sábado, 31 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (83)

 
O amor perfeito
é, por demais, insatisfeito,
feito grito mudo,
solto em lugares vagares
desertos de preconceitos.

Transmudado de lado,
ao foro íntimo do peito,
está, de novo, sujeito,
ao prazer inalienado
do sentir-se eleito.


Cometer omisso pecado,
para depois pedir perdão,
é inafiançável agravo,
inalienável, imprescritível,
sujeito a total purgação,
                   sem direito à remissão.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (82)

No amor ardente,
Tudo se reveste
De encanto.
O mínimo gesto
É acalanto.

No desamor latente,
Tudo se repele
no instante .
O mínimo gesto
É cortante.

Afiado canivete,
O desgaste
À flor da pele
É gravado
                   Ou agravante.




Um desperdício,
o sumiço dos feitiços,
por esses tempos 
de anticorpos e artifícios,
arquétipos desnudados,
pouco dados a esmeros
e demais cuidados,
a gestos movediços,
que, de e de lá do real,
roem a mente da gente,
revolvendo tanto e tais 
salutares reboliços!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (81)

A dor da morte é a de quem
À morte sobreviveu,
Ou a de quem
Ainda muito mais ama
Quem muito mais sofre,
Porque, ainda, não morreu?




Quanto mais alimento se produz,
No mundo,
Mais se traduz fome,
Menos se come.

Faminto, o homem,
No limbo, se consome,
E o reduz a magreza
A mais pó na natureza.




Necessário é fazer de conta,
Vestir capa do saber,
Parolar difícil, fazer trejeitos,
Como em reposteiro,
Sem se revelar por inteiro?

terça-feira, 27 de março de 2012

Contos contados de Minas (44)

             João-Bolinha 

Do tempo de grupo escolar, as professoras povoavam de fantasias a mente de seus alunos. Costumavam ler para eles, e dar-lhes a ler, histórias que aquietavam os excessos, próprios daquela fase da vida, cheia de sonhos e de energias. Faziam parte daquelas leituras as histórias de João Bolinha, de um autor mineiro, cujo nome não podia ser portador de maior carinho, Vovô Felício.
O personagem era todo feito de bolas de tamanhos variados que lhe iam formando as partes do corpo, as expressões e emoções. Por meio dele, seu autor, que se soube, mais tarde, tratar-se do pseudônimo de Luís Francisco Guimarães, ia dando a conhecer o mundo àqueles leitores iniciantes. Muitas das aventuras de João Bolinha devem estar soterradas em alguns dos sebos da capital mineira, à espera de serem garimpadas. Ainda mais, porque o criador era tio e malungo de famoso sobrinho, João Guimarães Rosa, com quem brincou seu tanto quando crianças, na cidade natal de ambos, Cordisburgo.
Garimpar, pois, o João Bolinha em grupiaras antigas e esquecidas, será, também, sujeitar-se a desfazer sonhos e castelos edificados em criança? Não seria preferível acariciar os momentos salutares da leitura infantil, que se fazia tão presente em sala de aula?
A literatura infantil não era tão difundida como hoje, com editoras especializadas investindo pesado no público infanto-juvenil, como veio e meio de angariar recursos para os negócios, a ponto de escritores famosos passarem a escrever para essa idade. Ou será porque os adultos nunca deixam de ser infantes, e se deleitam cada vez mais com as artes que se reservam às crianças e aos adolescentes?
A biblioteca do Grupo Escolar da infância, ainda guarda estes livros que alguns escritores, como Vovô Felício, dedicaram aos leitores mais jovens. Ler era prazeroso, entretanto, assim como era mais gostoso ouvir histórias lidas pela professora, que além de sempre bonita para seus pupilos, ainda as traduzia na viva entonação das sutizas da voz. Essa impressão permanece guardada para sempre na memória daqueles sempre meninos e meninas, adultos de hoje.
Na hora da leitura, recorda, a mestra pedia aos alunos que “guardassem os objetos”, se colocassem em postura adequada para ouvir com atenção a história. Se não fosse na posição onveniente, alguns deles poderiam se embalar em sono, uma vez sonhando. Muitas vezes, a leitura partia de onde fora interrompida na aula anterior, e isso fazia com que as solicitações da professora fossem mais prontamente atendidas. Todo leitor não mede esforços para saber a seqüência do enredo. Exemplo desse prazer em ouvir o que se conta está mais do que avalizado nas Mil e Uma Noites, com Sherazade espelhando aquela figura ímpar da mestra lendo e os alunos fantasiando.  
A aula de leitura passava rápida. Eles voltavam para casa com a doçura da voz da professora afagando-lhes os ouvidos, e os personagens se aventurando na imaginação fervilhante. As leituras silenciosas e individualizadas em sala, com livros retirados da biblioteca do Grupo Escolar, não encontravam a graça daquelas histórias lidas e ouvidas, com a leitora, muitas vezes, se metamorfoseando nas figuras das histórias.
 Anos mais tarde, veio-lhe uma saudade de ter nas mãos um daqueles livros que o faziam perder noites de sono. A narrativa o excitava, os personagens o contagiavam, os lugares se faziam familiares como muitos daqueles que freqüentava no dia a dia. Tempos depois, veio, também, a percorrer alguns deles, em terras da Europa, como os castelos da Alemanha e da Baviera. O livro chamava-se Ema de Tännenbaum, O som ainda tamborilava nos ouvidos, depois de tantos passados anos. Procurou tê-lo nas mãos, que lhe chegou mais amarelado pelo tempo implacável. Era ele, o exemplar que tivera nas mãos e diante dos olhos ainda crianças.
Entretanto, que sensação estranha! Não deveria tê-lo tocado. Os olhos ali não mais se reconheceram ou sonharam, nem o coração se enterneceu, como esperava. Os lugares e os personagens não eram os mesmos. Lamentou o fato, que destruiu, em sua fantasia de adulto, as memórias das doces e ternas imagens infantis. A cada tempo seu tempo, a cada idade seu pedaço de vida, a cada realidade, as imagens vivas e vividas. Como consolo, a frase de um antigo companheiro de quarto, em Paris, aposta na dedicatória que lhe fizera de edição rara do Don Quijote de la Mancha: “Ema de Tännenbaum tá no fundo do poço. No meu também.”
As histórias recriadas, por meio da leitura, na imaginação das crianças, sempre serão insubstituíveis, mesmo quando os adultos as procuram representar com as mais aperfeiçoadas tecnologias.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Contos contados de Minas (43)

Charlatão e charlatanice

Segundo consta dos dicionários, como o do Houaiss, o significado da palavracharlatão” é: “que ou aquele que se apresenta nas praças ou nas feiras para vender drogas e elixires reputados milagrosos, seduzindo o público e iludindo-o com discursos e trejeitos espalhafatosos (diz-se de mercador ambulante)” O mesmo dicionáriocomo sinônimo à palavrachatim e enganador” e pede para ver a antonímia de trapaceiro. A etimologia vem do italiano “ciarlatano” (ano 1498) “aquele que se passa por aquilo que não é”. Mais adiante diz o Houaiss: “...o vocábulo penetrou no português pelo francês “charlatan (1572) ‘saltimbanco, palhaço’, (1668) ‘impostorou pelo espanhol “charlatán” (século XVI). Em todas as acepções do vocábulo, fica nítido o seu caráter pejorativo, de alguém enganador, trapaceiro.
Como interpretar, então, a gente mais antiga que dizia, com orgulho, ser o tetravô charlatão, desconhecendo o sentido desabonador na tal palavra, uma vez que o ancestral, no caso, “curava”, de boa , as pessoas que o procuravam, de algum mal, curável ou incurável, que os afligiam. Com freqüência, a fama corria de que fulano de tal conhecia o poder das ervas e raízes na cura das variadas doenças. As pessoas passavam a procurar o milagreiro, cada vez em maior número, e ele não podia dar-lhes com a porta no nariz. Assim, o pobre carregava o adjetivo de “charlatão” e seu desgaste através dos tempos. As palavras, para aquela gente, traziam consigo a representação, como o significante carrega em si o significado. O conceito se materializava, o coisa-ruim e suas danações se faziam presentes no som da pronúncia.
Pelo que se conta, o antepassado “charlatão”, passou para alguns próximos parentes, diretos ou indiretos, o conhecimento das plantas que curam, nome, aliás, de publicação recente de grande divulgação, que retoma a arte de descobrir seus princípios ativos. Filho de charlatão sabe-se charlatão. Evidentemente, ninguém reivindicava para si o sentido maldito do adjetivo de quem pratica o “charlatanismo” ou enganação. Na prática fazem pior as publicidades escrita ou falada do que o pobre raizeiro, que, em praças públicas, se fazia abraçar por cobras, com o intuito de chamar a atenção para seus remédios milagrosos. Mesmo a expressão cunhada “falar mais do que o homem da cobra” contribui para diminuir ainda mais o papel que outrora exerceu aquele que procurava minimizar o sofrimento de quantos o procuravam. Porque será que o símbolo da farmácia é uma taça dando de beber a uma cobra? Gastava-se tempo e paciência em procurar na Natureza ramos e raízes, ciência menos exata que vinha sendo transmitida de pai para filho, ou filha. Nestas artes, não se fazia distinção entre homens ou mulheres. Talvez, até, com vantagem para o feminino. As brumas de Avallon podiam explicar muitos dos mistérios destes aspectos tão importantes da vida humana.
Do Zeca Joaquim se ouvia falar coisas boas, nada de trapaças. Até de um fato que se falava a boca pequena, por se tratar da cura de um câncer de seio em sua própria mulher. A materialização de tal palavra trazia consigo a própria maldade da doença, hoje tão “vulgarizada” pela propagação dos meios de comunicação. O tetravô, segundo relato, andava preocupado, pelas beiradas da casa sem saber como agir diante daquele mal da mulher, a “Sá Mariana”. Sabia que seus remédios valeriam pouco para tão grave doença, mas se via na encruzilhada. Ou agia ou perdia para sempre a esposa. Resolveu agir, depois de muito rodar pelos cantos da residência e tomar a drástica atitude. Disse à mulher que lhe restava uma chance de sobrevida e que esta seria a mais dolorida que se poderia imaginar. Providenciou, como era de costume, para dores tão lancinantes, longe dos alívios de anestesias, um pano que colocou entre os dentes da esposa, como, também, se procedia com respeito aos acometidos de epilepsia. Foi à fornalha, onde crepitavam brasas e incandesceu o cabo de um garfo, com o qual queimou o seio da mulher. Narra-se que a “Sá Marianaainda viveu por uns bons pares de anos.
Masmuitos e muitos remédios estranhos por , na China e pelo mundo em geral, sem contar as crenças e simpatias. Chifre de boi queimado e depois raspado, misturado com vinagre, para expulsar lombrigas; picumã misturada com café, para vermes; tártaro, veneno eficaz de matar rato, dado na dosagem adequada para curar epilepsia, croup ou difecteria; infusão de estrume seco de eqüino, para.fazer sair o sarampo; sebo de carneiro para untar as juntas, nas dores nos ossos e reumatismo; banha de capivara, carne de tamanduá, carne de onça, para curar dores nas articulações, e tantas outras práticas que um só manual seria insuficiente para o inteiro apontamento.
O que dizer das superstições, das simpatias? Chocalho de cascavel, aproximado das têmporas de quem tem “ar” (aro) no olho é capaz de desanuviá-lo. O que dizer das benzeções, para afugentar as cobras malignas, peçonhentas, cobreiro brabo, mau olhado, olho gordo ou quebrante. Assim, quem benze as cobras, só deve afastá-las para bem longe, sem as matar, já que tem o poder de “conversar” com elas, segundo ensina um convicto benzedor. Dessas convicções, é que nasce a cura, nem tanto do efeito do remédio prescrito. “A fé transporta montanhas”. O poder da mente supera o físico, o psíquico governa o somático e o milagre é o povo quem o procura. 
Diante de tais certezas, ou de tantas incertezas, como as da vida ou da morte, há que, muitas vezes, se tomar atitudes extremas. A história está cheia de casos em que a razão costuma ceder lugar a crenças e crendices, como recursos de se tentar agarrar a vida. “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia.”
           Do charlatão Zeca Joaquim, alguns descendentes procuram, ainda, nas terras e nos ramos de um cerrado cada dia mais ralo, alívios para algumas dores, e mantêm vivos os mistérios, afastados dos interesses econômicos de laboratórios, comumente, alienados da realidade do povo.

sábado, 24 de março de 2012

Contos contados de Minas (42)

            O filho mais velho

O pai mal sabia ler, soletrava com dificuldade, mas demonstrava rara percepção da importância da leitura. Muito aprendeu na escola da vida, como era costume dizer. Uma fotografia, em álbum perdido por gavetas empoeiradas, ainda o mostra com um jornal aberto diante dos olhos, como prova da vontade que sempre teve de ler como os filhos. Neles apostou em dar a escola que ele próprio não pudera ter quando jovem.
A mãe ainda costuma dizer que ela e o marido perderam tempo em não terem seguido o exemplo de outros casais, conhecidos seus, que foram à escola, em adultos. Eles haviam deixado a zona rural e vieram morar na cidade, para educarem os filhos, e encontrariam tempo para tanto. No caso dela, além de ter tido “menos leitura”, ainda não dispunha de tempo suficiente para ler, por cuidar de tudo e de todos da casa, do marido e da filharada, “que Deus ia enviando” como bem provia.
 Com apenas cinco meses de aula, aos cuidados de Seu Apolinário, na fazenda do Lázaro Lucinda, ela ainda sacrificava o recreio e um pedaço das aulas para a lida das panelas, no preparo do almoço dela, do irmão de criação e de primos próximos. Isto, sem falar no depois do repasto, quando ficava para trás, lavando pratos e complementos, para deixá-los nas condições de serem usados na mesma rotina do dia seguinte.
O pai, por sua vez, no uso de prerrogativa masculina, naquela sociedade machista, pôde avançar um pouco mais nos rudimentos da leitura e da aritmética, por causa das futuras necessidades nos negócios, por mais incipientes fossem.
Quanto ao filho mais velho, se vê nos tempos de moleque, quando não podia, ainda, avaliar o sacrifício dos pais em proporcionar-lhe a instrução que, hoje, reconhecidamente, carrega consigo. Quando o pai chegava da roça, muitas vezes a cavalo, sentava-se do lado da mesa da cozinha, ora com o livrinho de catecismo nas mãos, ora com a tabuada, para o argüir sobre “Quem é Deus?  Quantos deuses há? O Pai é deus? O Filho é deus? O Espírito Santo é deus? Então, há três deuses?” Cabia ao filho responder na ponta da língua o decorado: “ Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra” ;  “Há um deus em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”; “Sim, o Pai é Deus; Sim, o Filho é Deus; Sim, o Espírito Santo é Deus”. E, assim, enfileiravam-se perguntas e respostas para o cumprimento dos deveres religiosos.
Outras vezes, era a tabuada, as quatro operações, como dizia, a de somar, a de diminuir, a de dividir e a de multiplicar, que era cobrada: “1+1, 1+2...; 2-1, 3-1...; 1x1, 1x2..., e assim por diante. A de divisão trazia mais dificuldade em ser tomada, mas era correlata com a de multiplicar. O pai se convencera de que era mais versátil em aritmética. Aprendera mais com a prática e a necessidade, do que com as aulas que tivera com os professores de circunstâncias, Memelo e João Leite. Além das quatro operações, aprendera o necessário das contas de juro. Nisso, ele não admitia vacilos, para não passar vergonha diante dos outros, levar manta, ser passado para trás nos negócios corriqueiros. Mais tarde, quando acontecia os outros filhos trazerem da escola algum problema de álgebra, ele queria resolver com a raciocínio da aritmética e, algumas vezes, acabava chegando ao mesmo resultado, embora com maior trabalho. Para ele, isso constituía importante vitória e motivo de orgulho, já que não tivera o banco da escola formal a favorecê-lo.
Dizia, entre vaidoso e autorizado, que nunca acontecera ”engolir lobeira”. Mas, uma vez, morador da cidade e no final da vida, vendeu em confiança uns burros. O comprador dos animais ficou de receber o produto na fazenda, sob condições. Em chegando, falou com o filho mais moço que comprara os animais e, ali, se encontrava para apanhá-los. Embora achando aquilo estranho, e duvidando de que o pai não poderia ter feito tal negócio, nos termos relatados, ele entregou os animais. Não estava acostumado a discutir a palavra empenhada do pai. bem depois ficou sabendo que o negócio tinha sido outro. O prejuízo se devera mais em ter acreditado na honestidade das pessoas. Assim, não se sentiu diminuído. Do negócio, supostamente mau feito, nunca teve de que se lamentar. As pessoas são o que são, uns honestos e outros nem tanto. Fazer o quê? A humanidade nunca será equilibrada!
O pai tinha orgulho da autoridade, da dignidade que queria passar aos filhos, para que a seguissem e passassem aos mais novos. Ser filho mais velho tinha suas responsabilidades. O estranho era que ele não demonstrava tal preocupação com as duas filhas mais velhas, talvez por pensar que mulher quando se casa, cabe aos maridos cuidar desses particulares de regências.
Mas, e os acertos de conta nas sabatinas catequéticas, ou aritméticas? À época, se o menino ainda trouxesse no currículo o relato desabonador da mãe, quanto à pouca dedicação aos estudos, o ensinamento deixava de ser numérico ou divino. Mandava o filho buscar o relho, que ele pronunciava “rei”, dependurado no portal da entrada para a despensa, e lhe aplicava umas duas boas lapadas nas pernas, ainda desguarnecidas das calças compridas. Não se pode precisar se foi uma, ou se mais de duas, as vezes em que as correias, trançadas de três a quatro lâminas, de couro cru lamberam-lhe as pernocas de moleque acostumado aos pega-pegas, nas brincadeiras dos começos de noite, na pracinha Genoveva.
Entrementes, vinham as lições de vida. Pedia que o filho buscasse a caixa de fósforos. “Tira um palito e quebra”. Ele quebrava. “Agora, dois”. Ele quebrava. “Agora, três”. Ele quebrava. “Agora, quatro”. Ele ia fazendo o que o pai mandava. “O que é mais fácil, quebrar um palito ou quatro?” Diante da resposta, ele retirava a lição: a de que era preciso ser unidos para não se deixarem esmorecer, os  irmãos todos, nas dificuldades. A união fazia a força, dizia, sem ter lido Esopo.
Hoje, os tempos mudaram. Os filhos não podem mais ser tocados, nem empurrados com o dedo indicador em riste ou com o olhar mais severo. Os jovens não sofrem os rigores da criação ancestral. Aprendem mais, desafiam mais e, mais soltos, têm a liberdade da contestação. Os excessos são tidos em conta da idade. Orgulhosos do que aprendem, podem dizer que sabem mais do que os mais velhos. Não pensam que, por força da máquina do tempo, os hábitos dos pais, “ignorantes” dos bons modos, existiram antes deles, que copiavam, por sua vez, os ensinamentos dos que os antecediam. Reconhecer os progressos do ontem nunca haverá de ser fácil para quem vive os avanços do hoje. Entretanto, a humildade jamais deixará de ser qualidade, considerando os que sofreram as agruras do crescimento evolutivo. O progresso sempre será a soma das conquistas e derrotas passadas.
       Assim, os antigos foram formando os fundamentos dos valores que bem ou mal procuravam imprimir na consciência dos filhos. De sua experiência de viver, ou de ouvir dizer pela boca dos mais velhos, foram fazendo sua história, com os acertos e os desacertos se somando, no cômputo das reminiscências.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Contos contados de Minas (41)

             Estranho duelo 

Duelar consigo mesmo. O tal TOC, talvez, de que se fala tanto? Voltar sobre os pensamentos e passos. Desandar o já andado para se sentir desafiado e satisfazer o que, aparentemente, poderia parecer esquisitice ou doidice. Desafio da própria vontade, ou da vontade própria, quando o que mais costumara ouvir dos pais era o de quemenino não tem querer”! Ele não sabia nem poderia saber, o que era aquilo que vinha de dentro de si, o de estar andando, por exemplo, e de repente aflorar-lhe à cabeça aquela idéia estapafúrdia, para não dizer maluca, de olhar para trás e dizer a si próprio: “você não é capaz de voltar até... àquela porteira, que ficou lá bem atrás, até...aquela árvore solitária, que já se apequenou, até...aquele caminho que...!”
Ele parava a caminhada, se estivesse a , ou o cavalo, se estivesse montado, e ficava lutando consigo, para ver se ainda se convencia a não executar aquele penoso descompasso. Era duelo de morte, psíquica, que lhe mortificaria o corpo. Onde se viu botar o tempo a perder e recomeçar, gratuitamente, um pedaço de caminho caminhado, para não ser por si chamado de “cagão” ou de coisa pior! Melhor seria prosseguir e ver se esquecia aquilo! Mas não, a idéia martelava-lhe a cabeça: “cagão”, “frouxo”, “covarde”, “pau mandado de pouco querer”! E por vai ou ia o conflito e os desafios. Sem poder suportar tanta tortura, o jeito era voltar até o ponto pré-determinado e esquecer, logo, aquilo de vez, para se sentir em paz.
Estes dilemas aconteciam com freqüência. Bastava ter pressa de fazer alguma coisa, de executar um mandado de “um pé lá outro cá”, proferido pelo pai, como o de ir, por exemplo, à casa de fulano para um recado, tinha que refazer caminho. Depois, restava-lhe tirar a diferença do atraso nas passadas largas, ou nas esporadas e cutucadas com os calcanhares na barriga do cavalo. Era um tormento, quando, sem mais nem menos, sobrevinha-lhe a dita cuja: “você não é capaz de”. Além do mais, ainda ficava preocupado se não estaria sendo observado, naquelas atitudes inconseqüentes e, no mínimo, suspeitas. Felizmente, nunca fora surpreendido nesses vai-e-vem sem explicação, a não ser por si mesmo, que permanecia sempre indagando a razão daquilo tudo.
Disso, nunca conseguiu se livrar, e, ainda hoje, bem andado pelos caminhos da vida e de largos espaços do mundo, costuma ter que repetir alguns atos feitos, porque aquele mesmo desafio de “você não é capaz de”, vir-lhe, subitamente, à cabeça. Será que, ainda, poder-se-á dizer que, depois de trocar o papel de menino pelo de adulto, continuará a pensar que a maturidade também não tem opinião, ou “querer”, sobre as fracas vontades,  perante um inexplicável desafiar de si próprio?
Nunca pôde compreender o porquê de sempre ouvir falar, desde aqueles começos de vida, sobre vontades, força de vontade, boa vontade, falta de vontade, pouca ou muita vontade, renúncias de vontade própria, por imperiosa que fosse, ao se propor seguir carreira, na qual teria de colocá-la nas mãos de um superior que lhe cobraria atitudes, segundo o que prescreve a obediência, ou a aceitação passiva da vontade alheia. Teria sido, pelas tais esquisitices que, tempos depois, o motivo alegado para o seu desligamento da tal confraria fora o de que sempre apresentara dificuldades para se adaptar à espontânea renúncia da vontade própria?
O desafio ao querer pode bem ser um reforço na vitória do bem-querer. Ou, então, que a vida é um contínuo desafiar-se de si mesmo, por mais estranhas as circunstâncias. 

quarta-feira, 21 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (80)

Se me agradeces
Pelo pouco que te dei,
Terei bem mais forças,
Para mais ainda te dar
O que me parece
Mereces.

O reconhecimento,
Mesmo que mínimo
Ou, mesmo, tardio,
Enaltece o brio
Que raramente
Aparece.

É máximo estímulo,
E mais engrandece,
Do que breve prece,
Com saibo de fastio
Que comumente
Acontece.





Ajudo na caminhada da jornada,
Sem que me prometam o céu
Como paga, ou mesmo troféu.

Fosse assim, ainda cobraria
O ingresso de entrada
Aos auxílios prestados,
Em parceria de empreitada.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (79)

As convivências nos ensinam,
Os sofrimentos nos lancinam,
Os sonhos nos revelam,
Os pesadelos nos dominam,
Os modelos nos fascinam,
Preocupações nos nivelam
As certezas nos transportam
A mais incertezas benfazejas.




Revelamo-nos imprudentes,
Perdedores de forças, impotentes,
Sem que disso nos libertemos.

Afrouxamos laços de abraços,
Doem-nos braços das entorses,
Vemo-nos fracos, bem precoces.

Abrigamos do mundo em saco sem fundo,
Sempre dados a mais cansaços,
Indefesos, como em breu de buraco.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Penares a conta-gotas (78)

Vivemos o tempo dos arrependimentos,
Do vermos os efeitos dos parcos feitos,
Do sentirmos os escassos proveitos,
Do muito que dissemos e pouco fizemos,
Do sempre nos sentirmos infelizes
Por sermos imperfeitos aprendizes
No que nos julgaram capazes
De procedimentos de maiores efeitos.




Não falamos a mesma língua,
Pois sempre nos afasta, a vida.
Cada um investe o próprio sumo,
Ao vento a nos deixar sem prumo,
No galgar dos vales e dos cumes,
Sem nos perder da mira o lume,
Nas varias peripécias, imunes.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Pensares a conta-gotas (77)

Quando me comparo
Com o tamanho raro
Desse mundo rubro
De  porte tacanho
E o gosto amaro
me descubro
Inda mais raro
E bem miúdo
Que imaturo
D´antanho.

 

 





Eu seguirei primeiro,
Que cheguei, candeeiro.
Por derradeiro, irás enterrando
Descuidos que vou deixando
Por esse incerto sendeiro,
Que elegi verdadeiro.