terça-feira, 27 de março de 2012

Contos contados de Minas (44)

             João-Bolinha 

Do tempo de grupo escolar, as professoras povoavam de fantasias a mente de seus alunos. Costumavam ler para eles, e dar-lhes a ler, histórias que aquietavam os excessos, próprios daquela fase da vida, cheia de sonhos e de energias. Faziam parte daquelas leituras as histórias de João Bolinha, de um autor mineiro, cujo nome não podia ser portador de maior carinho, Vovô Felício.
O personagem era todo feito de bolas de tamanhos variados que lhe iam formando as partes do corpo, as expressões e emoções. Por meio dele, seu autor, que se soube, mais tarde, tratar-se do pseudônimo de Luís Francisco Guimarães, ia dando a conhecer o mundo àqueles leitores iniciantes. Muitas das aventuras de João Bolinha devem estar soterradas em alguns dos sebos da capital mineira, à espera de serem garimpadas. Ainda mais, porque o criador era tio e malungo de famoso sobrinho, João Guimarães Rosa, com quem brincou seu tanto quando crianças, na cidade natal de ambos, Cordisburgo.
Garimpar, pois, o João Bolinha em grupiaras antigas e esquecidas, será, também, sujeitar-se a desfazer sonhos e castelos edificados em criança? Não seria preferível acariciar os momentos salutares da leitura infantil, que se fazia tão presente em sala de aula?
A literatura infantil não era tão difundida como hoje, com editoras especializadas investindo pesado no público infanto-juvenil, como veio e meio de angariar recursos para os negócios, a ponto de escritores famosos passarem a escrever para essa idade. Ou será porque os adultos nunca deixam de ser infantes, e se deleitam cada vez mais com as artes que se reservam às crianças e aos adolescentes?
A biblioteca do Grupo Escolar da infância, ainda guarda estes livros que alguns escritores, como Vovô Felício, dedicaram aos leitores mais jovens. Ler era prazeroso, entretanto, assim como era mais gostoso ouvir histórias lidas pela professora, que além de sempre bonita para seus pupilos, ainda as traduzia na viva entonação das sutizas da voz. Essa impressão permanece guardada para sempre na memória daqueles sempre meninos e meninas, adultos de hoje.
Na hora da leitura, recorda, a mestra pedia aos alunos que “guardassem os objetos”, se colocassem em postura adequada para ouvir com atenção a história. Se não fosse na posição onveniente, alguns deles poderiam se embalar em sono, uma vez sonhando. Muitas vezes, a leitura partia de onde fora interrompida na aula anterior, e isso fazia com que as solicitações da professora fossem mais prontamente atendidas. Todo leitor não mede esforços para saber a seqüência do enredo. Exemplo desse prazer em ouvir o que se conta está mais do que avalizado nas Mil e Uma Noites, com Sherazade espelhando aquela figura ímpar da mestra lendo e os alunos fantasiando.  
A aula de leitura passava rápida. Eles voltavam para casa com a doçura da voz da professora afagando-lhes os ouvidos, e os personagens se aventurando na imaginação fervilhante. As leituras silenciosas e individualizadas em sala, com livros retirados da biblioteca do Grupo Escolar, não encontravam a graça daquelas histórias lidas e ouvidas, com a leitora, muitas vezes, se metamorfoseando nas figuras das histórias.
 Anos mais tarde, veio-lhe uma saudade de ter nas mãos um daqueles livros que o faziam perder noites de sono. A narrativa o excitava, os personagens o contagiavam, os lugares se faziam familiares como muitos daqueles que freqüentava no dia a dia. Tempos depois, veio, também, a percorrer alguns deles, em terras da Europa, como os castelos da Alemanha e da Baviera. O livro chamava-se Ema de Tännenbaum, O som ainda tamborilava nos ouvidos, depois de tantos passados anos. Procurou tê-lo nas mãos, que lhe chegou mais amarelado pelo tempo implacável. Era ele, o exemplar que tivera nas mãos e diante dos olhos ainda crianças.
Entretanto, que sensação estranha! Não deveria tê-lo tocado. Os olhos ali não mais se reconheceram ou sonharam, nem o coração se enterneceu, como esperava. Os lugares e os personagens não eram os mesmos. Lamentou o fato, que destruiu, em sua fantasia de adulto, as memórias das doces e ternas imagens infantis. A cada tempo seu tempo, a cada idade seu pedaço de vida, a cada realidade, as imagens vivas e vividas. Como consolo, a frase de um antigo companheiro de quarto, em Paris, aposta na dedicatória que lhe fizera de edição rara do Don Quijote de la Mancha: “Ema de Tännenbaum tá no fundo do poço. No meu também.”
As histórias recriadas, por meio da leitura, na imaginação das crianças, sempre serão insubstituíveis, mesmo quando os adultos as procuram representar com as mais aperfeiçoadas tecnologias.

Um comentário:

Anônimo disse...

Joaquim, não sabia dos seus dons, que é escritor, que tem livros publicados ...., conhecemos tão pouco as pessoas que caminham pelos mesmos caminhos !!! Sou do tempo do João- Bolinha ,da professora que lia historias,fui transportada para uma sala de aula no Marcolino de Barros...ao ler o seu conto ...Parabens !!!!