sábado, 3 de março de 2012

Contos contados de Minas (40)

  Ora-pro-nobis

            As ladainhas, irmãs das jaculatórias e primas dos terços e dos rosários marianos, costumam ser preces que não se originam no coração, mas de bocas cansadas e mentes distraídas. Repete-se, nelas, automaticamente, fórmulas e frases feitas com o pensamento vagando por outros lugares, muitas vezes, nada celestiais. Pessoas insones costumam utilizá-las para atrair o sono, com a distração do espírito, já que o adormecer sempre se faz acompanhar do esquecimento das preocupações diárias. Assim, também o papagaio reproduz o que não lhe cabe entender, e nem por isso deixa de abraçar o céu e os largos espaços, feitos de verdes, como seu penar. A verdadeira oração nasce no coração, no silêncio interior, para melhor reflexão, sem precisar usar os órgãos da fala. É mais parente da meditação que se pratica independentemente das religiões, para melhor saúde das mentes ativas.
A se saltar do pato ao ganso, em matéria de responsórios, o “ora pro nobis”, que veio habitar a sua jardineira, levou-o a freqüentar, uma vez mais, alguns livros piedosos, do tempo de seminário. Há muito estavam esquecidos nos desvãos de estantes, dentre os quais destacava-se o já roto e carcomido Canto Chão, edição de 1934, impresso no Canadá. Ali se acham outras variantes das ladainhas, que, com a planta nada têm a ver, a não ser a originalidade do nome que pode ter vindo a batizá-lo, sabe-se lá, pelo poder nutritivo a trazer ânimo ao corpo assim como às almas das pessoas.
O manual de que se fala, com toda a liturgia em rito romano, com explicação em francês, documenta: “Sancta Anastásia, ora pro nobis! Sancte Antoni, ora pro nobis! Sancti Cosma et Damiane, orate pro nobis! Omnes Sanctae Virgines et Viduae, intercedete pro nobis!” A ladainha de Todos os Santos, cantada em latim e no estilo gregoriano, era rezada, em geral, quando se voltava do cemitério, após rituais religiosos de encomenda e enterro do corpo defunto de algum membro da comunidade. Havia outras que se rezava menos, e, até, algumas, que quase nunca se mencionava, embora se soubesse de sua existência nas páginas de manuais religiosos e no próprio “chant grégorien entrait de l´édition vaticane et  signes rythmiques des bénédictins de Solesmes, nº 800”, que o autor guarda cuidadosamente como lembrança daqueles longes de Mendes.
Um recenseio mais meticuloso pode revelar as ladainhas da Santíssima Trindade, do Espírito Santo, do Anjo da Guarda, de São José, do Santíssimo Sacramento, da Paixão de Cristo, da Imaculada Conceição, da Boa Morte, do Amor de Deus, da Providência, da Infância de Jesus, do Sagrado Coração de Jesus, do Coração de Jesus Solitário, de Nossa Senhora das Sete Dores, do Coração Imaculado de Maria, dos Santos Anjos, do Santo Nome de Jesus, da Virgem Maria, de Santa Ana, de Santo Inácio, de São Francisco Xavier, de São Luís Gonzaga, de São Estanislau Kotska, dos Agonizantes, e, tantas outras, porventura, a se querer encomendar. Ou, até, a se apetecer constituir uma outra, mais original, tão somente com os nomes de tantas litanias. Simões Lopes Neto que venha secundá-lo com o seu Lorota, personagem do conto “O papagaio”! Ladainha não deve ser para se rezar por rezar, e os todos os santos do céu e do purgatório haverão de compensar, indulgentes, com a bem devida compreensão!
Todavia, como já se disse, não é sobre estas invocações e súplicas de piedade e proteção celestiais que se pretende ocupar olhos e mentes, tampouco dos “ora pro nobis”, dos “orate pro nobis”, dos “miserere nobis” e “intercedete pro nobis”, mas da tal planta-arbusto que lhe veio fazer companhia à beirada da janela. Esta levará a louvores e favores, como acontece aos todos os santos e santas, virgens e viúvos, mas, também, a boa dose de imprecações, impossíveis de serem contidas, quando, inadvertidamente, se leva uma boa espetada de garras aduncas e de inúmeras pontas de agulhas. Aliás, existisse concurso entre este bem ou malcriado vegetal, o tal sansão do campo, o temível espinho da macaúba, os infinitos estrepes do fruto do pequizeiro, não se saberia qual desses seria escolhido como o mais hábil em contundências.  
O espécime em evidência é assaz folhudo. As folhas carnudas e luzidias, verde-escuro, carregam uma baba, que as tornam pouco palatáveis, salvo se as enxugar antes do cozimento, portadoras de invejável carga nutricional. A receita de costelinha de porco e ora-pro-nobis, pela boca da senhora de Caetés, ou pelas consultas de endereços eletrônicos adequados, demonstram a importância da planta milagrosa, tão nutritiva quanto ciosa dos  atributos acúleos. Em Minas, nas regiões históricas próximas de Sabará, sua massa folhear é muito bem apreciada na culinária, motivando, até mesmo, festivais gastronômicos.
Agora, pode-se imaginar o quanto, também, seria útil como guardador de casa, perfilado em cercas vivas, em concorrência com o sansão, de mais altura no porte, embora sem os predicados tentaculares, para mais vedação. Outrossim, os brotos abundantes, dado seu valor protéico, vitamínico e mineral, além de alimento para os humanos poderiam ser utilizados para a engorda do gado, em uma mistura, evidentemente, das babas,
Uma das versões para nome tão original parece ser a de que fora roubado da casa de padre, pelos fiéis sabedores de suas virtudes. Enquanto o santo prelado fazia rezar, na igreja, aos cristãos mais devotos, as demoradas ladainhas, os avisados, ou já avezados no vício, costumavam pular a cerca da casa do religioso, para colher as folhas benfazejas, para enriquecerem as magras refeições. Para se desculparem do gesto pouco recomendável, os invasores secundariam do pé da planta as invocações do padre, vindas do templo, com um “ora pro nobis” de inconsistentes arrependimento e entusiasmo.
À semelhança das ladainhas, abundantes e repetitivas, o ora pro nobis não tem nada a desmerecer em abundância. Sua carga folhear dá para nutrir, com um único arbusto, batalhão de apreciadores, sem que se precise adubar as raízes de terra gorda. De um mínimo pedaço de galho faz-se um exemplar a mais, pelo método da estaquia, e, facilmente, aumenta-lhe a população para o que der e precisar.
 Enquanto as lembranças vão tecendo o rosário de súplicas e a mente vai perambulando pelos espaços daqueles longes da serra do Caraça, a população dos “ora pro nobis” enriquecem a mesa dos podres e dos ricos. Segundo as mais vivas tradições culinárias das Minas, nada na Natureza vem por acaso, além de poder temperar um causo.
            Que assim seja, amém, com as graças de Deus e as misericórdias dos “ora pro nobis”, abundantes e salutares.

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