Conto acreano: surra de caba, picadas de abelhas
Minha mãe ouvira dizer que picadas de abelha
curavam reumatismo. Já experimentara quase todos os remédios, que pessoas, em
geral, lhe prescreviam, mas as dores nas juntas persistiam. Já provara de um
pouco, o tudo: banha de cobra de cascavel, sebo de carneiro, manteiga de
capivara, carne de tamanduá bandeira, além de não deixar de fomentar as
articulações com o pé de perdiz embebido em álcool ou em cachaça alcanforada.
Esses e tantos mais remédios caseiros, rezas e unguentos, ela dizia terem sido os
responsáveis por continuar existindo até aqueles mais de noventa anos. Mas se
algum alívio sentia, de pouco adiantava, embora insistisse em dizer que
acreditava mais em suas mezinhas de folhas e raízes, do que nos medicamentos de
farmácia, receitados por doutor que, segundo ela, pouco entendia de dores,
sobretudo em caso de primeiras necessidades.
Uma ocasião, enquanto secava ao sol o polvilho no
jirau, observara as abelhas vibrantes, à procura do amido para seu fabrico de
mel ou resina. Veio-lhe, então, à ideia, o tal recurso, ensinado por alguém, de
quem não mais se lembrava, como lenitivo de suas dores de reumatismo: ferroadas
de abelha ou de marimbondo. Polvilho ou farinha de mandioca no jirau, se pôs a
irritar a paciência dos laboriosos insetos, para ver se reagiam e lhe aplicavam
as milagrosas ferroadas. Mas as abelhas estavam distraídas no seu quefazer e
não correspondiam à provocação. O que ela não compreendia é que os insetos não
tinham nenhum motivo de magoar alguém, assim, gratuitamente, uma vez que se condenariam
à morte, ao largar-lhe parte dos intestinos na pele, sem prestar algum benefício,
à comunidade, o que não era bem o caso.
Aí, minha mãe exagerou na dose dos desaforos e
começou a espremer algumas delas que não tiveram outra escolha senão
aplicar-lhe umas quatro ou cinco boas aguilhoadas na pele fina das extremidades
superiores. Ela sentiu o quão caro saiu-lhe a ousadia. Suas mãos ficaram em
fogo e o inchaço demorou dias a desaparecer. O reumatismo nem tanto, ou, nunca
se soube bem, Esperasse um pouco mais de tempo rememorável.
Essa lembrança faz-me contar, também, outra
experiência com picadas de insetos, mas desta vez com vespas, ou marimbondos,
que, por essas vastidões de terras e de línguas acreanas, vêm a ser chamados, sem
quaisquer simpatias, de abelhas ou cabas, nessas afastadas paragens.
Isso foi lá pelos idos de setenta e oito.
Mostrávamos, orgulhosos, os arredores da cidade de Rio Branco a um renomado professor
de linguística, que viera ministrar um curso no Departamento de Letras da
Universidade Federal do Acre, UFAC. Como o clima exigia, naqueles recantos
amazônicos, vesti-me com bermuda e camiseta para o passeio. Lá pelas tantas,
passamos diante de uma propriedade rural, que ostentava um belo exemplar de pé
de manga nas proximidades da casa. Quase ao alcance da mão, uma manga
madurinha, e.... única, como que a implorar, por mãos ávidas e curiosas,
“apanha-me, por favor!”. Resolvi colhê-la, então, para demonstrar ao caro visitante
que a natureza, por essas bandas, também era pródiga e hospitaleira.
Assim, pulei e dei um tapa na tentação daquele
desafio, e não sem razão. De fato, ele ocultava do lado escuro da fruta, uma
caixa de marimbondos, que ao se sentirem atacados, não tiveram outra reação
senão a de agredirem o agressor, e descerem como numa nuvem negra sobre sua
cabeça e onde mais encontrassem espaços desprotegidos de pano. Saí rolando
ladeira abaixo, dando-me tapas, por onde alcançassem as mãos, na esperança de
espantar os tais nervosos insetos.
Felizmente os marimbondos não eram dos mais
perigosos, e, eu, não ser alérgico. Pouparam-me, por certo, o rosto, embora
nuca e costas, tronco e pernas tenham ficado incendiados. Umas duzentas picadas
pareceram razoáveis ao funcionário da farmácia, onde comprei um Caladril, que
me aliviou um pouco o efeito do veneno. Um termo e uma expressão linguística
foram-me acrescentados ao currículo, do vocabulário acreano, dos quais,
dificilmente, vou me esquecer: “levei uma surra de caba”.
Mas, ainda, voltando ao assunto de picadas de
abelha, uma dessas simpáticas criaturinhas apareceu-me, um dia, em visita na
biblioteca, enquanto viajava, costumeiramente, por entre livros. Parecia
perdida, atrás de um cheiro açucarado qualquer. Não trazia sinais de irritação,
nem vontades agressivas. Propus-me, então, a desviar-me a atenção do que estava
fazendo, e, sem outra inspiração para o momento, resolvi oferecer-me para uma
injeção inusitada de veneno de abelha, a já propalada prevenção do reumatismo.
Só que não sabia como fazer e onde aplicar a tal toxidade, tampouco, o lugar mais
apropriado do corpo a oferecer, que doesse menos. Como não me encontrasse,
desta vez, de bermuda, levantei a perna da calça além do joelho, por julgar que
a pele que cobre a rótula seria o lugar mais infenso à dor. Além de tudo, a
barra da calça, àquela altura, poderia enforcar a circulação, e, quem sabe, diminuir
a sensação que já sabia ser desagradável, de todo modo, intensa.
Peguei a pobre criaturinha, que estava ainda por
ali, perdida no seu zumbir inexplicável e inofensivo, e obriguei-a a desferir o
seu dardo, que a natureza tão bem soube confeccionar, para que, ao entrar na
pele do agressor, não mais saísse, a não ser trazendo consigo parte do
intestino do animalzinho. E, assim, foi. Passada a dor inicial, uma vermelhidão
foi se formando ao redor da picada, que não inchou muito, porque o local não
era de muita adiposidade. Mas nos dias seguintes, fiquei que não podia andar
direito, tamanho o efeito devastador na articulação endurecida.
Se veneno de inseto, abelha ou caba, for mesmo bom
para reumatismo, posso estar seguro de que este não me atingirá tão cedo.
Valha-me Deus e Nossa Senhora da Ajuda, que passei a respeitar esses bichinhos
tão diminutos, e temidos, até por animais de grande porte. Benfeitores na
Natureza, como tantos outros e tão dignos de respeito!