre citava um de seus irmãos que gostava das coisas fáceis, parecia sugerir que gostava mesmo era das difíceis, em detrimento das fáceis. Qual a graça, a não ser um grande ensinamento relacionado ao afrouxamento dos ânimos, que se evidencia cada vez mais na atual sociedade de consumo, na qual se vê imperarem as muitas vontades, em prejuízo da cada vez mais pouca força de vontade.
Dizem que o império romano começou a se decompor devido às facilidades que cada vez mais tomava conta dos ânimos de seus cidadãos. O corpo humano gosta de sombra e água fresca. O trabalho duro, que não precisa ser apenas braçal, requer sair-se ao sol e suar a camisa. Ninguém pode negar que se valoriza mais o que se ganha com o próprio esforço, em detrimento do que outros ganharam, para deixaram como herança aos filhos. Os “filhinhos de papai” sempre foram mais perdulários do que os filhinhos de carentes, ou de quem não adotou a idéia de facilitar em demasia a vida deles.
No volume primeiro do ensaio que Alain Peyrefitte dedicou à China (“Quando a China despertar o mundo tremerá” (1973), o autor confirma a veracidade desse inconveniente da vida fácil: “À medida que o conforto aumenta, o nível de resistência à dor abaixa. Os aparelhos de ar condicionado levam à vulnerabilidade ao calor e os aquecedores domésticos ao frio e o progresso material à hipersensibilidade.(...) Pouco a pouco, se enfraquecem os mecanismos de autodefesa, que uma vida austera oferecia para proteger da doença e do sofrimento.”(p. 200-1) A sociedade chinesa, por enquanto, exemplifica esta teoria de que a vida fácil traz prejuízos sobre todos os pontos de vista. Os camponeses, sustentáculos das revoluções chinesas, assim como  em todas as partes do mundo, sempre foram mais rígidos nos costumes e menos gastadores do dinheiro que sofrem para ganhar. Os citadinos encontram o alimento nas prateleiras dos supermercados, enquanto aqueles o retiram, muitas vezes, da própria terra, que suam ao lavorar.
Assim, meu pai, instintivamente, procurava impor aos filhos sua prática de rigor, em comparação a pessoas da própria família que escolhiam os caminhos mais curtos para se chegar ao mesmo ponto. Bobo de quem assim procede, pensam os adeptos do conforto e do pragmatismo, teoria que ele, por ser quase analfabeto, nunca poderia tirar dos livros, mas de seu instinto e sobrevivência em contato com a natureza.
Lembro-me de que, numa certa ocasião, estando eu já cursando a universidade e ciente de que a vida difícil deveria ser colocada em segundo plano, pude fazer-lhe ver que sua maneira de pensar não mais se adequava  aos novos tempos. Estava ele fazendo uma cerca quando vim em visita à família nas terras onde morava. Fui encontrá-lo em pleno esforço de levar um tronco de árvore, previamente preparado para esticador de arame, para conter-lhe a força nos contornos da divisória. Um buraco também já tinha sido preparado de antemão para receber a madeira. Esticador e buraco se encontravam a uma boa distância um do outro, e meu pai usava uma pesada alavanca de ferro fundido, para, aos poucos, aproximá-los, com o revezamento de forças distribuídas nas extremidades do volumoso tronco.
Eu estava ali vendo aquele esforço sem poder ajudá-lo, ao mesmo tempo em que procurava uma idéia de como minorar-lhe o trabalho. A ocasião surgiu como se eu a tivesse feito chegar propositalmente. Naquele exato momento, passava ali ao lado o meeiro da fazenda, com quatro bois carreiros devidamente equipados com cangas, cambões e reforçada corrente, dessas de ferro que acompanham a tralha de um tradicional carro de bois. Ele estava a caminho de buscar algum galho de árvore seco nos pastos que servisse para fazer uma lenha para o fogão da mulher. Parei bois e carreiro, e disse a meu pai que aproveitasse a oportunidade para puxar o pesado esticador até o buraco. Bois carreiros deveriam servir, também, em tais empreendimentos. Meu pai, entretanto, recusou a ajuda dos animais e do empregado, ali disponíveis, e recomeçou sua estóica peleja. Fiquei pensando, à época, sobre o porquê de tão pouca racionalidade.
Por outro lado, minha mãe, também, parecia compartilhar-lhe a vida dura. Não tinha nenhuma precisão de extrapolar as atividades domésticas,  com uma penca de filhos a cuidar. Ainda, assim, encontrava tempo para ajudá-lo nas atividades externas e no trabalho pesado, mais reservado aos homens. Dizia sentir dó do marido. Este, mal acostumado com tais ofertas, desde os primeiros tempos de casados, passou a esperá-la para determinados trabalhos próximos à casa. A lida do gado, no curral, que começava já de madrugada, sem domingos, férias e feriados, era a mais desgastante. Acontecia, mesmo, de algumas vacas só aceitarem minha mãe para ordenhá-las. Por que não contratar alguém para ajudá-la, pensava eu. A explicação só podia vir daquela mania de querer provar para si própria que teria de dar conta de todos os serviços, custasse o que custasse. O contrário traduziria moleza, e ela, também, não aceitava vida de facilidades.
Diante de tais quadros, que qualquer vivente dos tempos modernos classificaria como irracionais, só se pode pensar que trabalho duro nunca diminuiu tempo de vida de ninguém, nem saúde e disposição para exercê-lo. O oposto se comprova com muita evidência. Dessas lembranças vem-me um texto curto, como alívio de consciência, e reconhecimento aos meus pais pelo que fizeram para facilitar-me a existência, com o exemplo da vida difícil:

Meu pai cumpriu seu tanto
de tamanho esforço.
Minha mãe, seu quinhão
de santo lenho.
Eu, de pouca coragem
e não mais empenho,
costumo parar para divagar
no meio do caminho,
sem ânimo, sem bússola,
as idéias em desalinho.
Nem tenho quase nenhum
apto engenho.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (24)

Professora primária

Do ônibus desceu uma mulher fragilizada, equilibrando sobre pernas endurecidas o peso da idade e o cansaço de um passado esquecido. Apoiava-se nos braços do marido ainda válido, que a acompanhava em suas tentativas de solução, pelas graças de Deus e por lugares sagrados, de males que o tempo costuma carregar. vinha ela cambaleante à procura de satisfazer necessidades prementes e naturais. Mais atrás e mais espertos, o restante dos passageiros e, por último, uniformizado e de crachá bem à mostra, o motorista, responsável pelo transporte do grupo peregrino. O lugar não era ponto de almoço, e teria sido melhor procurar, para tanto, outro paradeiro mais adequado. Mas aquela casualidade teria que ser frutífera, pelo encontro que estava na iminência de acontecer.
Por ali, também perdidos pelas estradas, atentos ao tempo e às  intempéries, ele e acompanhantes de viagem se encontravam no ato de um frugal lanche de estica-pernas. A coincidência era grande. Não porque ele a conhecesse dos bancos de escola, por muito pouco não fora também seu ex-aluno, mas por afinidades de que o reconhecimento o fazia devedor. Ela fora professora de suas irmãs, de mais parentes, aos quais as circunstâncias não favoreciam a procura do saber em lugares urbanos, como viria acontecer consigo próprio. Por isso, mesmo, teve, ali, a oportunidade de cruzar-lhe o caminho, e dizer-lhe o que havia muito gostaria de ter dito, que um ato de reconhecimento por serviços prestados urgia de ser externado por quantos dela houvessem recebido os imorredouros benefícios da educação.
Ela era professora primária, sempre fora, e se orgulhava de ter sido. Professora de roça, quase. Morara, para exercer seu magistério, em um lugarejo que, além da igreja, do coreto, da casa paroquial, da casa de escola, da “casa da professora”, da venda e de mais uns ralos casebres espalhados ao deus-dará, pouca coisa mais atraía a atenção dos moradores circunvizinhos. Havia, é claro, as datas das festividades religiosas, ocasião em que o padre aparecia para celebrar os ofícios divinos e cuidar das almas esquecidas. No mais, o movimento do arraial era o chega-e-sai dos meninos e meninas que ali vinham em busca dos ensinamentos da distinta professora.
Além de seus misteres de mestra das primeiras letras e números, ela ajudava o pároco no preparo dos fiéis para os dias de visita, e das festas santificadas, no catecismo dos domingos, nos arranjos da igreja, nas leituras dos evangelhos e na preparação dos sacramentos. Raras as pessoas em condições para os serviços litúrgicos. Quando muito, carregavam o pálio, sob o qual caminhava o padre, portando o santíssimo nas procissões dos devotos.
A igreja ou “capela”, como era mais conhecida pelos moradores do lugar, era o monumento de maior projeção, e garantia lugar central de “patrimônio” da Igreja Católica, doação do proprietário das terras que circundavam o arraial. Expressava, como geralmente acontecia, um reconhecimento da devoção a determinado santo, ou mesmo, um pagamento de promessa por graça recebida. Um sonho, um parto difícil, um filho salvo de doença grave, um milagre acontecido levavam a se erigir um templo, por mais simples fosse, ao santo da devoção. No caso, o padroeiro veio a ser Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. O padre, entretanto, que sabia ser São Sebastião o santo protetor dos animais e, por isso mesmo, mais propenso a ganhar donativos análogos no dia de sua festa, achou mais conveniente, para a Santa Madre Igreja, trocar o patrono do lugar. Que Nossa Senhora do Perpétuo Socorro continuasse a desfrutar da preferência dos mais antigos moradores, que reivindicavam a sua volta ao lugar de honra dos altares!
 Dona M. Guimarães, como era por todos conhecida, pois respeito se impunha, chegara naqueles lugares pelos idos de 1949, e, por anos e anos, pelo tempo de seus dias úteis, orientou, solícita, os filhos daqueles moradores quase analfabetos, nas primeiras letras e números. Apesar de ainda estar em vigor a prática da palmatória, tem-se pouca notícia, ali, de sua adoção como instrumento persuasivo.
A escolaridade das crianças previa três anos de duração. Em único recinto, reunia-se a totalidade dos alunos, cada um com o livro de leitura correspondente ao nível de aprendizado. Á medida que eles iam passando para o nível mais adiantado, repassavam o manual ao irmão ou ao parente mais novo. O grau de escolaridade final correspondia ao livro que chegasse a terminar. Cada volume, um ano escolar. Alguns alunos paravam no primeiro, outros no segundo e alguns terminavam o terceiro conclusivo. “Meu filho, estudou até o final do segundo livro de leitura”, já se orgulhavam os pais. Entretanto, poucos eram aqueles que davam seqüência aos estudos, em outro lugar mais adiantado.
 Todo esse mundo, lhe veio à cabeça naqueles poucos instantes de pausa para almoço, que nem chegou a acontecer. As pernas endurecidas tiveram que subir e descer escadas, com a pouco ajuda daquele que nem mesmo chegara a tê-la como mestra. O ônibus retomou a estrada e levou na fumaça um olhar de gratidão na pessoa de um de seus passageiros.
Resta a dívida. Apesar de lembrada com carinho por quantos tivera nos bancos daquela casa de escola, Dona M. Guimarães ainda não mereceu o reconhecimento devido, por parte das autoridades constituídas do município. Seu nome ainda sequer foi gravado em placa de rua ou frontispício de instituição de ensino. Os descendentes dos que dela receberam tantos favores, além dos primeiros passos por entre letras e números, poderão, assim, rememorar seus feitos e fortuna. Quousque tandem?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pensares a conta-gotas (48)

Até onde, entrando no mato,
Se vai, na mentira dos fatos?
Até a metade, diz, sábio, o vulgo.
Dali em diante, já não mais se sai.

Mentira a dentro,  mais mentira atrai.
Só a verdade, parece, entra, de fato,
Até o âmago do recôndito mato,
E, dali, só com ela, à frente, se sai.




Temos muito medo de viver.
A vida nos ameaça de morte,
Independente de sul, de leste
De oeste, ou de norte,
Que a solidão nos apavora,
E o sono nos abandona, sem hora.

À noite, na cama, insones,
Viramos de costas, de lados,
Preocupados com resultados.

Temos que nos esquecer
Dos pensamentos pesados,
Dos malfazeres criados.
Só, assim, nos sentiremos
Um pouco mais assegurados
De vivermos amedrontados.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pensares a conta-gotas (47)

De cima para baixo,
O mundo se vê
Dividido em partes.
O imenso abriga o grande,
Que agasalha o pequeno,
No contemplar mais amplo
O tamanho do terreno.

De baixo para cima,
As partes não se veem
Dividindo o mundo.
O estreito não abraça o largo,
O raso, o profundo,
O texto, o contexto,
No enxergar quem ao lado,
Necessita ser mais zelado.







Seria um solitário
Que não aprendeu
Suficiente coragem
De viver sozinho
Em seu mundinho
De ser refratário?

Seria um medroso
Nervoso, ineficaz
Que sem coragem
De rever sua imagem
De idoso incapaz,
É ambicioso no que faz?

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Contos contados de Brasília (1)

A lagarta e o Sansão 

Não por acaso, ganhou uma muda de Sansão do Campo. Veio de grupo de alunos que preparava um seminário sobre ecologia e resolveu presentear aos colegas e professor com uma muda de árvore, conseguida em viveiro da universidade. Chegou, pois, sozinha, o que não é muito comum, a não ser pelas circunstâncias da ocasião. Comumente, mudas dessa espécie não andam desacompanhadas, uma vez que trabalham quase sempre em uníssono coral, por sinal, bem numeroso. Digo trabalham porque se pensa no Sansão do Campo para cercar propriedades a possíveis fugitivos ou intrusos. Nesses casos, as plantas se enfileiram, crescem tão próximos umas das outras que mal deixam passar o vento por entre troncos e galhos. E os espinhos, de pontas aduncas, que parecem inofensivos e bonitos de certa distância.
No início, não sabia que aquela plantinha, verdinha, tenra e débil, merecedora de todos os cuidados no transportar, trazia em seu currículo genético tão fortes pendores. Desalojou-a de mirrado vaso, sem quase nenhuma terra e nutrientes, e transplantou-a para um recipiente maior, com boa terra e água abundante. Sem falar que lhe reservou um canto privilegiado da jardineira do apartamento. Nestas circunstâncias, restava ao novo morador crescer e fortalecer seus galhos e espinhos curtos e desafiadores.
Dias depois, o Sansão mostrava as verdadeiras qualidades genéticas e a que viera. Na primeira e merecida toalete, para ajeitar-lhe as folhas, o danado já revelou seu caráter ferino, aplicando no benfeitor um arranhão, de deixar lembranças pela falta de bons modos. Foi que este pôde comprovar sua real identidade. Ficou imaginando o desastre, se, no lugar de um , ali se perfilassem uma meia dúzia de valentes exemplares da sua espécie!
Quando viajou de férias, deixou avisados os de casa, que não esquecessem de dar água às plantas das jardineiras, entre as quais contavam algumas mudas de pau-brasil e ipês brancos. Os paus-brasil não eram desprovidos de espinhos, mas, estes, ele sabia que, somente mais tarde, iriam merecer cuidados especiais, quando já transplantados na natureza. Os ipês, coitados, eram inofensivos por natureza, e, desde sempre e para sempre, de flores efêmeras.
Um mês depois, ao voltar de férias, ficou boquiaberto com o tamanho do Sansão. As outras plantas cresciam lentas, certamente cuidando mais de seus troncos, do que de sua aparência e tamanho. Os espinhos do valentão estavam, agora, bem à mostra, como que dizendo: “cuidado, que, por aqui, passa vento e, assim mesmo, com bastante coragem e precaução.”
Vai , um dia, ele notou que um galhinho seco, um graveto, ajuntava-se a outro galho do tronco, a exemplo da hipotenusa aos dois catetos do triângulo retângulo. Aquilo lhe chamou a atenção pelo lado inusitado da ocorrência. Galhos de árvores raramente se ligam daquele modo. Observou melhor, e chegou, até, a apalpar-lhe a textura. Era macio, de coloração ocre-amarelada, contrastando com o verde vivo da planta. Demorou a compreender o mistério: era uma lagarta, o tal apêndice. Ela usava seu mimetismo para não se deixar levar a nenhum, ou ao primeiro olhar de malfeitor. O curioso é que ele não lhe faria mal algum, até porque tencionava mostrar aquela graça da natureza às outras pessoas da família.
Quando surgiu a tal ocasião, levou-as para diante do fenômeno, mas a lagarta não estava mais . Pensou que um predador desconhecido, mais bem informado, resolvera chegar primeiro ao pequeno animal. Mesmo assim, descobriu, com mais facilidade do que da primeira vez, onde estava o tal bichinho estranho. Tinha se mudado de lugar e de modo de camuflagem, abraçando-se ao lado oculto do tronco. Tocou-lhe novamente com os dedos, sem que sentisse de sua parte a mais mínima reação. Parecia morto de tão murcho. Certificou-se, então, que se tratava de mais uma estratégia de salvamento e o deixou, para ver se inventaria outras mais. A cada dia ele ia observando as suas artimanhas de sobrevivência. O mais intrigante em tudo aquilo era que não havia mais indivíduos, contrariamente ao que costuma acontecer com a família das lagartas, vorazes e numerosas.
Enquanto isso, o espécime crescia, crescia e mostrava nas garras o vigor de persuasão. Não se sabe que instinto destrutivo se apossou dele, o dono, que resolveu aplicar um jato de sulfa na incipiente árvore, para protegê-la de mais alguns outros parasitas, como algumas cochonilhas, por exemplo, que já o tinham elegido, como fonte de alimentação para si e a, também, prolífera família. Neste afã de proteção, a lagarta solitária não deixou de receber, impensadamente, uma boa doze de veneno. Horas depois ele a viu dependurada por um fio de seda, ao sabor do vento. Ficou entristecido com aquele gesto cruel, de ataque a um mero individuo indefeso que revelava tão aperfeiçoados dotes de sobrevivência.
Felizmente, para alegria sua, em visitas diárias, sem perturbar-lhe o sossego, ele a assistiu soerguer e procurar novamente seu habitat no aconchego do Sansão. Tinha curiosidade em ver até onde iria aquela engenhosidade. Mas a pobre lagarta não crescia, parecia não comer, como é próprio de outras da mesma espécie, animais devoradores por natureza.
E, assim, em um triste dia, ele não mais a viu. Procurou-a de todo o jeito, mesmo que somente para dar-se conta de que as técnicas de mimetismo do inseto não lhe passariam mais despercebidas. Não o encontrou, nem como galhinho seco, nem sob a forma de casulo, como seria o normal da conseqüente metamorfose. Não podia pensar em algum pássaro predador que o tivesse colhido em vida, na jardineira da janela de um apartamento.
Caso tenha conseguido sobreviver àqueles duros desassossegos, mudando-se de forma, para se livrar de curiosos ou de predadores, resta lhe tirar o chapéu, para tantas astúcias que só a natureza sabe tecer. Quanto ao Sansão, este vai ter que se mudar de lugar, custe o que custar, queira ou não, porque com a vitalidade e os espinhos de que é dotado, não vai se deixar domar pelo resto dos tempos. Nem Dalila lograr-lhe-á cortar a crista do orgulho.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (23)

História de carrapicho viajante


Não me largam do pé, ou melhor, das barras da calça, meus conterrâneos carrapichos. É sair no terreiro, vêm eles, irmanados, a me agarrarem com seus milhões de tentáculos. Depois é aquela peleja e paciência de Jó para retirá-los e devolvê-los ao terreiro, mesmo sabendo que cada carrapicho desgarrado são mais tantos outros carrapichinhos, iguaizinhos aos primeiros, insistentes e colantes, querendo se multiplicar, para continuar a existir e repassarem suas qualidades de plantas viajoras.
Não sabem falar, pedir, solicitar, gritar por ajuda, é claro. Isso não faz parte de sua natureza vegetal, e são discretos. Talvez, por isso, se grudem, assim com tanta força, na ânsia de trocarem de morada, procurarem viajar para perto ou, até, para bem distante. Acho que foi neles que se inspirou o inventor do velcro, sem conseguir, é claro, a perfeição da natureza. Esta, sim, pode até inspirar, mas jamais permitirá cópia fiel de suas artes ou manhas.
Os carrapichos são o exemplo desse apego. pode ser, que constituem população tão numerosa na face do orbe. Sem muita exigência, podem se adaptar a qualquer clima, a qualquer situação, a qualquer lugar ou país, que para isso nem carecem de permissão ou visto de entrada ou saída. Imagina-se um carrapicho sozinho, nas dobras de calça, de meia ou de cadarço de sapato, passando despercebido de qualquer inspeção mais detalhada de alfândega, de porto ou de aeroporto. Em chegando, nos destinos os mais imprevistos, por via de água de sabão, canos largos ou estreitos de alguma máquina de lavar, rios subterrâneos, como os de Paris, por exemplo, o carrapicho salta em terra e, solto, cria família. Depois, é enviar os filhos para mais outras partes do mundo e salvaguardar as heranças genéticas, desde sempre, cada vez mais ajustadas.
Inúteis? Nem tanto. Trazem em si, o remédio para muitas curas. Carrapicho de grama, estes, rastejam, para se defenderem de levar tantas pisadas na cabeça, e conservam mais do que outros de sua espécie ou família, em suas folhas pequeninas e redondas, os princípios ativos de aliviar dores as mais diversas. Para se saber a que vêm nas curas, pergunte-se às pessoas que vivem mais próximas da natureza e mais longe do comércio das farmácias.
Mas, voltemos à baila, para uma aventura ou viagem que se propõe contar, tendo como acompanhante de travessias o personagem de milhares de aderentes perninhas. Foi à França, mais precisamente a Paris, em passagem pela Fulminante, que tomei, sem saber, evidentemente, um carrapichinho de grama, como companheiro. Ele se apegou a mim, (afeiçoou-se?) que não me largou da calça, durante todo o percurso da viagem, que foi longo. Viajou a pé, de carro, de ônibus, de avião. Conheceu pós, poeira, fuligens e alturas. Agruras também.  Mas agüentou firme, no seu intento de levar seus dotes para outros lados do mundo.
(Imagino que carrapichos, ao deixarem os seus, para nunca mais se verem, o façam como aqueles imigrantes europeus e asiáticos ao se despedirem de seus familiares, para se fixarem em outras terras, continuarem existindo, se proliferando, conscientes de que a vida deve continuar em qualquer lugar. E estão sãos, salvos e bem contentes, em seus descendentes.)
O certo foi que quando chegamos, o carrapicho e eu, à cidade-luminosa, ficamos por um certo tempo sem sabermos o que fazer, onde morar e como nos portar diante das incertezas de todo chegante sem destino a lugar desconhecido. Meio , meio , desnorteado.
Somente alguns dias depois pude me desprender daquele, até então, incógnito acompanhante. Ao lavar a minha calça, empoeirada e suada, como bem se pode imaginar, pelos humores ali impregnados, de espaços variados, notei que um carrapicho me acompanhara. podia ser um daqueles representantes, habitantes do torrão. Meu instinto primeiro foi me livrar dele. Passei-lhe sabão na cabeça, esfreguei-lhe o corpo rispidamente, para que se desprendesse nas águas ensaboadas Pareceu-me relutante, mas era a impressão.  Desgarrou-se e tomou rumo da corrente, que de água era o que mais precisava, depois de dias a seco.
Foi, assim, o carrapicho procurar refúgio em alguma terra receptiva. Por deve ter renascido, criado família. Hoje, com toda a certeza, envia seus filhos para novos outros lugares do planeta, agarrados a alguma calça desavisada de passante, transeunte, como eu, amigo das distâncias.
E, assim, a vida flui, para eles, os carrapichos, como para nós, seus semelhantes, viajores, passageiros e, ao mesmo tempo, sempre resistentes à extinção, na continuidade dessa existência terrena.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (22)

Currais de tábuas e porteiras de varas

Pois é, ainda pequeno, ele já dava seus passeios a cavalo, por lugares que o pai dizia conhecer como a palma da mão. Saía da Fulminante e rumava por caminhos dos Caixetas, Capoeirinhas e “Trás-da-Serra”, para alcançar terras do Serrote, onde nascera o pai e ficara de herança para a irmã, conhecida no lugar, pelos parentes mais chegados, como Nonoca, cujo marido, inusitadamente, não trazia nenhum sangue misturado aos da família dela.
Ele ia, de leve, chicoteando o cavalo por aqueles retalhos e atalhos de caminhos, enquanto rememorava o roteiro prévio traçado pelo pai: “até os Caixetas não carece de mais explicação; depois, é passar o córrego assim-assim, pegar a porteira da direita, seguir pelo trilho que dá na estrada boiadeira e aprumar na serra, até defronte a uma casa de oito janelas azuis;  ganhar de novo a estrada, descer no regoágua, subir o morro e chegar no Mato-escuro; atravessado o mato, você vai avistar as terras do tio fulano; seguir pela beirada da cerca, (tomar cuidado para não beirar muito o arame farpado e machucar as pernas); passar a porteira na fazenda do tio Sicrano; não esquecer de fechar e puxar a tramela, e continuar até pular a linha de automóvel; as terras mais à frente são as do tio Beltrano”. Assim, de ir e vir, por adiante, o menino não costuma esquecer, mesmo que as explicações fossem um rosário de contas, sem contas. Nas porteiras de varas precisava apear para puxar o varal e tornar a colocar todos os varões, um a um, no orifício de onde saíam.
Nesse vai-e-vem, reconhecia as alturas e rompia os caminhos, as baixadas, os beira-córregos, as capoeiras e morros para acabar chegando na casa dos tios e parentes, depois de passar por casas grandes e pequenas, currais de tábuas e porteiras de varas, cancelas e colchetes, nomes que, por aquelas redondezas, lhe feriam os ouvidos para nunca mais se esquecer. Alguns cuidados eram por demais necessários, e as recomendações do pai, que sempre antecediam os passeios, se comprovavam deveras exatas.
Cavalgava-se muito, à época, à mexicana, ou à brasileira à moda do sertão, as pernas quase que soltas dos lados, o amontoado do corpo pesando mais sobre a forquilha dos quadris, do que sobre os estribos esticados, compridos, quase que para o caso de precisar montar e remontar o cavalo. Modo indígena, talvez, menos civilizado. Os arreios de cabeça favoreciam o segurar com uma das mãos livre, por precaução com algum inesperado solavanco mais brusco do animal. Um chamado “cutiano”, sem orelhas, sem muita firmeza às mãos e pernas, se apropriava mais aos adestrados peões, que podiam carecer de um salto ao chão, com a rapidez de mosquito a esfregar os olhos.
Costume de grande serventia para neófitos, como, no caso, era o estribo dos arreios ser de forma a não deixar que o atravessasse o arco e, assim, impedir, na ocorrência de queda, que se ficasse preso pelo e fosse arrastado pelo animal assustado. Também, o coxinilho sobre o arreio deveria estar bem preso por uma cinta, para amortecer o peso do corpo, sem escorregar e levar o cavaleiro da sela ao chão.
O pai recomendava, ainda, quando soltava o filho inexperiente na estrada, que ficasse atento às barrigueiras do arreio, sem deixar que este adiantasse ou atrasasse no lombo da montaria. Antes de apear e remontar, não se esquecesse de sempre verificar se a sela estava firme, os baixeiros permaneciam em seu devido lugar. Com arreios e arreatas seguros, cavaleiro atento cai se o animal tropeça, o que era difícil acontecer com a animália acostumada. Se se tratassem de burros ou mulas, a segurança redobrava, que tais cavalgaduras, de mais segurança, não trocavam os pés pelas mãos, colocando-os onde não deviam. Na dúvida dos caminhos, dizia o pai, bastava bambear a rédea e deixar o animal decidir, por si só, o que fazer, por onde passar, que caminho tomar, já que estavam bem adaptados a bandear por aqueles sobes-e-desces costumeiros.
Todavia, o andar a cavalo vira lembrança ou perde o lado rústico. As longas jornadas, a passeio ou a serviço, por lugares inóspitos, , quase, não se repetem mais. Os cavaleiros escasseiam, os animais já não são mais treinados a terrenos desconcertados. Os enduros, de agora, os tropeiros diletantes, em passeios agrupados, assistidos por todos os aparatos, que a   tecnologia e a segurança preconizam, se distanciam do viver daqueles tempos em que Guillaume de Saint-Hilaire descreve em suas “Viagens”. Montar era necessidade de tropeiros, no transportar víveres e mercadorias pelos sertões. Somente a saudade, ora, se aguça, ao se falar de antigos caminhos, currais de tábuas e porteiras de varas, beiras de regos d´água, monjolos a socar o tempo e o milho das horas certas.
          Para se dar ao prazer de uma boa e bela montaria, nada como a solidão das estradas, o reavivar da memória, o mugido das vacas enciumadas de seus bezerros tenros, do latido de cães guardiães de terreiros, do balanço de um bom cavalo, bem treinado e alimentado no capim meloso, com toda a vontade de vencer as distâncias, os suores, o vento e o sol dos calores.

sábado, 5 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (21)

            Água limpa e de água suja.

Valesse Nossa Senhora da Abadia da Água-Suja! As férias mal chegavam e tinham destino certo: ir para a roça, ajudar o pai na lida da terra. Daquela feita, o destino seria bater a “cultivação”, o roçado onde o capim ainda disputava espaço com o viço dos ramos, assa-peixes, leiteiros e o teimoso mato. Ficavam, lá, os dois, pai e filho, ainda miúdo, de calças curtas e botinas, sola de couro liso, sem meia, responsáveis pelos calos d´água nos nós dos dedos dos pés e calcanhares.
Corta aqui, corta , sempre atentos a brotos da erva tóxica, matadeira de gado. Quando vinha a sede, o jeito era matá-la com uns bons goles, sorvido sofregamente, derramando pela güela a baixo, escorregando pelo canto da boca, para justificar o enxugue no dorso da mão ou na manga da camisa, antes de repor a caneca na boca da cabaça. E recomeçar, é claro, o corta-corta-sem-fim, de acordo com o limitado pensar e a pouca idade do filho.
O sol a pino, o suor salgado, a escorrer sob o chapéu de palha para dentro dos olhos, os mosquitinhos “lambe-lamber” arreliando, a garganta secando. “Vai buscar a cabaçaágua.” Esta ficava escondida ali por perto, nas sombras dos ramos mais espessos, em meio a moitas de capim-gordura, que não a deixava perder o frescor. A caneca esmaltada, um tanto escalavrada de tombos levar, tapava-lhe a boca arredondada e lisa, “pra mode” evitar os ciscos e a curiosidade das formigas. Mas, cadê água! Cabaça vazia, sede chegada, apertada! “Vai no Santo Antônio, buscar água. Pega a cabaça!”
Não era preciso falar duas vezes, nem dizer para tomar cuidado com a vasilha, que se a deixasse cair e quebrar... nem pensar podia!  As pernas tremendo, dada a distância do rio, ia descendo, pensando na onça que bem podia sair do mato, ou querer também beber água, justo àquela hora, na mesma aguada. Ou medo de outros bichos, mais povoadores da mente infantil do que do próprio mato nativo. ia descendo, segurando a cabaça com cuidado, olhando onde pisava, conforme sempre costumava recomendar a mãe, para não tropeçar. Os sentidos na onça, o olhar atento, a imaginação a mil.
O rio distava e a descida era esconsa. Antes de chegar à beiraágua, havia a cava, por onde se descia até a corrente, e por onde se via a caudal. Por ali devia também descer a onça, na hora de querer beber água. O menino era medo, mas não podia falhar, e tinha que voltar depressa com a cabaça cheia, que o pai estava com muita sede. Do alto da cava, olhou a água embaixo, para primeiro conferir. Que alívio, a água estava suja. Sorriu, meio aliviado. Água suja ninguém bebe, somente animais, boi, bicho do mato que têm costume. Deu meia-volta e subiu o morro de volta, quase que correndo, as pernas leves, para dizer ao pai que a água estava suja.
A reprimenda não se fez esperar. “Volta e traz a água, depressa! Um pulo lá, outro !” Desceu, novamente, correndo, sem nem mesmo pensar na onça, e na preciosa cabaça que bem podia escorregar da mão e... partir em cacos e cuias. Chegou à cava, sentiu na espinha o frio que subia da água, o fôlego curto e o coração solavancando, aos pulos. Acocorou-se primeiro, depois ajoelhou-se à beira da água rumorejante do recôndito Santo Antônio, para melhor alcançar a caneca, com a qual encheria a vasilha. Retirou-a para confirmar a sua formada e primeira impressão. Não era ver que a água estava limpa!
          E aprendeu, a duras penas, a lição: água muita, água suja, água pouca, água limpa. Uma questão de quantidade e de fundo de copo, sem carecer de muita explicação. O encardido da vida, ora se suja, ora se limpa, dependendo do estado de espírito, ou do grau na precisão.