sábado, 24 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (56)

Arrepender-me do que não fiz
É defeito grave de raiz.
Do pé da planta à ponta dos galhos,
Subo minha seiva de orvalhos,
Sem dar-me por satisfeito,
Com o resultado dos retalhos.

Do quase nenhum efeito,
No que sempre busco creditar,
Nesse leva-e-traz de preceitos,
De faz-de-contas e fracos conceitos,
Sou, em chafariz de feiticeiro,
Aprendiz de grandes aguaceiros.


Os negócios sempre contiveram,
para muitos, as perdas,
e os ganhos para poucos,
os contendores, sócios loucos.

Enormes os danos e temores,
grandes as rendas,
tamanhos os prejuízos,
pequenos os rigores.

Tacanhas as regras,
não menores as tréguas,
as dívidas, sem réguas
e nenhuns os valores.




Queremos nos abrir em leques de acordes,
como nos cantos dos franzinos passarinhos,
ou  no leve ressonar das crianças no ninho,
longe dos resmungos dos velhos desatentos.
Mas, no buscar repassar os tempos sem tempo,
achamos longo o caminho de esquecimentos

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (55)

Contentamo-nos com pouco,
Que o muito, pouco nos importa,
Menos acrescenta à carga
Que carregamos pouca,
E torta.

Apenas a calmaria nos apoquenta.
Tira-nos a liberdade de ir e vir,
E ainda costuma nos privar
Da graça de mais porvir,
E de poder sonhar.

Nada nos desperta,
Nem sonhos,
Nem aconchegos,
Ou pesadelos.

Assim, isentos,
Ainda insistimos
Em nossos intentos
De caprichos, desejos,
Zelos ou desmazelos.

Caminhamos, de olhar fixo,
Sem eira nem beiras,
Um tanto rijos.
Beiramos ladeiras.




Não passou pela vida,
Inútil mente,
Nem deixou herança,
Inconsútil.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Isso e aquilo dos bichos (2)

A formiga,
Inimiga da fadiga,
carrega migalhas,
e não foge da trilha,
e da tralha.


A garricha, lá do lampadário,
Protege, no diário, ninho e crias.
Estribilha vibrante de contente,
Propagando, inocente mente,
Graças e alegrias no estribilho.
Sem precisar, para tanto brilho,
Perder o encanto da vida
Com desgastes de fértil pilha.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (29)

Chico-doido e a Tervina-do-Zé-Chico

O Chico da Rosa, o Compadre Chico de meu pai, homem cumpridor, nada tinha de excepcionalidades no juízo, mas recebera o apelido de Chico-Doido por obra da Etelvina, conhecida nas vizinhanças por Tervina do Zé-Chico. Velha e solitária, mãe do Vicente, mais conhecido como Vicente da Tervina, esse, sim, ocupante de mente reduzida e corpo avantajado. Alma simples, que sempre acompanha e protege a quantos a ela recorrem, da qual também se guarda lembranças e crenças, por aquelas alturas da Fulminante.
 Pois bem, a Tervina era moradora de rancho de pau-a-pique, com cobertura vetusta de telha colonial, das tais ainda moldadas nas coxas de escravos, cercado de palmeiras-guariroba e pasto jamais batido, que gente do lugar identificaria como capoeira rala. Água, buscava-se no balde, adentrando mais profundo na mata mais densa. A pobre coitada, de idade provável, era daquelas que acreditavam nas forças do céu e do inferno, em espíritos bons e maus, e alimentava as superstições com sua ignorância existencial. Qualquer sinal que aparecesse de inusitado, trazido pelas forças da natureza que a cercava de perto, poderia ter conotação de “feitiço”, realizado por mãos humanas.
 Também, pudera! A Tervina vivia o seu tempo maior de vida sozinha, em meio ao balanço dos ramos verdes e o estralar dos galhos secos, guardados amontoados em um cômodo do rancho, com os quais fazia seu foguinho de fornalha de barro, para cozinhar arroz com feijão, alguma mistura que nascia ao deus-dará. Nem horta tinha, a não ser algumas plantinhas para servir de remédio, quando a precisão beliscava no corpo ressequido. Do fogo, alimentava também o cachimbo que devia trazer certo alento aos escassos pensamentos. Do que conseguia amealhar, ou, melhor, o filho deficiente lograva ganhar, nada podia ser desperdiçado. Uma das poucas testemunhas de suas condições de sobrevida contou que, para recuperar um grão de feijão ou de café a ser socado no pilão, era capaz de remover, com a maior dificuldade, boa parte dos gravetos que ia depositando por ali, até que, bem secos, os amontoava no quartinho costumeiro, perto do fogão de lenha.
Testemunha-se, também, que criava, soltas nos pastos, algumas galinhas raquíticas, filhas do sempre mesmo galinho bastardo que se encarregava de, com a voz estridente, dar umas notas de alegria àquele ambiente de hábito tristonho. Sem com quem conversar, a Tervina falava sozinha, ou com as galinhazinhas, às quais dava nomes diferenciados. A Boneca e a Espevitada eram as mais atenciosas aos seus apelos de atenção, talvez à espera de alguma sobra de arroz queimado ou de feijão requentado. Dos coqueiros, recolhia os frutos e os guardava a um canto do rancho, para quebrá-los e retirar deles a castanha, sob os olhares gananciosos de alguma menina da vizinhança.  A Tervina não era má pessoa e carregava doses de convivência social, trazidos dos velhos tempos de moça solteira.
Viúva precoce do tal Zé Chico, só teve um filho, o dito Vicente, que, segundo contam, nascera normal, mas doenças na infância o fizeram curto de idéias. Não tinha outro destino a não ser perambular pela redondeza, sem nada pedir, mas ganhando o de comer, o de vestir e o de distribuir a quem com sua alma mais se afinasse. Moravam mãe e filho em terra alheia, justamente nos domínios da Dona Rosa, mãe, como já se anteviu, do Chico, ou do Francisco, como ela fazia questão de bem pronunciar. O “doido” ficou por conta da Tervina, que o julgava capaz de amendrontá-la, com práticas que ela supunha ligadas aos poderes sobrenaturais. A feitiços, melhor dizendo.
Segundo ela, em um canto de sua porta aparecera um enorme excremento humano, seco, sinal evidente de malquerença e portador de maus desejos. O ato, como não podia deixar de ser, foi atribuído às atitudes pouco amistosas do filho da vizinha, Dona Rosa. À época, o rapaz já dela carregava o apodo de Chico Doido. Entretanto, essa atribuição era mais do que indevida, como se podia acreditar, pelo bom comportamento e consideração que o detentor da alcunha detinha de todos os moradores da vizinhança.
Tempos depois, aconteceu o passamento do Vicente. Este sempre costumava retornar à casa depois de suas andanças, e desapareceu, assim sem mais nem menos. A Tervina não deu muita importância ao sumiço do filho,  embora tivesse estranhado o comportamento  do cãozinho, de nome Rubinho, que sempre o acompanhava em suas errâncias,  indo e vindo com mais freqüência ao rancho, à procura de água e comida. Isso ela contou mais tarde, detalhando, inclusive, o diálogo que mantinha com o animalzinho: “Rubinho, cadê seu sinhô?”. De resposta, só recebia a tristeza do olhar e o imediato sumiço.
 Por aqueles dias, sem nada saber, a mulher do Sabino, outro filho da Dona Rosa, viu algo diferente, ao passar pelo cerradinho, que ladeava o habitual caminho que levava a sua casa. Falou com o cunhado que foi verificar o que poderia ter acontecido. Um pressentimento de algo que pudesse explicar o desaparecimento do filho da vizinha ranzinza o acompanhava. E lá encontrou o Vicente em estado já avançado de putrefação.
Sem muito considerar o que a Tervina espalhava a seu respeito, reuniu a vizinhança, para dar enterro mais digno ao defunto, com direito a sufrágio por parte dos moradores do lugar. Plantou-lhe uma cruz sobre a tumba rasa e rezou comovido com os outros presentes o secundando. Mesmo assim, a despercebida mãe ainda lamentou que o filho não merecera sepultura adequada, como os demais. Em campo-santo de cidade, dizia ela.
A vida isolada no casebre escuro tornava cada vez mais triste a esquisitice da moradora. Ninguém saberia dizer o dia, nem como findou os tempos. E Chico-doido passou a ser apenas lembrança de um passado longínquo, que se encarregou de eclipsar aquela alcunha inadequada para pessoa de índole boa. Depois de longa convivência com sua esposa, Andrezina, enviuvou. Os quatorze filhos se foram espalhando, levados para longe de casa, pelas premências da vida.
Muito tempo depois, fomos encontrá-lo, sozinho, vestido de branco, o corpo amansado pelos anos, e com a memória ainda regada de luz. A casa pobre, limpa e bem cuidada, trazia as paredes quadriculadas de fotos as mais variadas, com as quais convive no dia a dia. Uma filha lhe faz companhia e recolhe as notícias dos irmãos retirados, para alimentar-lhe as saudades. Falamos de tudo e de quase todos, dos velhos tempos. Somente a Tervina ficou esquecida a um canto, esperando para ser lembrada.
Mas ela não veio, e não foi por ressentimento. O prazo da visita poderia ter durado mais, para que nos contasse com mais detalhes o apelido há muito esquecido. Chico-doido seria uma foto a mais, na parede do esquecimento?

Pensares a conta-gotas (54)

Eles olham, e fazem de conta que não vêem.
Se vêem, fingem que não enxergam.
Escutam, e juram que não ouvem.
Se ouvem, fingem que não percebem.
Sabem, e afirmam que nada conhecem.
Se conhecem, dizem que não lembram,
Para simularem que se esquecem.

Cúmplices, inventam que não são.
Se matam, fazem-se de vítimas.
Violentos, se arvoram da verdade,
Do privilégio, do direito e da isenção.
E metem medo para calarem a razão.

Os outros, somos apenas os outros,  
Que inventamos que nada sofremos,
Já que os motivos do mais poderoso
Passam a ser os mais respeitosos,
Com negativas dos crimes dolosos.




Conhecer o universo
Será viajar o momento,
Na pressa
Do pensamento?

domingo, 18 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (53)

Instantâneo em Brasília
                                      

De madrugada assalta-me a lua
com disfarce de nua ladra.

Derrama leite pelo quarto
sorrateira no costume.

Calma de pasta morna
toma conta do contexto.

Nos recantos das galáxias
estrelas agonizam.

O céu também é lácteo
naquele retângulo do meu olhar.

A claridade
rói o silêncio.

Os blocos nas quadras são galinhas com sono
que chocam dentro de si moradores do egoísmo.

As árvores, a grama de orvalho, o asfalto frio
rebrilham na noite e lua de Brasília.

A banca de revistas se apequena
à sombra do bambual
na beira do brilho
e dorme com as notícias do mundo
nas fotos da vida.

Mas é o sol, por tabela,
que invade minha janela
e ascende dentro de mim.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (52)

Noturno em Brasilia

A madrugada silencia as ruas,
aqui inexistentes e nuas.
A alma fria se consulta
num diálogo de orvalho e pranto
que nunca aporta onde gostaria.

Um sonhador não tem proibido,
nem compromisso definido com a dor.
Deixa-se levar em aventuras sonhadas,
sem preconceitos ou normas
criadas à revelia de si.

Solitário, a esmo, caminha,
sem traçar o rumo.
Desconhece o tempo,
desvia-se da estrada,
e... tropeça na velocidade planejada.

Um dia, as fibras cedem,
o ânimo esfria, o corpo arria...
soçobra à triste sina do fim.
Adormece na Cidade veloz
que, firme e forte, ignora sua voz.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (51)

(O Pesadelo de Dom Bosco) 

Dom Bosco sonhou,
Brasília nasceu.

Dom Bosco acordou,
Brasília cresceu.

Dom Bosco dormiu,
Brasília o traiu.

Dom Bosco
Não entendeu,
Que o erro
Não era seu.

De medo
Do arremedo,
Não mais dormiu,
Nem mais previu.

Sua cidade,
De modelo,
Se converteu
Em pesadelo
De desmantelo.



(Vanitas vanitatum et omnia vanitas)

O que seria do ser humano
Não fossem as vaidades
Que advêm do dinheiro
Que leva às incapacidades
De gerar bens verdadeiros?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (50)

(Convite)

Continuemos as eternas viagens,
Desocupemos as conhecidas paragens,
Evitemos os lugares já deixados,
Fujamos da monotonia das vias,
Procuremos horizontes mais longe,
Não façamos, das novas moradias,
Experiências de vidas, sem ousadias!




A gente só pode almejar o paraíso,
Que não há lugares nem infernos,
Com anseios eternos de maus anjos,
A nos aguardar,
Para mais sofrimentos e maldades,
Revoltas e pungentes gritos.

Somos criaturas ínfimas e anônimas,
Incapazes dos apregoados
Desmandos e rebuliços,
Nesses páramos de tempos infindos,
Sem conhecermos, de tais espaços,
Sítios bem mais bonitos.

Deus não poderá permitir castigos,
Em consonância com nossa ânsia
De sempre mais existirmos,
Sem culpas de carregar pecados herdados,
Sem que nos caiba decidir dos caminhos,
Nesse vagar de céus infinitos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (28)

O marido da professora

O menino era bom menino, bom aluno, e admirava muito a professora, que dele parecia também gostar. Ele tinha por ela muitos bons sentimentos, como, aliás, soe acontecer com a maioria dos antigos alunos de escolas primárias. que, adultos, guardam as melhores lembranças de suas primeiras mestras.
Ele sabia, também, onde as professoras moravam. Aliás, quase todos os alunos de cidade pequena sabem onde moram as professoras, de que cor são suas casas, quantas janelas têm e, até, a marca e a cor dos carros que, eventualmente, ficam estacionados nas garagens.
Também, os filhos das professoras são bastante conhecidos, sobretudo, se não correspondem à imagem de comportamento e civilidade a eles atrelada. As professoras costumam manter, em sala de aula, rígida disciplina com relação à postura e aos bons costumes de seus alunos. Assim, em casa, presume-se, deve acontecer a mesma coisa que na escola. Daquela professora, em especial, o menino estava muito bem informado, pois todo dia passava em frente à casa dela, de volta das aulas.
Os maridos das professoras, por sua vez, não costumam escapar à observação atenta dos alunos de suas esposas. Talvez, até, por merecerem uma ponta de ciúme por parte deles. Afinal, eram concorrentes na divisão dos afetos. Naquele tempo, elas, além de mestras, eram educadoras e distribuidoras dos carinhos, que, na maioria, os alunos tinham carência nas próprias famílias.
 Entretanto, o marido, no caso, mereceu ficar mais tempo na memória do menino, bem mais do que os outros maridos de professoras daquela pequena cidade do interior das Minas Gerais. E isso se explica e se escreve, para consolo ou catarse de quem, ainda, o conserva bem vivo na lembrança.
Um dia, vinha o menino passando novamente diante da casa da professora. O marido estava do lado de fora, parado na calçada, de costas para o gradil, novinho, como até ali o menino nunca notara. Parecia olhar para o tempo, para o vago, como sem saber o que fazer com as mãos, abertas, em busca de inspiração para algo desconhecido. O menino o reconheceu e, humildemente, correspondeu ao seu olhar indagativo. Ele, o marido, nem conjeturou sobre quem desviava os olhares, quem era quem, embora soubesse que não era, aquela, a primeira vez que o via passando por ali, admirando-lhe a casa e a pessoa.
Mas é que está a chave da história. Ao notar aquele menino de olhar admirativo, uniformizado, egresso de alguma sala de aula nos arredores, de mãos ocupadas com os objetos escolares, o ar submisso de quem guarda uma reverência incontida, prova de respeito aos mais velhos e, mais ainda, àqueles ou àquelas cujo destino alçou à categoria dos que ensinam as boas maneiras, dirigiu-se a ele e, num gesto inusitado, afagou-lhe os cabelos, com mãos escorregadias de veludo, como somente um marido de professora teria a idéia de o fazer.
Aquele gesto não era um simples gesto, de alguém que afagapor afagar, de quem acaricia por acariciar. Era a postura esperada de quem só podia depositar um carinho condizente com a investidura do insigne posto de cônjuge de professora. Quem mais poderia ter a idéia de semelhante atitude, assim, na calçada, bem em frente ao gradil de sua casa, à vista de mais pessoas? Assim, pensou o menino.
Isso feito, apressou os passos, adiantou caminho, satisfeito, feliz, a alma parece que, naquele dia, mais leve. Que bom ser querido, premiado com  carícias oferecidas, tão espontaneamente, ainda mais em se tratando do próprio marido da professora! Ela, própria, quem sabe, nunca poderia dedicar gesto tão cheio de afetividade a seus alunos. Parecia-lhe, até, que o caminho de casa encurtara, tão doces os pensamentos que acompanhavam-lhe os passos. Afinal, não era qualquer menino de escola a merecer a sorte de sentir em sua cabeça mãos tão caras, como aquelas do marido da professora.
Chegou em casa, depositou, como sempre, os objetos de escola no lugar costumeiro. Tirou o uniforme para não sujá-lo, deixando-o dependurado atrás da porta do quarto, em ordem, para o dia seguinte. Vestiu a roupa da zurra diária, um tanto enxovalhada. Lembrou-se, mais uma vez, do afago de há pouco, oferecido pelo marido da professora. Esta nunca passaria, assim, por tão repetidas vezes, as mãos na cabeça dos alunos, acariciando-lhes os cabelos. E, para, mais uma vez reviver aqueles afetuosos momentos, tão significativos em sua ainda pouca existência, passou, ele próprio, as mãos por onde havia pouco deslizaram mãos tão honradas.
            Mas um susto o alfinetou no fundo da alma, bem no fundo, onde a dor  marca forte e as cicatrizes nunca mais desaparecem. Alguma coisa grudou-lhe nas mãos e espelhou-lhe uma cara suja, impressa na mesma tinta que, simplesmente, trocara de mãos, sujando-lhe a lembrança de inocente menino de escola. Era da mesma cor que a do gradil da casa da professora.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (27)


O cavalo branco

Sem nome, velhaco, assustado, o cavalo branco não entrava no curral, a não ser na base do grito ou nas ameaças de pedradas no lombo. Abaixar e simular a cata de algo para acertar-lhe as costas já o fazia correr para as beiras do curral. Coitado! Já devia ter levado, anteriormente, umas boas pedradas nos costados. Era ruim de cela, trotão e servia mesmo para a lida mais severa, nas proximidades do terreiro. E olhe , que o chão é, quase em toda a parte, demasiado duro!
Quem andava nele mesmo era o Gê, que ainda tinha o desplante de dizer que eu, embora vivendo longe, é que costumava cavalgá-lo, mais do que ele próprio. É certo que fiz, em seu dorso, uma viagem um pouco mais longa, lá pelos lados das nascentes do Espírito Santo. Fui em companhia do próprio Gê, à busca de um outro animal que se encontrava com o Geraldinho, amansador de cavalos, muito respeitado pelo pessoal da redondeza.
A tal animália em preparo de sela, era o Pampa, recém amansado, forte, bom de porte, vistoso, mas, pelas referências do Geraldinho,  não tinha jeito de ser mais ruim de montaria. Ninguém conseguiria, como, por sinal, não conseguiu, utilizá-lo como animal de cavalgadura. Parecia trepidação de carro de pneu em estrada de chão batido, cheia de costelas de vaca, destas de dar aos motoristas com os cocurutos no teto do veículo. Talvez uma carroça lhe teria sido de boa monta, porque muita força ele tinha. Isso, depois de vencida a magreza, é claro, dos dias de doma. Acabou sendo vendido por muito pouco dinheiro, para deixar de só amolar as éguas e passar aos descendentes os gens de trotão, que não era de todo privado de seus dotes os mais naturais. Não teve história, nem sequer deixou rebentos. Foi vendido não se sabe como, e deve ter findado seus dias no esquecimento ou em alguma lataria de embutidos.
Como dizia, no cavalo branco, pouco andei, uma vez que, nas poucas vezes que fui à Fulminante, não o encontrei à minha disposição, por estar em outros campos, no Brejo Comprido, por exemplo, com os demais cavalos de , não se sabe por quê! Ou se sabe, para não dizer!
Desde quando o vi, gostei de seu porte, de seu jeito de trotar, a cabeça e o rabo levantados, corpulento, as pernas firmes e fortes, cheio de vitalidade, aspectos pouco presentes em um animal já desprovido de suas capacidades reprodutivas. Talvez por admirá-lo, assim, passaram a dizer que o cavalo era meu, por doação de minha mãe, que desde a morte de meu pai, veio ser também a dona dos animais machos. Antes só era das éguas, à época, de valor somente para dar crias, preferencialmente, a potrinhos másculos.
No começo, cheguei até a me acostumar com a idéia da posse, pois, afinal, eu também era filho de minha mãe, que dele jamais fizera uso. Entretanto, fui perdendo a crença por ser um cavalo de andar duro, e por quase nunca ficar sob minha custódia e serventia. Cavalo não pode estar à mercê de modos diferentes de lida. Normalmente, se afeiçoa à pessoa que o maneia, e passa a compartilhar um pouco de sua personalidade, diferentemente, de um muar que, no dizer geral, é animal do sereno, de temperamento híbrido, de sangue misturado. Se aquele não entende duas linguagens, este não compartilha língua nenhuma. O Branco passou a entender os modos do Gê, e a obedecer a ralhados, além de tapas nas ancas e outros menores sustos.
Além de matreiro e espantado, fungava. Olhava de lado na hora de encilhá-lo e emitia aquele barulho esquisito com as ventas, parecendo dizer para o desavisado: “cuidado comigo, que não sou de dar trelas a confiança, e bem posso aprontar uma com você, que nem sabe jogar a sela com a devida desenvoltura!” Mas passava de mera impressão. No fundo, era bom animal, até dócil, uma vez encima dele. , ali, se podia sentir firmeza e segurança. Aliás, este estranho proceder se explicava pelos tratos que sempre tivera, desde quando viera do amansador. O tinha um pensar, de que a solução para animal velhaco era taca. E como o Branco nunca pôde distinguir outras maneiras de ser tratado, se com carinho, se com ralhado, ameaças de tapa nas ancas, o jeito de impor algum respeito era fungar, tremer o couro do lombo, parecendo insinuar a que se procurasse outro cavalo qualquer em seu lugar, para o que fosse preciso.
Poucas vezes, tentei conquistá-lo, demonstrar-lhe boas intenções, fazê-lo gostar de mim. Colocava-o em curral separado, fixava o olhar no seu, e ia conversando com ele, a mão cheia do agrado de que mais gostava: sal mineral. De longe ele percebia o que lhe estava sendo oferecido em troca de amistosa aproximação. Esticava as orelhas, adocicava o olhar, distendia as orelhas, demonstrando todo o interesse em lamber o petisco. Naquele querendo sem querer, ele vinha, eu ia. Ele cedia um passo de , eu outro de , até ele cheirar o mimo irresistível. Antes, porém, tinha que me deixar acariciar-lhe o focinho, o que consentia depois de muito relutar.
Conseguimos grandes progressos, que, infelizmente, se revelavam pouco producentes, devido às minhas longas ausências e às suas fatais recaídas, e conseqüentes rebeldias.
Em uma de minhas raras saídas no cavalo branco, o senti mancar. Parecia que tinha algo no casco. Uma pedra, talvez, poderia ter-se enfiado em uma das fendas da unha, causando-lhe desconforto. Cavaleiro mais perspicaz costuma retirá-la com um canivetão, desses que se guarda em bainha presa à cintura. Mas a providência, ali, não foi tomada, até porque o Branco não daria a pata ofendida, assim, facilmente, para quem temia o barulho de suas fungações desaprovadoras. O melhor mesmo era deixá-lo inativo, a um canto, para ver se a manqueira desaparecia, ou, mesmo, que a pedra caísse, por si só, nos desvãos dos caminhos pedregosos daquelas alturas.
A dúvida persistiu até que o Gui, um vizinho, que não saía de cima de cavalo, contrastando seus antepassados, inconfundíveis pedestres, apareceu lá na beira do curral, e, com o olhar furão, perguntou: “Uai, sô, o que aconteceu com o daquele cavalo, inchado daquele jeito?” Era o modo de falar, pois o Gui conhecia o cavalo branco, de outra feita, quando o desvencilhou de uma maçaroca de arame farpado, que só faltou-lhe rotular uma das patas traseiras, por sinal, aquela onde o inchaço ora se evidenciava.
Foi que eu dei do propalado “defeito” do Branco, e fui logo decretando que em cavalo machucado não se andaria mais. Mas ordem de quem apenas se faz de dono não pega no pano. Além do mais, os interessados na possível serventia do animal vieram a dizer que ele sempre apresentara aquela ”ova” no tornozelo traseiro, e que isso não era empecilho para o trabalho. Com ova ou sem ova, o certo é que eu falei: “daqui pra frente o correto é deixá-lo sem sofrer. Afinal, dor é dor e, em qualquer vivente dói, para avisar que onde dói há algo a se curar. O tempo o fará livrar-se da claudicância”.
Mas, acharam que o melhor seria vendê-lo, coniventes com a provável falta de escrúpulos dos futuros donos em deixar aumentar-lhe o sofrimento. Esse foi o desenlace para o que ainda não encontrara solução. Vale dizer, no caso, o dito: "o que não está remediado, remediado está".
Hoje, penso, com saibo de omissão: melhor teria sido, para o cavalo branco, ficar sob meus olhares, enquanto sua avançada idade fosse permitindo, sem se entregar a maus tratos, de quem não tem sensibilidade com as dores alheias. Preferível vê-lo rodear a casa, de olhar malicioso, e pescoço encurvado, para melhor julgar da intenção de quem lá vinha. Pelo menos, assim, deveria impressionar os visitantes com aquele porte majestoso, altivo, como se garanhão ainda fosse.
           A soma de duzentos reais, pela sua estampa, nas fotos que deixou, sobejamente, pagaria. Foi-se o cavalo branco, para não ser mais lembrado, mas ficou a frustração do desafio da conquista de mútua confiança.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Pensares a conta-gotas (49)

Antes rezei, em longas horas,
Muito mais da boca para fora
Oro, agora, do fundo d´alma
Em breves segundos de calma
Penso encontrar suporte
Na prece que sempre me aflora
De bem viver, sem mais demora.


Ó, Senhora nossa Aparecida,
Santa negra nossa, negra santa,
No rio de lamas naufragada,
Desnuda das águas e ramas,
Em farto manto revestida,
De aparências de pouca vista,
De mais vestes, de menos vida,

Proteja-nos das forjadas falácias,
Que nos invadem de todos os lados,
E nos assustam de todos os cantos,
E nos ameaçam de tantas normas,
Mais céticos, menos santos, de jeitos
Mais cheios de ornatos e de formas,
Que de encantos e reais efeitos.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (26)

Seu Lazinho e os remédios da madrinha

Seu Lazinho era casado com a Escolástica e foi buscar remédio para a doença nos olhos da filha, e dilatar, por mais alguns dias, pelo prazo de arranjar um automóvel, que pudesse levá-los até Campinas, lugar de mais recursos, como havia feito, por diversas vezes, o vizinho Cesário, quando do incômodo nas vistas da filha Luzia.
A “madrinha Borges” era nora do Zeca Joaquim, conhecedores das artes de cura com remédios caseiros. Para tanto, bastava-lhes dar uma saídinha na horta ou no cerrado, ali, por perto, que logo iam reconhecendo ramos e raízes para os males que afligiam os humildes moradores do lugar. A fama de conhecedora das mezinhas, que sanavam os males mais corriqueiros, corria longe e, até, algumas vezes, conta-se, curara males sem cura. Vira e mexe batia à sua porta alguém precisando de umchá”. “Meu filho amanheceu assim, minha filha anoiteceu assada, eu, há muito, não ando prestando para o serviço, a minha mulher vive reclamando de dor nas cadeiras, minha mãe, coitada, está morre não morre, que nem se pode pensar”. E, assim, era o debulhar de um rosário de queixas.
A “madrinha” dava um jeito em quase tudo, até em gente que sofria “acesso”, uma espécie de convulsão epiléptica devida a misturadas de comida. A tal misturada fazia estragos, e menino danado devia saber que manga com banana, com leite, com ovo, com jabuticaba, provocava a tal doença que deixava seqüela para toda a vida, como aconteceu com o filho de fulano, com a filha de sicrana, com o pai de beltrano. Garapa de cana depois das refeições chamava “corujão” outremelique”, na certa. È bem verdade que mais tarde se soube, que aqueles temores significavam rapaduras a mais no jirau por sobre a fornalha ou na despensa.do casarão. Mas, disso, ninguém mais tem noção. Coisa dos antigos donos de engenho, mantidos à custa de mão de obra cativa e comilona.
            Seu Lazinho, naquele dia, queria o tal remédio para a filha, enquanto providenciava o “especial” que pudesse levá-la em centro mais garantido. Com olhos não se devia brincar, que “as vistas eram o bem mais precioso com que se possa contar”. A viagem devia ser longa e cara, mas Seu Lazinho tinha folga de arcar com todas as despesas, embora dinheiro não fosse assim de se gastar com facilidades, de pensamento ruralista como ele.
A "madrinha" aconselhou-o a ir lavando os olhos da menina com um capucho de algodão embebido em xixi de criança de até dois anos, enquanto esperasse. A água, onde se descansasse um raminho de arruda, também seria de grande valia.  Assim, Seu Lazinho voltou para casa confiante, e com a alma mais sossegada.
 Dias depois, chegava, novamente, Seu Lazinho, de passos largos à casa da “madrinha” para agradecer-lhe pela cura da filha. O tal medicamento fora um santo remédio. Curara o mal e, ainda por cima, fê-lo economizar o dinheirão da viagem até Campinas.
Com o tempo esse tipo de charlatanice foi caindo em desgraça com as facilidades de se conseguir solução diretamente nas farmácias da cidade. Nem manipular os farmacêuticos precisavam mais, com as multinacionais do ramo a abastecer farmácias e drogarias. As leis foram ficando mais rígidas com aqueles que se atreviam a “medicarpor conta própria. Sumiram os raizeiros, escassearam os conhecedores dos princípios ativos das plantas. O Aristeu, por exemplo, de Grupiara, nas vizinhanças do Paranaíba, não deixou discípulo que soubesse preparar as “garrafadas”, que gente de longe vinha aviar. A “madrinha Borges”, quando muito, deixou laivos de crença, a correrem nas veias de seus pósteros.
           Entretanto, ainda sói aparecer, diante das câmeras de tevês, algum corajoso adepto das mezinhas, a relembrar remédios passados. Talvez, até, pela estranheza do mesmo, ou por ter ouvido falar dos antigos parentes charlatães, sem se esquecer de acrescentar a fórmula redentora de “em caso de dúvida” não deixar de procurar o médico. Há também os descrentes da modernidade, e dos donos de negócios fármacos rentáveis, na cada vez mais pouca saúde e educação, no país das incertezas.