sábado, 29 de outubro de 2011

Pensares a conta-gotas (45)

A intuição ocupa lugar das incapacidades,
dos desconhecimentos e limitações.
A verdade total do circuito do universo
não é dessas porções de Natureza.
Bigbangs, crouchbangs e outras explosões
são hipóteses a empurrarem impossibilidades.
Até onde as tais constantes inquietações?
Até quando, as infinitas incertezas?





A igualdade não é deste mundo,
Tampouco a fraterna liberdade.
Quem pode mais engole o juízo,
Pois o homem com fome,
Come o próprio homem
De improviso.

Até onde, o tamanho do egoísmo,
Se a Natureza sempre se cansa
Do inexorável prejuízo?


Esse tempo molhado, parado,
De ar frio, estagnado, calado,
Carrega um silêncio de domingo,
Diferente, que quase não distingo
Um convite, de volta, ao passado
Colado, e a caminho comigo.

Vozes de crianças, de repente,  
Quebram os espaços quadrados,
E carregam os poucos ensejos,
Para me lembrar do mundo,
Irmanado em um redondo sentir
De nostálgico souvenir.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Pensares a conta-gotas (44)

Meus erros e acertos
gravo-os em céus
e cantos.
Um juiz, imparcial,
não me terá como réu
ou santo.

Aceitará o que de real
houver acontecido comigo.
Caso assim não seja,
não haverá guarida
para sentido na vida.





Com sorte
Dribla-se
A morte.




Não se prevê o futuro,
imagina-se
um além do muro.
Não afirmo o porvir.
Só na mente
O conjecturo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pensares a conta-gotas (43)

(Aos mortos do 11 de Setembro de 2001)

Os homens nascem e morrem,
pela lei da vida e do sistema,
mas não nascem para morrerem,
seja dentro ou fora do cinema.

A violência é fruto de mentes,
que mentem para o mundo,
mas não enganam as pessoas,
no fundo.

A demência torna-se objeto de lazer,
e mais parece ato de prazer,
do que doença sem cura,
no cinema.

Os homens babam seus poderes de morte,
seus tentáculos ultramarinos, bem ferinos,
e massacram até meninos,
no cinema.

As guerras trucidam e matam,
como catástrofes, cataclismos
e acidentes glamurados,
no cinema.

As convulsões sócio-artificiais,
como as desgraças naturais,
fazem graças, como se em teatro,
no cinema.

Mas, os poderosos, corajosos por demais,
tremem só de sentirem a chama,
ou o pigarro,
de um palito de fósforo,
no acender de cigarro,
fora do cinema.

O sangue que se derrama
em outros palcos do mundo
é insensível aos abastardados covardes,
fora do cinema.

O barulho de armas pesadas,
o tremor de tanques no asfalto,
arrastando o desfile de mísseis, perfilados,
no dia da pátria “amada, idolatrada, salve, salve”,
aquecem, nas almas poluídas,
o orgulho das mortes anunciadas,
dentro ou fora do cinema

As bombas atômicas, e os aviões invisíveis,
ameaçam a cabeça de impotentes inocentes,
com festas e discursos sem censura, sem dilema,
sem merecimento de qualquer ternura,
longe ou dentro de sala aclimatada
de cinema.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (20)

Vovô Preto

Seu Francelino Bina era binário, talvez por ter, em vida, valido por dois. Era o Vovô Preto, de idade provável. Nunca teve registro civil, a não ser a partir de quando acharam que ele também tinha o direito de requerer aposentadoria por idade. Os pais, filhos de cativos, convictos da insignificância de sua gente naquela sociedade de senhores, nem se preocuparam em registrar a chegada dos filhos, como era comum naqueles tempos de recém abolida escravidão.
O pai, Gerônimo Bina, detinha, entre outras submissões, a de homem de confiança de meu avô. Quando este ia comprar boi “lá pelos longes do Goiás”, costumava negociar primeiro e pagar depois, na base da palavra dada, do fio da barba, da confiança. De volta com a boiada comprada, providenciava o dinheiro e colocava o “Geromo Bina” na estrada, sobre um cavalo mal arreado, com um saco de notas graúdas, a caminho da Formosa dos Couros, para fazer o pagamento. Os antigos diziam que o “nego Bina” mais parecia um esmoler, pedinte, para não despertar nenhuma suspeitosa atenção e dar conta da empreitada. Da mulher não se tem notícia. Alguns de seus filhos foram o Seu Jacinto, da comadre Justina, o Virgilino, o Juvêncio, que também carregaram o peso e a sina do preconceito, e o Francelino, que mereceria bem mais do que estas relembranças.
Seu Francelino, como nós, os de menor idade, o chamávamos, casou-se no religioso com a Amélia, por obra e graça de padres missionários que, de tempos em tempos, passavam por aqueles lugares menos assistidos pelas bençãos de Deus. Os pobres, e, sobretudo, os negros, não pareciam ser, assim, tão filhos de Deus, como os seus ex-donos e, agora, patrões. A cerimônia na igreja foi ao lado de brancos influentes, como o Lázaro Antônio, morador de casa grande e dono de terras vastas. O fato tem grande importância, pois, muitos anos mais tarde, quando quiseram arranjar uma identidade ao pobre do Francelino, ele nem sabia o que aquilo podia representar. Mas, como aposentá-lo, se não fora registrado? Inventar idade? Foi mais ou menos o que fizeram.
Procuraram o Lázaro Antônio, que o pobre negro lembrava ter se casado no mesmo dia que ele, na mesma igreja do Pântano. Como afirmasse, também, ter, na ocasião, uns dezoito anos, fácil foi descobrir-lhe a idade provável, mês e dia. E, pelo fato de ter sido um serviçal de quantos da família precisaram de sua serventia, meu pai foi designado como patrono de sua aposentadoria.
O que mais Seu Francelino sabia fazer era amansar cavalos e, já, quando fraquejado pela idade, vigiar casas. As pernas longas e finas, além de natural paciência e docilidade, o habilitavam, como quase ninguém, a colocar um cavalo no ponto de boa sela. Animal que passasse pelas rédeas de um igual amansador aprendia a chegar do lado certo das porteiras, na hora de abrir a taramela. Sem cisma, e um mínimo soslaio, na hora de o cavaleiro colocar o no estribo da sela e jogar o corpo para cima dele. Confiava no cavaleiro como confiara no amansador, que lhe ensinara bons modos e a ter confiança nos homens, sem receber ralhados, e relhadas nas pá ou anca desmobiliadas. Cavalos passarinheiros, refugadores contumazes perdiam logo a mania, a ponto de nem se importar quando um coxonilho desprendia da sela, ou um cupinzeiro de terra branca brilhava ao clarão da lua cheia. Se ocorria a venda da alimária, a informação sobre “quem foi o amansador” facilitava o negócio. “Então, eu levo, sem susto”!
Quando alguém tinha que se ausentar por um prazo de tempo mais dilatado, corria atrás do Francelino, para zelar-lhe a casa. Sabia que, quando chegasse, tudo estaria como deixara. E, depois, ele nem era de cobrar. Pagava-se o que se quisesse ou pensasse merecer, sem reclamação ou cara feia dos que comem primeiro para acertar depois. E, no tocante a comida, ele comia pouco e sua tralha era minguada e rudimentar. Duas panelinhas de ferro, dois pratos esmaltados, descascados, dois garfos tortos, enferrujados, mantimentos essenciais, feijão, arroz, lingüiça ou carne de lata, conservada na banha de porco, quando tinha, um vidro com sal, que este era indispensável para dar sabor ao resto, além do alho e cebola, quando coincidia ser o dono da casa mais farturento, ou mão-aberta. Lugar para dormir podia ser um canto qualquer de cômodo vazio, onde espalhava uns feixes de sapé, que cercava com pedras ou pedaços de tijolos. Um trapo de pano de saco servia-lhe de lençol. Se fizesse frio, um poento cobertor “enrola negrinho”, como ditava o preconceito, tapava-lhe os pés, descobrindo-lhe a cabeça, ou vice-versa.
 E, por falar em tapar os pés e deixar à descoberta a cabeça, sua estatura avantajada quase chegava, na juventude, a um metro e noventa. Parecia não esfriar as extremidades, a ponto de algumas pessoas, de línguas compridas, poderem dizer de sua calma atávica e ancestral que “no rastro do Francelino, assava-se uma broa”. Mas isso dizia mais respeito aos resquícios dos tempos de cativeiro em que as maldades de senhores de escravos não mereciam aval.
bem velho, no final da vida e morador de casa popular na cidade, “Vovô Preto” ainda pedia permissão a meu pai para passar algum tempo em uma casinhola abandonada e bem judiada pelo tempo, pelos fundões da Serra Feia. Por ficava alguns meses, pelos tempos das águas. Plantava feijão, arroz, milho e abóbora, que eram de colheita mais rápida e podia servir-lhe de alimento, sem precisar buscá-lo na cidade.
Não sei se preocupado com os destinos do antigo camarada, ou somente para trocar com ele uns dedos de prosa, meu pai, com freqüência, costumava pegar um cavalo e ir visitá-lo. Pretextava ter medo de que lhe ocorresse algum acidente, deixando-se morrer sozinho naqueles socavões de entre morros. Era as únicas visitas que recebia em meses, que a Amélia e os filhos pouco caso pareciam fazer dele. Em uma dessas ocasiões, eu também quis irver a quantas andava a sua já velha figura.
As duas panelinhas de ferro estavam sobre a trempe da fornalha e o feijão fritava no alho e banha, deixando o cheiro exalar bem longe, e remexer com o estômago de quem vinha. Não sei se meu pai escolhia a hora da chegada e a freqüência das  visitas por causa, também, daquele cheiro, que apreciava por demais a “bóia gorda do Francelino”.
O tempo passou, e ele, depois de sentir fraquejar ainda mais as pernas finas, de amansador de cavalo brabo, passou a morar na sua casinha popular da cidade. A Amélia não lhe dava muita atenção, e dizia-se, até, que dormiam em camas e quartos separados. Os olhos de vista cansada, leitosa e tomada pela catarata, ficavam olhando para o tempo, à espera da morte. Minha irmã caçula o levava ao banco para a retirada do minguado dinheirinho da aposentadoria e à compra de algumas calças, camisas e botinas. O resto bastava para a Amélia ou as duas filhas munirem-se do alimento diário.
Quando ainda criança, de braços, minha irmã jamais recusava os carinhos do Francelino, como se pensava, à época, pudesse acontecer com crianças brancas. O preconceito se subentendia até naquela aparente demonstração de afeto, em chamá-lo de Vovô Preto. Minha mãe se lembrava bem de quando meu pai passou a chamá-lo por essa alcunha familiar. Meus ouvidos foram os primeiros a vibrarem com aquele som carinhoso. Meu pai jogava truco com amigos, na casa da, agora, Fazenda Mata dos Angicos, e sem poder pegar-me no colo, por causa da atenção e pressa no carteado, disse à minha mãe, apontando para o morador da casa: “Deixe-o com o Vovô Preto”. E, assim foram o dito e o efeito.
Por estes derradeiros tempos, eu guardava com estima e reconhecimento uma das suas duas relíquias de ferro, que, de tão fina pelo uso dos anos, trazia um rachado nas bordas. Uma solda amarela tornou-a de utilidade novamente, uma vez que, para se fritar um ovo não há igual. Batata frita e feijão gorduroso, então, é um convite a se voltar o pensamento para o ex-dono, rodeado da trempe rústica. A outra panelinha de ferro, como não podia deixar de ser, já tinha herdeira, como prova do reconhecimento que seu ex-dono sempre depositou nos filhos de meu pai, o qual, de bom grado, se fez, dele, patrão, para que pudesse receber o dinheiro da aposentadoria, e, ainda, trazer-lhe um pouco mais de dignidade e alívio ao viver anônimo.

domingo, 23 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (19)

A Cruz do Balandino

Caminheiro que passas pela estrada,
 Seguindo pelo rumo do sertão,
 Quando vires a cruz abandonada,
 Deixa-a em paz dormir na solidão.” (Castro Alves)

Pai e filho fizeram o serviço, mataram o homem que fizera mal à mulher de um e mãe do outro. Por causa disso, ficaram presos por muitos e muitos anos na penitenciaria das Neves, nas cercanias de Belo Horizonte. O filho foi o primeiro a voltar de . Refez a vida, casou-se, mas não teve filhos. O pai ficou mais algum tempo, porque além de principal responsável pelo crime, ainda fez a covardia de castrar a vítima, antes de ouvir-lhe o último suspiro. Isso é o que contam os mais antigos daqueles lugares.
Do tempo de eu-menino, conheci o filho, depois de cumprida a pena, meio andarilho, solitário, vagamundando a cavalo, chapéu de abas largas, talvez para ocultar-lhe mais o rosto aos transeuntes daquelas estradas poeirentas. Aparecia, de vez em quando, na casa de meu avô, era carinhoso e dizia palavras doces à minha mãe e tia, como estas mesmas lembravam. O pai, ao que parece, quando voltou, poucos anos durou, antes de morrer, sem muito se mostrar para as pessoas. Envergonhado, calado, naquela casa à beira do mato, de menos céu e de poucas visitas. Arrependido? Talvez! Ninguém podia afirmar.
Uma triste história, relembrada pela presença de uma cruz que se plantou no lugar onde o fato se deu. Ficava à beira da estrada, como era o costume, para que as pessoas, ao passarem, pudessem, além de tirar o chapéu e rezar alguma oração pela alma do morto, rememorar o acontecido. Aquela não devia ser uma boa lembrança, pelo menos para os que haviam conhecido o falecido e, também, os autores do crime. Meu avô era um deles.
Fiquei sabendo o grosso daquela história, ainda nos tempos de criança, de muita imaginação e pressentimentos. Ao passar, certa vez, por ali, a cavalo, meu avô, cunhado torto do finado, depois dos gestos costumeiros de levantar o chapéu, com o dedo indicador, para proferir a saudação, em tom inaudível de voz, resolveu puxar conversa com o neto, sobre o caso.
-Você sabe quem está enterrado, ? É o Balandino, filho natural de seu bisavô, meu sogro.
Aquilo para mim não teria muito o que acrescentar, não fosse o olhar um tanto inusitado do meu interlocutor, acrescido de um espremido de pálpebras e um brilho nos olhos, que se faziam, ainda, acompanhar de um meio movimento nas comissuras dos lábios, um quase sorriso, indefinido, entre o respeito e a  malícia, pelo qual o preconceito podia se responsabilizar. Ser filho natural tinha algo de pecaminoso, sobejado de vergonha, de acordo com a moral social da época e do lugar.
A culpa estava sempre do lado mais fraco, da mulher desvalida, do filho bastardo, do estupro concretizado, do assédio, sem oposição de quaisquer resistências. Tudo conseqüência de ditames de virtudes, da confissão religiosa dominante. Adultério e bastardia andavam de mãos juntas no escuro do dia após dia dos de mais posses e poderes, de mais mando e desmandos, acobertados à socapa da sociedade patriarcal. Ao senhor tudo se perdoava, ao subalterno, o castigo sem perdão, mesmo que de punição estritamente moral. O Balandino nunca teve reconhecimento cartorial de paternidade, e, talvez, por isso, vivesse como cão danado por desguarnecidos terreiros.
Meu avô era homem sério e jamais se permitiria qualquer conversa leviana com o neto. Mas eu tinha suficientemente capacidade de separar o certo do errado, o claro do escuro, segundo as convenções culturais do contexto.
           O tempo foi apagando aquelas nódoas, e a cruz do Balandino, embora  trocada de lugar, com a reforma das estradas, ainda, lá permanece, para dar pouso aos pássaros desavisados dos costumes hipócritas dos humanos. E os mais jovens, um dia, haverão de deixá-la cair, apodrecer ao relento, como apodrecem, também, preconceitos e ideologias inconsistentes, cada vez mais menosprezados pelos de mais coração.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (18)

O andarilho errante e o dono da funerária

Seu “O” é gente de grande valor. Trabalhador, bom amigo, bom de prosa e um coração a todo vapor, como seu carro vetusto, que cruza os poeirentos caminhos, quase que diariamente, em direção de umas terras, há pouco compradas, longe das cidades. O seu ramo de negócio não é ou, pelo menos, foi dos mais procurados e invejados pelas gentes, de um modo geral. Mas fazer o quê? Morte também tem que render algum dinheiro, e algumas vezes, dependendo das circunstâncias, de tempo e de lugar, pode-se até fazer fortuna com a dita, nem sempre maldita. Não foi o caso do nosso personagem, mas, parece, que, quanto a isso, Seu “O” não tem muito o de que reclamar, nem o de que duvidar, porque a única coisa certa na vida é mesmo a morte. Miserável ou faustosa ela não perde a hora, nem o lugar de chegar.
De cama feita, ele comprou as terras, foi mexer com a natureza viva e deixou o negócio das funerárias para os filhos tomarem conta. Mas fez diferente dos seus conterrâneos e vizinhos, fundiários conservadores das tradições. Em vez de ceder os bens aos filhos e guardar o uso-fruto até que a morte o leve, conservou os bens e os cedeu aos filhos para que estes conheçam primeiro o suor do trabalho, antes de gozarem dos privilégios que o pai suou para ganhar.
Sua pequena propriedade rural é modelo de limpeza e de inovações, que vai ideando para facilitar a sua vida e a dos animais com que lida no dia-a- dia. Além disso, costuma observar como a natureza faz seu tanto, sem os atrapalhos que os homens vão lhe arranjando com o chamado progresso da civilização e da tecnologia. Plásticos, por exemplo, não admite em suas terras, jogados daqui-prali, ao deus-dará. Enriquecer não está em seus planos, pelo menos é o que se observa pelo andar de sua carruagem, de marca e lataria bastante envelhecidas. Talvez procure, com sua saúde de ferro, envergar e não quebrar, para adiar um pouco mais o encontro com aquela que, por muito tempo, lhe serviu de sócia nos negócios.
Entre tantos assuntos de boa prosa, um dia, Seu “O” fez-me uma confidência sobre o tratamento que costuma dar a uma categoria de gente com quem, comumente, ninguém se preocupa: os andarilhos, caminhantes erradios, sem teto, sem destino certo, maltrapilhos molambentos sem lugar para tomarem um banho, comerem um pão dormido ou repousarem decentemente. Judeus errantes, como se dizia, antigamente, carregando saco às costas, enegrecidos pela fuligem dos carburadores de carros, cada vez mais velozes e desalmados.
Seu “O” gosta de pensar diferente dos outros, não por orgulho, para ser meramente diferente, mas por desafio, por procurar novas soluções para os problemas. E, nisso, tem inteira razão, que missão de gente inteligente é descobrir o que ninguém ainda descobriu ou viu. 
Segundo ele, depois de acurada observação dos andarilhos, no seu vagar a esmo deles, limpam as estradas e rodovias de pedaços de pneus, desgarrados de caminhões carregados acima de legal tonelagem, de lixo jogado, de pedras pontiagudas, de pregos enferrujados e de outros objetos que o dito progresso vem desovando ao longo das vias, motivando acidentes e tantas mortes. De recompensa, mesmo, esses tais vagamundos só encontram a satisfação de poder apresentar a São Pedro as boas ações, com o adiamento de mais tantas cruéis fatalidades, apesar de o santo chaveiro estar pouco ligando com a turma que chega, a cada dia mais numerosa, à sua porta!
Paradoxalmente, Seu “O”, dono de funerárias, comerciante por profissão e parceiro do obituário me disse, um dia: “Todo e qualquer andarilho que morrer perto de onde possuo meu comércio não se enterra como indigente comum. Garanto-lhe caixão distinto e serviço de gente decente, pelo que fazem em favor dos outros transeuntes”
           Pensei: Seu “O” tem, mesmo, um pacto com a morte, sobretudo quando ela se faz próxima da indigência. Mas a pobreza pode bem ser pactuada com a decência, e o mais mínimo benefício, que a ela se pode fazer, enaltece a condição humana para um viver condignamente.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (17)

Caso de onça

Finjo que tudo aconteceu como o fato se deu, mas não é bem assim. Quem conta um conto aumenta um ponto, uma vírgula, um tanto, para tentar dar ao relato uma veracidade que não mais existe, a não ser na mente do  próprio contista.  Como disse Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor / que finge tão completamente que é dor / a dor que deveras sente”. A cada instante, o fato narrado muda de figura e tom, na cabeça do autor-contador. Ele inventa, e procura se reaproximar do real. O ficcionista faz da verdade uma mentira, que atrai mais pelo como se conta, do que pelo como se deu o acontecido. Da verdade doída e, até, raivosa, cria-se a mentira sã e dadivosa. Do real, faz-se a ficção, para o prazer da leitura, ou da audição.
Destarte, o contador não tinha nenhuma dúvida, e garantia: “era mesmo onça e das “bitelas”. Assim, ó”, e fazia o gesto com os braços em curva, que mesmo não sendo compridos, devido à sua pouca envergadura, ao se encontrarem nas pontas dos dedos, davam bem a dimensão avantajada da cabeça do animal... E repetia de novo o gesto, enquanto interrompia o relato, os olhos bem acesos, arregalados, para se assegurar da estupefação que seus modos causavam nos ouvintes. “Da ponta do rabo, até a extremidade das orelhas, a bicha tinha mais de dois metros. Isso mesmo, mais de dois metros, e, ainda por cima, era preta, a mais perigosa das onças”. Para ele, onça pintada era a fêmea, e, onça preta, o macho. Por conseguinte, mais forte e de porte maior. Ele sabia, onça é bicho que se encontra para acasalamento, como gato, jaguatirica, e que a fêmea é mais perigosa quando está de filhote. Em outras situações, na ora de onça beber água, no comum, no socavão dos matos, o macho pode ser mais perigoso. Ali era o caso, onça preta, na beira d´água, solitária em noite sem lua, escura que nem breu, topado.
Mas ele, Etelvino Cassiano, nunca teve medo de onça, até porque andava no mato com uma garrucha de dois canos presa à cinta, sempre carregada. E, depois, ele sabia, notícia de onça corre ligeiro, que uma onça andava fazendo estragos nas redondezas. Na ocasião, ele estava trabalhando com mais alguns companheiros na capina de uma roça e dormiam em um rancho de sapé, improvisado, coberto por cima com folhas de coqueiro e aberto dos lados. De noite, era aquela disputa para ver quem é que ia dormir no meio ou na beirada. Se a danada viesse, o da beirada sumiria primeiro, assim como em fila, o último é atacado por primeiro pela onça traiçoeira. Diz-se, até, que os índios costumavam camuflar de folhas verdes o último da fila para enganar o felino. “Andava, até, de fasta". Assim, ele explicou, naquela noite de relatos, com demorados olhares de cantos de olhos.
Intercalando as pausas de silêncio, para o suspense necessário, ele contou que, um dia, o animal veio fazer uma visita ao acampamento, mas ficou a uma certa distância, do outro lado da grota, onde os roceiros se abasteciam de água, observando e estudando para ver o melhor jeito de agir para conseguir seu tanto, de prândio e água. Foi , que ele, o da beirada, se deu conta de seus dois olhos alumiando no escuridéu, e resolveu a enfrentar a desavergonhada.
Levantou, devagarzinho, com a garrucha na mão. Caminhou para a banda do bicho e atirou no meio das duas brasas acesas. Um tiro e tão certeiro, sabia, que jogou a garrucha de lado, para apanhá-la depois, como iagual ao gesto que fazia, ali, com as mãos desimpedidas. Não precisava de outro tiro, que para isso não existia ninguém como ele, no lugar. Ouviu, ainda, um barulho de corpo escorregando por sobre gravetos e capim seco, e voltou para dormir, que no breu não era mesmo possível constatar se o bicho era, mesmo, grande, fêmea ou macho. Macho, devia de ser, pelo peso no desabar.
No dia seguinte, pela manhã, é que pode avaliar com precisão o acontecido. Era mesmo o que tinha pensado. A onça era das grandes, “a cabeça, ó, era isso”, e abria os braços recôncavos, o mais que podia, para causar maior espanto. Os ouvintes guardavam o silêncio à espera do resultado do relato. O corpo ao escorregar pelo barranco foi fazendo aquela “massada”, o sangue regando o trilheiro até o ponto da aguada. No meio da testa, o buraco escuro da bala, o sangue pisado. “Essa foi a maior das onças que matei, mas tem mais.” E seus olhos brilhavam de encontro àqueles dos presentes, hirtos e calados, se nem tanto por medo, pelo menos pelo ato do ouvir e do contar.
          Mentiras? Balelas? Isso é que não! Contador de Histórias não mente! O que mente é a mente doente, que pensa ser mentira o que o mentiroso deveras sente.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pensares a conta-gotas (42)

Quando penso
que nada mais haverá
o que dizer,
surge um quê qualquer
a me desdizer.

O que fazer, então,
senão me render,
sem saber
donde provém a razão
de tal ocorrer?





O tempo de vida é por demais escasso,
E poucos os instantes de se saber
Como haverá de ser os outros minutos,
Sempre mais curtos de mais viver.

A vida de uma só vez perde a graça,
Com a eternidade se dividindo
Em só prazer ou em só desgraça.

Por que razão concebe-se o eterno,
E, nele, ainda, se coloca o inferno?

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Pensares a conta-gotas (41)

(De um sonho)

Descubro que existo e dependo de todos e de tudo.
Ainda, somos abundantes, os amigos do absoluto.
Todos crescemos, a cada instante, adiante,
(a cada dia, a cada mês, a cada ano,
a cada eterna idade, no universo, em paz).
Somos muitos, os viventes, e a seta comum é eficaz:
os valores bons, os amores tantos, o sermos santos.

Só sei que os amigos existem realmente,
não os agentes sonhados, longe dos fatos.
Menosprezo os pesares, as carências, os conflitos.
Vislumbro, também, o que move as boas intenções,
os vastos ideais, os atos de bem.

Não se para, por aqui, com encontros casuais.
Uns começando, outros terminando os caminhos,
para continuarem andando em outros patamares,
sempre subindo o monte dos valores,
nossos, de todos, impregnados de amores.

Esqueçam-se as dissensões, as guerras de nervos,
os maus olhares, os maus humores.
Promova-se o grito da independência das dores,
razão dessa eterna permanência nos ares.

As vias são sem limites, infindas, porque infinitas,
com idas e vindas, que nos permitem viagens,
não por estas lácteas galáxias,
e nebulosas tais, e cada vez mais,
de que nem se sabe se são pós de polvilho,
ou apenas sementes a pulverizarem mentes,
em noites cheias de trovas,
de luas cheias e de luas novas.

Um dia se saberá as razões de sermos o que somos,
desse universo certo e sem cercas.
Conceber-se-á o ilimitado do tempo imenso,
e, porque somos incansáveis exegetas,
cresceremos, para alcançarmos o inalcançável.

Para tanto, vivamos para viajarmos, amigos, juntos,
mesmo que, incontroláveis profetas
dos incógnitos mundos,
mesmo que nos aconteça afastarmos,
momentaneamente, das metas .

sábado, 8 de outubro de 2011

Pensando a conta-gotas (40)

(Pensando em Auguste de Saint-Hilaire,
 em "Viagens" pelo Brasil)

O sábio viaja, sem descansos,
sem confortos,
com a inédita bagagem
de animais, folhas e flores,
e espantos.

A chuvas enchem os córregos e rios,
e regam as plantas das matas virgens.
As águas e o sol nem sempre ajudam
ao cavoucar ainda mais os barrancos.
As mulas atolam no barro
e rompem caminhos, dificultosamente.
O arrieiro adoece de febrão persistente.

O cientista sofre e se contenta
de frugalidades, sem privacidades.
As pulgas e os bichos-de-pé
desconhecem-lhe o nome.
As curiosidades dos moradores
atrapalham-lhe o trabalho de pormenores.

Vive pouco, nas poucas hospitaleiras estalagens.
Come mal, dorme mal, muito mais ainda anda,
para não deixar escapar à posteridade
a visão da herança universal,
que a ciência haverá de conservar
da fauna e da flora da terra brasilis.

E ele olha, ele enxerga e colhe
e recolhe amostras,
guardando em baús de lata seus cuidados.
Descreve, analisa, e revisa
os critérios de seus achados.

Mas é a idéia sadia que tem da natureza
a essência de sua corpórea magreza.