domingo, 30 de setembro de 2012

Contos contados de Minas (50)

Os bicames 

O bisavô morava longe da água, e precisava dela para mais perto, de preferência correndo em um rego, no terreiro da cozinha, de onde poderia retirar alguns “galhos” para alimentar a “horta de couve”, com as poucas variedades de hortaliças, ou levasse água para os porcos do chiqueiro. Um monjolo seria, também, de grande valia, embora sempre se pudesse contar com aqueles dos vizinhos e parentes, para o pilar do arroz e do café, o quebrar do milho para a farinha, o fubá, a canjica, a canjiquinha, e mais alguma coisa de imprescindível serventia. Era deixá-lo trabalhar o tanto que fosse preciso, à noite toda, se necessário, com a vantagem de ainda embalar sono e sonhos. Durante o dia, é claro, cuidava-se para não deixar as galinhas se aproximarem demasiado do pilão, na cata de algum grão que se soltasse do monte, no afã do soca-soca da mão do pilão, no coxo. Acontecia de algumas delas, mais afoitas e gulosas, quererem colocar a cabeça onde não eram chamadas e virarem sopa, antes da hora. Juízo de galinha sempre foi curto, como continuará a ser, por força da sábia Natureza.
Já, na casa de meu avô, o monjolo ficava próximo à casa, para onde se descia pelo caminho do rego. Beirava-se um longo coxo, cuja maior função era azedar o milho e facilitar o trabalho no pilão, ou decantar o polvilho, após ser lavada a massa ralada da mandioca. Nesse caso, dali se retirava a água já limpa, jogava-se fora, enxugava-se o decantado, e cortava-se os tacos a serem levados para a secagem ao sol, sobre lençóis brancos, no jirau. Ainda, sem percorrer toda a extensão do coxo, que se suspendia sobre tocos nivelados, dava-se no desvio do rego que levava água ao chiqueiro dos porcos. Uma pinguela o transpunha, e virava-se à esquerda, em direção à bica de água fresca, em cuja extremidade se enchia o coxo do monjolo. Quando no trabalho, não mais suportando o peso da água, a engenhoca deixava-se abater para jogá-la fora, formando o “calabouço”, poço onde crescia imponente inhamal. Ao voltar ao ponto do início, sua mão, no estremo oposto, socava o conteúdo do pilão. Aquela espécie de moto perpétuo, da água caindo, do eixo rangendo, da mão do pilão batendo era música a não mais se esquecer.
Conta-se que minha avó, por força do medo, que dizia ter de gente viva, não descuidava da casa bem fechada. Ao escurecer, antes de a luz fugir, tinha-se que correr portas e janelas, e taramelas. Um dia, porém, a porta da cozinha amanheceu às câncaras, para o quê não se encontrava explicação. Quem poderia confirmar que a taramela fora bem ajustada? Em um outro dia, a taramela não estava ao meio, como havia se deixado, e a porta bambeava. A luz só se deu, quando alguém atinou com a vibração do solavanco da mão do pilão, batendo forte, à noite inteira. A cada martelada, das milhares, uma fração ínfima de espaço na taramela também se deslocava. A casinha do monjolo não se achava, assim, tão próxima, mas o som surdo, que de lá chegava, as vibrações do terreno eram suficientes para fazer soar as xícaras, na bandeja sobre a mesa. O que dirá de uma tranca, havia anos se afrouxava, imperceptivelmente!
Por essas e por outras, um monjolo, próximo aos afazeres domésticos, era de grande utilidade nas fazendas da época e da região. Mas tudo dependia da água chegar, no rego. Nisso morava a dificuldade do bisavô. Para quem viaja no tempo e por lugares outros que os habituais do diário, em livros ou em corpo e alma, grandes feitos do passado costumam causar espanto, como o “Pont Du Gard”, no sul da França, obra dos antigos romanos.  Assim, os grandes feitos para se obtê-la, que deles sempre dependeu a sobrevivência.
Arma de guerra, quantas e quantos esforços para consegui-la e conservá-la! Cidades se entregaram ao inimigo que lhes cortara a fonte, e, conseqüentemente, a vida! Também os moradores de lugares inóspitos, de água escassa, não mediram empenhos, para fazê-la correr perto da porta, abundante e limpa, da bica ao pote.
Assim se deu, também, com o bisavô. A famosa ponte, que suportava o aqueduto que a encimava, respeitadas as grandes proporções, espelhava uns bicames que ele chegou a realizar, para alimentar o rego de sua morada. Havia o córrego, é bem verdade, que, ironicamente, passava nos fundos da casa, mas em desnível suficiente para não se permitir o transporte da água pela força dos braços. O vizinho, na mesma vertente do córrego, não deixou tirar, em suas terras, o tal galho d´água. Tamanhas maldades não era comum, a não ser que houvesse uma arenga entre ambos. Sobre isso, pouco se soube, nem precisou saber, como diziam os mais antigos. Era preciso, no entanto, retirar o rego da outra banda do córrego, nas próprias terras.
O bisavô, era pai de minha avó, pela minha mãe, e marido da “madrinha Borges”, ou Maria Eduarda Borges, “dos Borges lá de Uberada”, como se costumava precisar para evitar confusão com os “Borges de Formiga”, de onde vieram os de meu avô, Quincas Borges. Este era filho de Joaquim Borges de Oliveira, construtor de renome na cidade de Patos de Minas. Eram Borges da Rua Tiradentes, dados também ao comércio, aos cartórios, à imprensa, com fama de igrejeiros, rezadores. O lado comercial, segundo jocosas insinuações, vendia calças que, ao passarem diante de igreja, forçavam as pernas dos usuários a se genuflectirem. Maldades com roupagem de pilhérias, que aos poucos desvanecem.
Os tais bicames, montados sobre grossos troncos de madeira, espessas taboas, deixando derramar águas pelas fendas, duraram anos, até que as pazes entre Pintos e Caixetas, os deixaram apodrecer ao abandono. A água que transportaram, por sobre o córrego da Prateada, provinha de um açude que, mais tarde, também serviu ao rego d´água, que alimentou bica e monjolo da casa do avô Quincas Borges.
Quanto da quota de esforços, enquanto tudo poderia ter sido mais cômodo, caso os caminhos seguissem melhores traçados, e as águas escolhessem seu curso natural, se deve, como se deveu, à intemperança das pessoas em trazerem, moldadas na essência, o caruncho das madeiras enrijecidas na discórdia. Contudo, não deixava de fazer dos antigos, pessoas mais plantadas, com ânimos para realizarem grandes feitos.

sábado, 29 de setembro de 2012

Contos contados de Minas (49)

Adão

Este um nada tem a ver com o da Bíblia, que deixou descendência de parceira, retirada da própria costela (de onde mais?), já reencarnando bem e mal, a nos marcar de antagônicos sentimentos terrenos. No caso, o Adão era inofensivo, alma simples, herdeira de absoluto silêncio. Criança de inocências primevas, de alma já prometida às benesses celestiais.
Pode até existir mudo que não seja surdo, ou surdo que não seja mudo, mas nenhum desses era o caso do Adão de minhas lembranças, surdo-mudo, de nascença. Primo de minha avó, um tantinho só mais novo que minha tia, quando estes deixaram a zona rural pela cidade. Alugaram casa alta, arejada e antiga da, então, Rua Paracatu, larga de passar boiadas e bois brabos, de arribadas. Mais tarde, veio a ser avenida, com direito a canteiros e jardins, com árvores ao meio, bancos públicos para se jogar conversas fora, sem compromissos.

A casa de estilo colonial chegou, até, a ser destacada como patrimônio artístico da cidade. Duas janelas de madeira, um afastado, com janela sobre área interna, para deixar lugar à escada que dava entrada à sala, compondo a fachada, que estampava ares e tons de passado distante. Como frente, o lote ainda reservava portão de entrada para um corredor comprido, por onde se chegava aos fundos, certamente, usado para se passar a cavalo, lá pelos anos 1920. Do lado oposto ao corredor, um muro cercava os canteiros de hortaliças de minha tia, já depois de ali passarem a morar. As couves faziam vista às pessoas que procuravam se afastar dos agrotóxicos e comer algo que tivesse o gosto de saudade.
Além da sala, o quarto de visitas, o quarto do casal que dava para o salão, de onde se ia à cozinha e despensa. Contígua ao quarto principal, a extensão que os costumes coloniais reservavam às crianças pequenas, e às filhas solteiras, eternas infantes. Dali, os velhos poderiam ser observados, no sono e nas doenças.
O restante do terreno, nos fundos, era ocupado por uma casinha de despejos, pelo galinheiro, mais uns canteiros, para o plantio do alho, de grande importância na culinária caseira, pela cisterna e, bem ao canto do lote, distante do poço, pela “casinha” rústica, onde os moradores satisfaziam as necessidades fisiológicas.
Tudo isso, para dizer que os novos moradores, recém-chegados do campo, moravam bem em frente à casa da tia Rufina, do tio Osório e do Adão, que, por força da deficiência física, estava impedido de constituir família e deixar descendência. Perambulava pela vizinhança, que o conhecia, sobejamente, aceito nos seus hábitos infantis, inofensivos e discretos.
Ele tinha o costume de abrir a porta da sala das casas vizinhas, deixar as pessoas como as encontrava, tivessem ou não de conversas com as visitas, que ele não podia ouvir, e ir entrando direto à cozinha. Ali, o primeiro gesto que fazia era colocar o dorso dos dedos da mão na cafeteira de folha-de-flandres, sentir se o conteúdo estava quente, morno ou frio. Se quente, indicando que fora coado havia pouco, procurava a xícara, olhava se estava limpa, e servia-se. Para melhor saboreá-lo, se postava na porta da cozinha que dava para o quintal de muitos verdes, mirava o céu ao longe, cujas nuvens descortinava traços de azul profundo, e o bebia, vagarosamente. Terminado aquele ato corriqueiro, lavava a xícara, colocava-a sobre a bandeja, que ficava coberta por um forro de pano bordado, com a cafeteira e xícaras. Ele tinha curtas as vistas, e enxergava quase que só de um olho. Sentia cheiro, sabor, e, com o tato, se certificava do calor das coisas.
Isto feito, voltava ao ponto onde entrara, passava por entre as pessoas da casa e saía, como se nada houvera, como se a vida se resumisse a um entrar e sair, sem avisos e proibidos.
Assim, era a vida do Adão, que só carregava em si, além da roupa do corpo, a inocência, que Deus lhe dera de presente, conhecida de todos, que nem mais estranhavam ou comentavam suas atitudes. A mudez e a surdez ainda eram acrescidas da deficiência que trazia no olho. Uma pálpebra caída o fazia entortar a cabeça para verificar, na claridade, algum objeto que despertasse sua atenção, o qual era devolvido ao lugar de onde saíra. Das casas não carregava um palito de fósforo fosse. Só o sabor da liberdade lhe bastava. Uns biscoitos, que o apetecessem, comia-os com o café. Umas laranjas mais graúdas e lisas, descascava-as e chupava, sem que isso lhe despertasse mínima culpabilidade. Ademais, ninguém se preocupava com seu proceder. Nem por isso, a tia Rufina, deixava de ficar atenta a seus passos, e dele dava notícias às pessoas que não o conhecessem ou pudessem fazer-lhe mal, ou julgá-lo malfeitor.
Somente um caso curioso dele se guarda. O susto que pregou em uma mãe que o encontrou deitado à beira da cama do filho recém-nascido. Ela não o vira entrar e pensou tratar-se de um desconhecido, como, depois, contou. O que passara pela cabeça do Adão, em querer deitar-se ao lado de uma criança inocente? A mesma inocência os teria aproximado, sabe-se lá Deus como?.
Adão tinha alta estatura e magreza de quem passava o dia vagando. A família o fazia vestir roupas simples, porém limpas. O aparecimento dos automóveis, que vieram substituir o tropel das boiadas, cada dia mais numerosos, preocupava a mãe e outros da família. Temia-se que fosse atropelado em suas silenciosas e incontáveis travessias de ruas.
           Entretanto,os bêbados, as crianças e os inocentes, Deus ampara particularmente... O tempo acabou por levá-lo do convívio das pessoas, e a fazer esquecer aquela maneira peculiar de reconhecer o calor das coisas, pelo sentido que nele devia ser mais aguçado do que aos demais viventes.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (144)

A vida em Marte,
que ora tanto se procura,
com tamanha curiosidade,
e mais sinais de fartura, 
de fortuna e sofreguidão,
não estará nos começos,
como muito se imagina,
senão, em finais de usura,
em sítios esconsos, fatais,
escondidos e escuros,
envolta de ignotas,
remotas neblinas..




A racionalidade,
na irracionalidade,
de que ora se fala,
é prática da banalidade,
da marginalidade,
no preparo prévio
da maldade,
na procura insana
da ociosidade,
na desmedida agressiva,
da carência de visão positiva
da responsabilidade ativa.

sábado, 22 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (143)


Mexe-se onde
não se é chamado.
A natureza é bela,
como das abelhas,
o melado
já vem adoçado.




Não há como fugir de destino impresso,
e tudo que se paga é de bom agrado,
em decisões pouco tomadas em apreço,
sem resultados de grandes progressos.

O sóbrio sempre teria consolidado
soluções bem menos complexas,
que sempre comeu cru, o apressado,
roeu, o orgulho, o duro pão amassado.

Pensares a conta-gotas (142)

No diário do trato,
inexistem passado perfeito,
nem mais que perfeito.

Prescindem de gramática,
de modo indicativo, de subjuntivo jeito,
porque imperfeitos, na prática.

Os modos e os tempos estão presentes,
no ordinário, mais que imperfeitos,
do estrato evolucionário.

O futuro há de ser sempre semente,
carente, escasso de tempos e espaços,
e somente aos céus, evidente. 




Até quando, aqui,
oásis da injustiça,
ser justo é fazer 
política postiça?

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (141)


O moribundo olha vago o vazio,
e não alcança o além das nuvens
e do azul profundo.
Não fala, e está distante, mudo.

Sabe que, muito em breve,
vai ultrapassar o mundo,
delirante.

Pior, ainda, é ter a posse de si,
e as idéias claras
do que irá acontecer.
Mas não as tem.
A cada dia definha, finda,
e não há mais salvação,
para seu permanecer na vida.

Ele se despede, aos poucos,
quieto,
somente o olhar anuviado,
incerto.

Mas a morte não vem,
demora mais um tanto,
indiferente aos prantos.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (140)

Há de ser difícil provar
grão de areia ser igual
a mais grãos de areias,
nem o mundo ser igual
a outros infinitos mundos.

Pessoas nascem e morrem
na essência dessemelhantes,
na existência das carências,
que entendimento invisível,
não será, nunca foi possível.

Os conflitos são bancos de areia,
finos e feios, à mão cheia,
freqüentes, inevitáveis,
pelas leis divinas, distantes,
pela falência e falácias
dos homens delirantes.

Até quando, até onde,
em que mais dimensões,
por que mais proporções
de leis improváveis
a paz se esconde?

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (139)

Se amar é bom,
Deus é amor.
Se buscar o belo é bom,
Deus é beleza.
Se plantar o bem é bom,
Deus é bondade.

Se é bom ser natural,
Deus é natureza.
Se é bom ser normal,
Deus é normalidade.
Se é bom fazer amigos,
Deus é amizade.

Por que não acender a luz
e deixar a claridade
invadir o mundo,
se Deus é luz de tudo, no fundo?

Por que o homem
sempre perambular, sem destino,
entre bem e mal, em desatino,
e a vida ser tão curta e trivial?

Por que o coisa-ruim
existir eterno, carmim,
no inferno da maldade,
se as trevas renegam o nome
de Lúcifer, ex-chefe dos serafins?

A luminosidade da ciência
se fará fecunda,
no escuro das consciências,
e a humanidade assistirá, sem demônios,  
à harmonia profunda.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (138)


Tenho, até, certa curiosidade
em saber
o que haverá para além
do viver.




O que traz a glória,
se antes da vitória
vieram batalhas
inglórias?




Escrevo para mim,
de meu esforço,
que me vejo
moço.


domingo, 2 de setembro de 2012

Pensares a conta-gotas (137)

Lembrando Drummond

Mini-versos
Mini-textos
Mini-gotas
Nano-minis
Nano-tudo
Mini-mundos
Pluriversos
Bem diversos.




O que restará de mim,
senão meus mins,
misturados a mais
pós de Joaquins!





Irmãos por acaso
amigos por opção
amores de ocasião
amares  por doação




Lamentos,
voltas ao passado,
de sentimentos
ultrapassados.


Fugir?
Para onde mais?
Para Marte, tão ali?
Para qualquer parte?
Ou para dentro de si?