domingo, 2 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (16)

No translado do Morro Alto

Pai e filho conversavam pouco. Por aquelas beiradas de serra, córregos e rios, quanto menos se conversava mais respeito se impunha. Observava-se o rito mínimo necessário, e, assim mesmo, mais se falava por gestos e olhares do que por palavras. Além do mais, o vocabulário pouco e a autoridade imperiosa.
Nesse entrementes, o fato, de pouca monta e mais deduções, se deu nas alturas do Morro Alto, quando a poeira dos cascos do gado embaçava as vistas e aguçava a imaginação que se transformaria em leves lembranças vindouras.
O nome do topo tem lá seu sentido: do alto pode-se divisar uns bons pedaços de mundo. De um lado, o vale do Espírito Santo, que vai serpenteando até a serra que contorna a Vila Guimarânea. De outro a Bocaina, ponto final do divisor das águas do mesmo rio com as do Santo Antônio das Minas Vermelhas. Um pouco mais longe, o começo dos chapadões. Mais ao longe as terras baixas por onde escorrem mais águas pequenas que vão se ajuntando aos dois cursos maiores para formar o rio Paranaíba, que no correr das léguas vai engrossando o corpo com os volumes daqueles córregos todos. À noite, dali se observa luzes das cidades de Patos, Patrocínio, Carmo do Paranaíba, Lagoa Formosa, ou os clarões minguados de lugarejos mais distantes, como os da Boassara, do Lagamar e do Pântano dos Coromandéis. O morro é lugar de maior trânsito, talvez por serem poucas as opções de estradas para se chegar à região dos Caixetas para quem provinha das bandas do Santo Antônio ou da Serra Feia, e vice-versa.
Menino ainda, naquela época, mas havia muito acompanhava meu pai por onde ele resolvia andar, pois que não costumava dar muita explicação de suas intenções e itinerários, Mas isso nem precisava, porque menino não tinha mesmo querer. Era só adivinhar e seguir os rumos do pai, pois que toda caminhada dava sempre de volta à casa.
Naquele dia eu tinha companhia, e quase de minha idade. Meu primo nos acompanhava no trecho. Estávamos a cavalo, conduzindo uma ternada de vacas, bezerros, e novilhotas. Miudezas catiradas daqui pr´ali nos arredores.
No translado do Morro Alto, um cavaleiro, como era corrente naqueles caminhos, fez-nos frente e logo parou para tirar um dedo de prosa com meu pai, os cavalos cheirando o suor dos quartos do outro. Conversa vai, conversa vem, fuminho bom dali, palha de pito daqui, faz um do meu, dê-me uma pitada do seu, o canivete roendo o rolo e o tempo passando vagaroso. Mas o gado não podia esperar aquela arenga, tinha que seguir caminho, e meu pai me fez gestos para ir tocando em frente. Eu já conhecia bem os costumes e sabia que, naquelas circunstâncias, a prosa iria encompridar. Tive, entretanto, a idéia de perguntar para que lado virar, se para a Fulminante, se para a Serra Feia. “Pra casa”, já gritou ele, para atalhar mais a prosa, pela circunstância, resumida.
Estes dois nomes estranhos eram os das duas partes da fazenda, separadas uma da outra pelo Santo Antônio. A morada, mesmo, era na Fulminante, e foi para lá que, disse ao meu primo, levaríamos o gado. Sozinhos, sem a presença inibidora de meu pai, pusemo-nos também em adolescentes prosórios. A distância do meu pai crescia com o pisar dos cavalos e das reses. Àquela altura ele já devia estar tirando baforadas do fumo macio do companheiro que, por sua vez, já baforava a fumaça cheirosa do fumo de lata, com banana de baunilha, que meu pai guardava por debaixo da cama, ou sobre o guarda-roupa, como de costume. E nós ali, na cadência dos passos, seguindo o gadinho ralo, distraídos nas conversas de menino.       Na encruzilhada, eu já sabia que direção tomar. Era virar o gado para a esquerda e continuar no balanço gostoso dos cavalos a jogar fora, ao vento, risos e palavras.
De repente, um tropel de cavalo a galope. Estranhei. Era meu pai que vinha chegando e, logo, esbravejando comigo. Não era para virar para aquele lado. Tínhamos que passar primeiro na Fazenda dos Coqueiros, para pegar mais umas rezinhas. Tive, então, de ficar esperto, no ajudá-lo a virar o gado e desfazer o caminho até andado.
Isto feito, ficou o desapontamento, a sem-gracesa do momento. O meu primo, com quem meu pai se permitia muitas conversas e até gracejos, também se emudeceu com o repentino do acontecido. Eu, que, costumeiramente, já quase não conversava com meu pai, calei-me de vez, envergonhado na revolta interior.
Passados alguns longos minutos, em que só se ouvia o barulho rastejado de cascos chutando poeira no chão, o meu pai resolveu quebrar o gelo daquela situação.  Perguntou ao sobrinho se fosse para ele escolher dentre aquelas criações, qual delas escolheria? Meu primo foi logo acedendo à pergunta e, depois de bem avaliar, escolheu o melhor dos animais. E, eu, que criação escolheria? Para não faltar-lhe com o respeito, sem deixar de responder ao que perguntava, mas ao mesmo tempo querendo marcar o meu descontentamento com tamanha dureza no trato, mostrava a primeira rês, a da rabeira, a mais cansada e magra, a derradeira, e apontava bissilabando: “esta, aqui”.
           E assim, de “escolha mais uma, e você com qual fica”, o caminho encurtou, o tempo passou e tudo foi chegando aonde sempre chegava: à casa, novamente. Do Morro Alto, das poeiras dos caminhos e enroscos para o pito de palha e o fuminho gostoso, que tanto encurtou a vida de meu pai, ficou a lembrança, que o tempo vai se encarregando de transladar para momentos de mais prazeres do viver mais perto de si mesmo.

Nenhum comentário: