quarta-feira, 30 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (102)

A pessoa traída, diz-se,
é a última a saber, do ato,
ou a primeira a fingir
de nada saber, do fato?
O “infiel”  não se esquece
que, rápido, o tempo se esvai,
e o mandamento evanesce


Se o amor é exemplo
de mero passatempo,
não investe sentimentos
e quando gera é leve mágoa,
que muito célere desaparece
como se fosse  
riscos na água.




Mulher grávida, doente!
Qual o quê, nem há o de quê!
Remédio, não bebe,
nem precisa beber.
Saudável, ela está defesa
pelo simples conceber.

A cada gravidez
mais anos acrescenta
à longa existência.
Saúde vem de mercê,
com toda a avidez do rebento
em querer sobreviver!

Mulher grávida doente!
Só se for de inocente
                   dor de dente.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Contos contados de Minas (45)

Manuscritos, lousa e lápis de pedra

Não apenas Gutemberg conhecia bem as dificuldades, talvez as impossibilidades para muitos de ascenderem ao conhecimento, à leitura e à escrita, em função de não disporem dos instrumentos democráticos que levavam a esses bens. Desde a invenção da tipografia, anos antes do descobrimento do Brasil, o livro vem sofrendo mudanças, do papel ao pano, do plástico ao cristal líquido, das telas de computadores, Ipeds.
No início da imprensa, despendia-se tempo elástico na produção de um livro. A Bíblia foi aquele que teve a primazia da facilitação da leitura, proporcionada pela nova tecnologia. Até os anos trinta do século passado, a menos de cem anos de agora, quantos livros e quantas casas de edição existiram, só no mundo luso? Entretanto, no interior do Brasil, ainda se usou o manuscrito, em salas de aula, por essa mesma época.
Minha tia guardava a sete chaves, de um passado não tão distante assim, um desses livros escritos a mão, que utilizou na escola rural de sua região. Por diversas vezes, em criança, eu pude manuseá-lo com interesse e curiosidade, para me dar conta, em adulto, de como grande parte de brasileiros aprenderam a ler. Datado de antes de 1943, o referido manuscrito, que guardo comigo, como lembrança e peça de museu a ser mostrada aos descendentes, apresenta as mais diversas grafias. Algumas caligrafias, de tão bem cuidadas, outras grafias nem tão legíveis assim, que prepararam as crianças para decifrarem, como se pensava naquela época, documentos e cartas, chegadas dos mais diferentes endereços.
Afirmar que a grafia manual estará fadada ao desaparecimento seria como acatar também o desaparecimento do livro de papel. Entretanto, nem todo mundo grafa bem, por mais esforço que se possa fazer. Manuais didáticos separam a caligrafia da eugrafia, e esta da disgrafia, para conceituarem a bela, a boa e legível, e a grafia ilegível, por péssima. Daí, poder-se concordar com psicólogos que procuram estudar as personalidades, com base em seu produto gráfico-manual. A grafologia não deixou de ser uma ciência, que, ainda hoje, tem serventia, até para deslindar os mais escuros mistérios da alma, e elucidar crimes.
O tempo passa e com ele os livros manuscritos. Em criança do interior do Brasil, há menos de meio século, remexi em guardados de meu pai, e desvelei uma lousa e um caco de lápis da mesma pedra polida, que usava para seus primeiros rudimentos de escrita. Encontravam-se, ainda, em um pequeno e surrado embornal, do tamanho adequado ao da lousa, uns quinze centímetros por vinte, que os alunos carregavam dependurados ao ombro, para exercitarem nas contas que o professor prescrevia. O lápis, sobretudo, exigia grandes cuidados para não se deixar cair e quebrar. Antes de usá-lo impunha-se saber pegá-lo com os dedos posicionados próximos à extremidade inferior, sem forçá-lo demasiado. Como livro de leitura, o manuscrito. Em alguns lugares, a rigidez dos professores se traduzia no uso da palmatória, cuja etmologia lembrava a palma das mãos onde era aplicada. Alguns alunos, com mais dificuldade de aprendizado, ou menos dedicados às artes da leitura e escrita, a experimentaram para nunca mais se esquecerem. (Esse malfadado instrumento, por tão cruel, moral e fisicamente, veio a servir, tempos depois, a torturadores de pessoas que não comungavam das ideologias vigentes).
A era dos computadores e da digitação viria, supostamente, apagar a possibilidade de se usar a grafia manual. Cartas escritas e enviadas em envelopes serão coisas do passado, presentes apenas nas páginas de romances, quando se deixavam abrir com espátulas prateadas para revelarem mensagens carregadas de emoção e amor, avidamente lidas, relidas e guardadas em relicários de saudades. Felizmente, professores ainda insistem em uma eugrafia, e para isso é preciso manusear bem lápis. Computadores portáteis, apoiados sobre joelhos, em sala de aula, tablets, Ipods e Ipeds estão aí para desafiá-los. Fala-se na falência dos livros impressos. Estes, segundo alguns, jamais deixarão de ser admirados, amados cheirados, pois que carregados de odores, que somente os leitores sabem identificarem. Quem não gosta de dizer, com imenso prazer: “esse livre é meu e dorme com meus sonhos”?
A escrita manuscrita, apesar de exigir todo o esforço para ser lida, muito ainda pode nos ensinar de valores das artes manuais e da expressão de nossa personalidade. Calcamos, nela, nossa alma, nossas idéias e sentimentos. A informática, por mais que se esforce, não deixará de ser fria, mesmo que facilitando nosso dia-a-dia. O calor da alma, porém, vem do fundo do peito, refletido nas páginas de um livro de papel e tinta, tipografado ou manuscrito.
           Dona Inês, ex-moradora de outra beirada das Minas, dos altos de seus noventa anos bem vividos, ainda guarda, orgulhosa, sua lousa de ardósia, e o toco de lápis da mesma lava, para mostrá-los aos quantos curiosos sobre os velhos tempos de escola de roça. Lamenta, contudo, ter perdido seu manuscrito. Mas a saudade dos primeiros tempos a recompensa de boas lembranças.

sábado, 19 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (101)

Quanta dor, quanto sofrimento,
quanta morte, quanta injustiça, quantos tormentos,
o butim da construção desses belos monumentos,
onde, agora, rezo arrependida e sofrida oração
aos quantos pisoteados Josés,
e às tantas Marias penitentes, sofredoras, ralés,
que pariram os mortos do Poder, da vaidade e da ambição.

O que vale a admiração
de tanta beleza, de tanta arte,
de tanto empenho, de tanto engenho,
se renego os quantos atos insensatos
que se fizeram de sangue pelo trabalho bruto,
e o sofrer das gentes, até o morrer por inanição,
indigentes?

Rezo solitário, no descampado dos cerrados,
pela cartilha do natural rosário de recatos,
onde a presença do homem ainda é rala,
porque ainda sem o exercer, autoritário,
do poder de destroços das usinas,
das perdas, das dores, da sina,
do luto das ruínas.

Mas, a natureza e as energias as mais limpas,
as mais harmônicas, as mais justas e nobres,
não haverão de escapar ao instinto fatal
desse homem corrupto, de espírito pobre e letal,
acostumado a converter jardins em desertos,
por razões de essência e existência,
por atos de insânia completos, tidos como certos.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (100)

A guerra, a cólera, a raiva, a sanha,
o furor, o ódio, o rancor, a dor,
tudo o que há de pior na manha,
da ojeriza tamanha, que enraíza
coletiva, nos talhos do lenho,
nos lanhos, no centro dos ganhos,
autorizam, ao fero inimigo,
Iniciativas de danos tamanhos,
bactérias que matam sem dó,
com grandes prejuízos dos juízos,
em nome de injustos motivos,
amalgamados a pós de fermento,
endurecidos no cimento corrosivo,
dos ressentimentos defensivos.






Intelectuais já nascem vaidosos,
e se revelam em grupos assaz ruidosos,
quando se excedem em assuntos,
por demais belicosos.

Quem não chega a ser doutor, no conjunto,
mesmo com desempenho de louvor,
como, normalmente, se exige e se troveja,
rumoreja, apenas, como as folhas ao vento,
sem o reconhecimento da seleta platéia,
como se títulos tais fossem os únicos avais,
para a produção dos conceitos originais.

Essa infeliz vertente vige e se propala,
nos templos acadêmicos universais,
onde as consagradas idéias,
provêm de aciduladas assembléias!







domingo, 13 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (99)

Santo e santos,
glória e glórias,
hosana nas alturas
das sacras escrituras!

Nem sempre são exemplos,
os santos, da vida terrena.
Desmancham prazeres,
constrangem crenças e favores, 
cobram e vagam a esmo.

Pouco se compadecem,
nas preces,
e exigem mais dos demais
do que de si mesmos.

Julgam-se seletos merecedores
dos gozos celestiais,
condenam os pobres pecadores,
seus opositores,
a castigos eternos no inferno.

Entanto, sabe-se,
por manifesto,
que apenas pecam aqueles
que contra os demais pecam.


   


Ninguém se sentirá obrigado
a tolerar a intolerância presente
nos santos terrenos,
hostis ao pecador penitente.

Assim, é preciso ser
um pouco menoscruel”,
da parte dos que buscam
os favores do céu.

O dito “infiel”, porém, é indulgente,
menos exige do intransigente revel;
por mais flexível, está mais exposto
às muitas exigências dos gostos.




Quantos santos são mais do que santos,
que os santificados santos dos altares?
Esquecidos propositais, aos milhares,
não se enquadram nos requisitos legais.

Melhor ficarem a um canto, os benfeitores,
desprezados dos rituais irracionais,
para dissabor dos senhores papais,
dos favores de credores sobrenaturais.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (98)

Que Deus não se ofenda
com tantas indagações!
Mas há de sobra razões,
para se perguntar,
com mais razão e critério,
por que tantos mistérios
a nos levarem de roldão
a caminho do cemitério?

Deus nunca foi, nunca será.
Tudo, nele, étempo e lugar,
como em um qualquer de nós
que almeja sempre viver
para sempre durar.

Por que sempre se exaltar,
uns mais, outros menos?
Somos donos do terreno,
sem curvarmos a cerviz,
sem nos impor diretrizes,
para chegarmos lá, onde
nunca se haverá de chegar.

Por que não se poder conceber,
como exemplo, a nos guiar,
Deus, como pai, Jesus, como filho,
o Espírito, como santo da luz,
e nós, pobres humanos,
como criaturas longe da cruz?

Nossas imagens são bem comuns,
semelhantes a templos e moradas,
com um antes, um agora, um após,
em sempr´eterna caminhada,
sem largada, sem chegada, 
sem tantos incentivos de viagens
com algumas certas paradas?

terça-feira, 8 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (97)

Na gaveta, o tempo
desencava guardados.
Depois, depois
de muitos depois,
amadurece o tempero
dos vários achados,
que vão se entranhando
em folheados apontamentos,
que trazem ao lume
os todos sentimentos,
satisfações, emoções,
até descontentamentos.




Nova linguagem nas contas,
novas formas, novas cores,
novas memórias, novos valores,
novos estados, novos rituais,
longe dos sequazes do ganho
e seus altares de amores. 

Somos, todavia, em tudo, desiguais,
ó artistas das lembranças escultores!
moradores de terrenos universais,
de bens sempre duráveis, novos lares.

sábado, 5 de maio de 2012

Pensares a conta-gotas (96)

(Desejos)

Entrelacemos nossas raças!
Permutemos nossas claras!
Misturemos nossas cores!
Dividamos nossas dores!
Façamos mais amores,
Sem horas marcadas!
Que
Nossos corações anões,
De intenções as mais ternas,
Vão guiando nossas pernas,
No escuro o mais profundo,
De âmagos sôfregos, oriundos
De eternos desejos vagamundos.




A quemmuito não
sulcos vários em nosso rosto,
expomo-nos a contragosto,
neste reencontro desvalido
de esquecida juventude,
passada sem ser sentida,
em tempo de forças incontidas
de só vontades, sem atitudes.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Contos Contados de Brasília (5)

Meus livros


Muito me agrada visitar os livros que, com o passar do tempo, fui lendo ou simplesmente folheando, na esperança de voltar a relê-los algum dia. Quase sempre me reservam surpresas agradáveis. É sempre uma volta ao passado, por meio de uma palavra sublinhada, uma observação feita à margem, uma citação, um trecho que deixei marcado para rever com mais vagar e cuidado, uma marca qualquer no papel, uma relembrança de situações, uma busca da intertextualidade e, sobretudo, uma perícia nos fragmentos e tiras diversos de papéis avulsos que serviram, certamente, para marcar a página, em interrupção brusca de leitura. Muitas vezes, ao ser esta retomada, aqueles sinais eram deslocados para outras partes do livro, de onde passavam ao esquecimento.
Gosto de ficar me perguntando, ao me deparar com tais papeizinhos, o que é que este está fazendo aqui? De vez em quando o achado dá o que pensar. Levo tempo para chegar a uma solução das indagações, ou, como acontece, muitas vezes, não encontro explicação nenhuma, sem, pelo tanto, desprezá-los em um saco de lixo.
Não li todos os livros que perfilam nas estantes. Longe disso. Antes de comprá-los, percorri, evidentemente, a pertinência do assunto para enriquecimento de algo em que estava trabalhando, ou que tencionava basear-me para algo ou, mesmo, garantir-me em assuntos correlatos. Antes de recolocá-los nas prateleiras, tornava a vistoriar algumas de suas páginas, e depois não mais os procurava, na esperança, é claro, de encontrar momentos de voltar a eles.
Por isso é que ficam ali parados, em ou deitados, um tanto esquecidos? Nem tanto, que sempre os visito, mesmo que com o olhar ou a vontade de tocá-los. Em sua maioria, os fito, demoradamente, mas não os vejo. Outras vezes, eu os retiro para uma ou mais olhadelas de curiosidade e expectativa. O que será que vou encontrar de interessante nesse aqui?
me perguntaram se leio todos aqueles livros que ostento. Se não os leio, como parece, então porque guardá-los, ocupando espaço, enchendo-se de pó, necessitando serem espanados com freqüência? Não seria melhor levá-los a um sebo, vendê-los ou doá-los, para que outros, amantes de livros ou de sebos, os possam garimpar e, quem sabe, lê-los, relê-los, folheá-los, amá-los, à procura de alguma surpresa, esquecida em algum recanto de página? Livros que pertenceram a outros leitores também têm seus atrativos e espantos, apesar de abandonados, por insistência, quem sabe, de donas de casa exigentes com a limpeza dos espaços, por considerá-los incômodos e depositórios de poeira?
Já ouvi no rádio uma professora afirmar que seus alunos gostam de consultar os livros nos quais ela fez marcas e comentários no momento quente da leitura. Assim, como nada no texto é inútil, também não deverão ser os sinais de anotações deixados em suas margens e espaços brancos.
Lembro-me de um passado. Uma mudança, transferência de residência, pelos idos de Paris, praça Edmond Rostand, 5º andar. Tratava-se do apartamento de uma velha senhora, nobre decadente, que vivia na companhia de um filho incapaz, para não dizer fraco das idéias. Por força de exigências do serviço social, tinha que ser levada, meio a contra-gosto, para um asilo do governo. O local de onde se mudava estava, naquele dia, em pouco mais em desordem do que habitualmente, segundo relatos de vizinhos. Freqüentemente, eram solicitados a prestar algum tipo de ajuda aos dois moradores, à mãe, sobretudo, que ficava quase sempre sozinha, prisioneira de uma cadeira, assistindo os pombos a entrar pela janela aberta. O excesso de baton sobre os lábios escondia a falta de asseio pela casa e em si mesma. Enquanto isso, o filho vagabundeava pelo bairro, metido em seu surrado e sujo casado bege. No centro de um dos quartos, já desfeitos pelos agentes do governo, livros foram amontoados, como se faz a entulhos ou tijolos quebrados.
Eu alugava um quarto de apartamento do segundo piso e ofereci-me a dar uma mão à remoção da pesada senhora, operação a ser feita por meio de uma maca. Não havia elevadores no prédio, datado dos começos do século XIX, mas as escadarias bem amplas, com degraus de madeira revestidos de tapete vermelho,.facilitariam o translado.
Enquanto aguardava o momento de colocar mãos à obra, dei uma vistoriada naquele monte de papéis, à cata de alguma novidade e recados dos velhos tempos parisienses. Deparei-me, então, com um pequeno envelope delicadamente confeccionado, sobrescrito à pena e tinta preta. Abri-o, maquinalmente, e vi que continha uma carta acompanhada de duas fotos de moça de olhares lânguidos, apaixonados, à moda da Belle Époque. Guardei-os comigo, sabedor de que, aquele amontoado, de mais papéis do que livros, iria para a incineração ou para algum sebo qualquer, onde passaria a fazer parte do insensível esquecimento. Mais tarde, em circunstâncias favoráveis, julgaria se devia ou não lê-la, preservando, evidentemente, o anonimato da autoria.
Conservo-os como lembrança, e, de vez em quando, ainda, remexendo nos meus livros e guardados, deparo-me com o envelope, percorro a carta à procura de mais alguns suspiros inaudíveis, daquela alma apaixonada que a ditou. Como a data não está legível, suponho que foi escrita durante a Guerra de 14-18. Teria sido uma carta de amor, a ser enviada para o amado que se encontrava na frente de batalha, e, que, por algum revés do destino, não fora enviada? Voltara o destinatário da guerra e justificara, com sua presença amorosa, o não envio da missiva? Ficara, simplesmente, guardada entre páginas de livros que a soltaram sobre o monturo daquele quarto desnudo?.Os personagens já não mais existem nesse mundo, e não haverão de culpar-me pela leve indiscrição. Era ela, provavelmente, a senhora toda disforme que eu ajudara a descer pelas escadarias de um prédio nas proximidades da Sorbonne. Mistérios da vida vivida em seu tempo!
Assim, sempre dizer que o meu relacionamento com os livros mantém um saibo sensorial. Eu os pego nas mãos e deles me farto, mesmo não os lendo ou relendo. Há deles que, até, aproximo do nariz para sentir o aroma do papel. Eu os visito sempre, a não ser quando viajo para longe do meu quarto. Isso porque lhes reservo um cômodo, no apartamento, o “quarto dos livros”, tal como existem o quarto do casal, o dos filhos, o das filhas, o do som e da televisão. Eu os olho e tenho a impressão de que eles também me olham, se perguntando: será minha a vez de merecer atenção? Certamente estarão dizendo: “Ele não sabe o que trazemos esquecida em nossas folhas, uma entrada de teatro dos velhos tempos da Cité Universitaire, quando o amigo, especialista destas artes, o convidava a ver peças de sucesso, raramente levadas nas salas mais consagradas e, nem por isso, desmerecedoras das artes”.
Não é que dia desses, encontrei um bilhetinho com dois nomes e uma data! Era um número de telefone e uma solicitação para retorno de chamada, direcionados ao colega de quarto, daqueles já longes tempos do quartier latin. Certamente depois do recado dado, eu tenha aproveitado aquela fita de papel para marcar as folhas do livro revisto. O nome me fez saber que por aqueles idos de maio de 1973, um diretor de teatro passara por Paris. Há quase 50 anos atrás! Rasgos de lembranças, réstias de luz nesta memória um tanto rota!
Ainda uma adenda. Recentemente, em visitas a países argentinos e chilenos, fui tomado de um desejo de reler livros sobre o “cavaleiro de triste figura”, o Dom Quixote. Comprei algumas estatuetas que passam a ilustrar-me as narrativas de Cervantes sobre as aventuras do engenhoso fidalgo da Mancha. Uma septima edición en “Collección Libros de Bolsillo Z”, com anotacción y un índice onomástico y de situaciones, em dois volumes, números de edición 5.033/5034, da Editorial Juventud, S.A. Barcelona, 1971. Na folha de rosto, “offerts à Paris, le17 octobre, 1973, mercredi”, do meu inesquecível amigo e companheiro de quarto do tempo Quartier Latin. Este, um dos livros que mais me convidam para uma entrada em suas páginas.
Pelo mesmo caminhar, minhas estatuetas recentes me levaram a uma edição do Dom Quixote, em português, da Nova Cultural Ltda, de 2003. No interior deste último, encontro um artigo do Correio Braziliense, p. 34, domingo, 10 de fevereiro de 2008, de página inteira, ladeando fantástica figura do famoso cavaleiro andante, e outra foto de menor tamanho do personagem, subintitulada “Dom Quixote vive aqui”, de autoria de Conceição Freitas. O achado causou-me arrepios de emoção, ao reler a não menos fantástica experiência de Oswaldo da Silva Mendes, que mandou erigir, em morro alto de sua propriedade, uma colossal estátua de 12 metros de altura, do herói cervantino. Sem mais dizer, a surpresa vem a cada leitura do texto e revela sempre novo discurso, já que a obra de arte nunca fenece e sempre é atualizada e atualíssima, mesmo tendo sido escrita no ano de 1604.
           E meus livros continuam, pois, aqui, às minhas costas, à minha frente, ao meu lado, olhando-me de cima, de baixo, quando me assento na cadeira, para enfrentar a tela do computador! Que continuem me reservando surpresas ao explorá-los, que gostaria fossem, ainda, por muito tempo. Se não os leio, os revejo, quando menos esperam. Aguardem-me, que continuo vivo e com sempre mais vontade de revê-los e revivê-los!