segunda-feira, 29 de março de 2021

Migalhas de Mim (86)

 

Ideo-gramático

 

De bem longe, distante mesmo, a esmo,

minha figura mais parece ponto perdido

no mundo dos espaços das alturas, rotundos;

ou dois pontos lembrando meus olhos,

como que acesos no escuro profundo;

ou meus ouvidos, aspas de atenção aflitas;

ou minhas narinas, tremas de tremuras tais;

ou meu coração, travessão de queimaduras;

ou minha alma, vírgula na textura infinita;

minha presença, complexa, acento circunflexo;

minha coragem, ponto de exclamação suspenso;

minha mente, ponto de interrogação imenso;

minhas pernas, colchetes de enredadas incertas;

meus braços, parênteses abrindo e fechando espaços,

minhas mãos, pontos-e-vírgulas ou reticências;

ou meus atos, meu tudo, meus acentos agudos;

minha vontade, acento grave de pensares estáticos,

a se acentuarem, de corpo inteiro, dia/gramáticos.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Migalhas de Mim (85)

Tudo enxergo dual,

e me locomovo,

em duplicações:

 

Há pertos e longes,

desertos e mares,

passos e descompassos,

alegrias e lágrimas,

contratempos e sorte,

vigílias e sono,

abundâncias e carências,

reencontros e saudades,

alertas e letargias,

rotinas e novidades

em quantidades.

 

Até os enamorados

se amam e se duplicam,

em estreitas parcerias:

 

Sem barreiras e controles,

medos e covardias,

faltas de tempo e permanências,

dores sofríveis e intensas,

esperas curtas e longevas,

laços frágeis e passageiros,

amor carente e silêncios,

ânsias soltas e envolventes,

desejos insaciáveis e insatisfeitos,

vidas que vão e não voltam, 

continuamente.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Migalhas de Mim (84)

 

Bucólica

 

Orvalho da manhã,

aveludado mel do capim,

eu saio, eu saio, eu saio

antes do sol, atrás de mim!

 

Sereno da madrugada,

deixe-me, sozinho, ir,

andar, por aí, tomar alento,

sorver frescor do suave vento!

 

Não me deixe, porém,

perder-me no ar,

sem o resguardo da aragem

de anseios e contentamentos.

 

Busco momentos amenos,

ânimo igual a comedimento,

que revigore minha imagem 

e bem-estares dessas paragens.

 

sábado, 13 de março de 2021

Migalhas de Mim (83)

 

Dos milhões que já morreram,

morrem, desaparecem, se exalam

em campos de batalhas e maldades,

só se conhece o relato inexato

na com/versão dos sobreviventes

das inenarráveis atrocidades.

 

Nas guerras que ainda virão,

não quero estar, com toda a certeza,

entre os que morrerão de heroísmo,

para admiração, como se dizia,

dos que não morriam por paixão:

“Ave Caesar, morituri te salutant!”

 

Os monumentos, “ai caduti”,

e aos que não mais voltarão das lutas,

comprovam o desconhecimento

dos salvos-condutos do fatalismo da sorte.

A história é uma, para viventes aflitos,

outra, para caducos dos conflitos.

 

Quem escreve as tais memórias?

Quem se vale de supostos elogios

aos caídos que não conheceram?

Quem sabe das vidas sem identidade?

Quem as ouviu contadas pelos vivos,

sem coroas de flores das solenidades?

 

Do que se escreve das absurdas mortes,

nunca se saberá de nascedouro confiável.

De nenhum santo ou soldados tombados,

incógnitos de ares carentes “condoídos”,

ainda não se revelaram razões de bondades

dos martírios ou velas acesas de altares.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Migalhas de Mim (82)

 

O rio caminha lento,

de tanto vagar,

ora sobe para o céu,

ora se solta no ar,

em buscas de passagens

para o mar.

 

Cavouca aqui, fura ali,

remove pedras,

paredes de montes.

Nada o demove do intento

até encontrar como passar,

e chega, pois tem que chegar.

 

Toda viagem de rio é assim,

perfura, corre, deita e dorme, 

num rebuscar de caminhos.

Na terra, no ar sempre há lugar

para começo, meio, fim

e recomeço no mais navegar.

 

Com águas de rio,

de ar, de suores de a-mar

não há entraves ou encalhes,

até nos tropeços dos vagares

com a certeza de chegar

e, sempre-sempre, retornar.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Migalhas de Mim (81)

 

Ninguém é feito

para viver sozinho,

a se pensar devagarinho.

 

Pais e filhos nascem,

mãos e pés juntos,

irmãos se amparam, mútuos,

irmãs convivem, desarmadas,

amigos e amigas se abraçam

e fogem da solidão que mata.

 

Amor é entrelaçados elos

de correntes presentes no ninho,

de carícias, afetos e carinhos.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Migalhas de Mim (80)

 

O que sou?

Sopro de Deus

no barro de Adão?

 

O que sinto?

Bafejo da sorte,

que cala no coração?

 

O que penso?

Enigma imenso,

que nem vislumbro solução?

 

Como saber desse mistério

de viver no desconhecido

do que sou, sinto ou penso?

 

Pudesse, à mão, abrir uma fresta,

nessa cortina de nuvens,

que me turva a visão, 

sem explicação!