domingo, 23 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (19)

A Cruz do Balandino

Caminheiro que passas pela estrada,
 Seguindo pelo rumo do sertão,
 Quando vires a cruz abandonada,
 Deixa-a em paz dormir na solidão.” (Castro Alves)

Pai e filho fizeram o serviço, mataram o homem que fizera mal à mulher de um e mãe do outro. Por causa disso, ficaram presos por muitos e muitos anos na penitenciaria das Neves, nas cercanias de Belo Horizonte. O filho foi o primeiro a voltar de . Refez a vida, casou-se, mas não teve filhos. O pai ficou mais algum tempo, porque além de principal responsável pelo crime, ainda fez a covardia de castrar a vítima, antes de ouvir-lhe o último suspiro. Isso é o que contam os mais antigos daqueles lugares.
Do tempo de eu-menino, conheci o filho, depois de cumprida a pena, meio andarilho, solitário, vagamundando a cavalo, chapéu de abas largas, talvez para ocultar-lhe mais o rosto aos transeuntes daquelas estradas poeirentas. Aparecia, de vez em quando, na casa de meu avô, era carinhoso e dizia palavras doces à minha mãe e tia, como estas mesmas lembravam. O pai, ao que parece, quando voltou, poucos anos durou, antes de morrer, sem muito se mostrar para as pessoas. Envergonhado, calado, naquela casa à beira do mato, de menos céu e de poucas visitas. Arrependido? Talvez! Ninguém podia afirmar.
Uma triste história, relembrada pela presença de uma cruz que se plantou no lugar onde o fato se deu. Ficava à beira da estrada, como era o costume, para que as pessoas, ao passarem, pudessem, além de tirar o chapéu e rezar alguma oração pela alma do morto, rememorar o acontecido. Aquela não devia ser uma boa lembrança, pelo menos para os que haviam conhecido o falecido e, também, os autores do crime. Meu avô era um deles.
Fiquei sabendo o grosso daquela história, ainda nos tempos de criança, de muita imaginação e pressentimentos. Ao passar, certa vez, por ali, a cavalo, meu avô, cunhado torto do finado, depois dos gestos costumeiros de levantar o chapéu, com o dedo indicador, para proferir a saudação, em tom inaudível de voz, resolveu puxar conversa com o neto, sobre o caso.
-Você sabe quem está enterrado, ? É o Balandino, filho natural de seu bisavô, meu sogro.
Aquilo para mim não teria muito o que acrescentar, não fosse o olhar um tanto inusitado do meu interlocutor, acrescido de um espremido de pálpebras e um brilho nos olhos, que se faziam, ainda, acompanhar de um meio movimento nas comissuras dos lábios, um quase sorriso, indefinido, entre o respeito e a  malícia, pelo qual o preconceito podia se responsabilizar. Ser filho natural tinha algo de pecaminoso, sobejado de vergonha, de acordo com a moral social da época e do lugar.
A culpa estava sempre do lado mais fraco, da mulher desvalida, do filho bastardo, do estupro concretizado, do assédio, sem oposição de quaisquer resistências. Tudo conseqüência de ditames de virtudes, da confissão religiosa dominante. Adultério e bastardia andavam de mãos juntas no escuro do dia após dia dos de mais posses e poderes, de mais mando e desmandos, acobertados à socapa da sociedade patriarcal. Ao senhor tudo se perdoava, ao subalterno, o castigo sem perdão, mesmo que de punição estritamente moral. O Balandino nunca teve reconhecimento cartorial de paternidade, e, talvez, por isso, vivesse como cão danado por desguarnecidos terreiros.
Meu avô era homem sério e jamais se permitiria qualquer conversa leviana com o neto. Mas eu tinha suficientemente capacidade de separar o certo do errado, o claro do escuro, segundo as convenções culturais do contexto.
           O tempo foi apagando aquelas nódoas, e a cruz do Balandino, embora  trocada de lugar, com a reforma das estradas, ainda, lá permanece, para dar pouso aos pássaros desavisados dos costumes hipócritas dos humanos. E os mais jovens, um dia, haverão de deixá-la cair, apodrecer ao relento, como apodrecem, também, preconceitos e ideologias inconsistentes, cada vez mais menosprezados pelos de mais coração.

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