terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (28)

O marido da professora

O menino era bom menino, bom aluno, e admirava muito a professora, que dele parecia também gostar. Ele tinha por ela muitos bons sentimentos, como, aliás, soe acontecer com a maioria dos antigos alunos de escolas primárias. que, adultos, guardam as melhores lembranças de suas primeiras mestras.
Ele sabia, também, onde as professoras moravam. Aliás, quase todos os alunos de cidade pequena sabem onde moram as professoras, de que cor são suas casas, quantas janelas têm e, até, a marca e a cor dos carros que, eventualmente, ficam estacionados nas garagens.
Também, os filhos das professoras são bastante conhecidos, sobretudo, se não correspondem à imagem de comportamento e civilidade a eles atrelada. As professoras costumam manter, em sala de aula, rígida disciplina com relação à postura e aos bons costumes de seus alunos. Assim, em casa, presume-se, deve acontecer a mesma coisa que na escola. Daquela professora, em especial, o menino estava muito bem informado, pois todo dia passava em frente à casa dela, de volta das aulas.
Os maridos das professoras, por sua vez, não costumam escapar à observação atenta dos alunos de suas esposas. Talvez, até, por merecerem uma ponta de ciúme por parte deles. Afinal, eram concorrentes na divisão dos afetos. Naquele tempo, elas, além de mestras, eram educadoras e distribuidoras dos carinhos, que, na maioria, os alunos tinham carência nas próprias famílias.
 Entretanto, o marido, no caso, mereceu ficar mais tempo na memória do menino, bem mais do que os outros maridos de professoras daquela pequena cidade do interior das Minas Gerais. E isso se explica e se escreve, para consolo ou catarse de quem, ainda, o conserva bem vivo na lembrança.
Um dia, vinha o menino passando novamente diante da casa da professora. O marido estava do lado de fora, parado na calçada, de costas para o gradil, novinho, como até ali o menino nunca notara. Parecia olhar para o tempo, para o vago, como sem saber o que fazer com as mãos, abertas, em busca de inspiração para algo desconhecido. O menino o reconheceu e, humildemente, correspondeu ao seu olhar indagativo. Ele, o marido, nem conjeturou sobre quem desviava os olhares, quem era quem, embora soubesse que não era, aquela, a primeira vez que o via passando por ali, admirando-lhe a casa e a pessoa.
Mas é que está a chave da história. Ao notar aquele menino de olhar admirativo, uniformizado, egresso de alguma sala de aula nos arredores, de mãos ocupadas com os objetos escolares, o ar submisso de quem guarda uma reverência incontida, prova de respeito aos mais velhos e, mais ainda, àqueles ou àquelas cujo destino alçou à categoria dos que ensinam as boas maneiras, dirigiu-se a ele e, num gesto inusitado, afagou-lhe os cabelos, com mãos escorregadias de veludo, como somente um marido de professora teria a idéia de o fazer.
Aquele gesto não era um simples gesto, de alguém que afagapor afagar, de quem acaricia por acariciar. Era a postura esperada de quem só podia depositar um carinho condizente com a investidura do insigne posto de cônjuge de professora. Quem mais poderia ter a idéia de semelhante atitude, assim, na calçada, bem em frente ao gradil de sua casa, à vista de mais pessoas? Assim, pensou o menino.
Isso feito, apressou os passos, adiantou caminho, satisfeito, feliz, a alma parece que, naquele dia, mais leve. Que bom ser querido, premiado com  carícias oferecidas, tão espontaneamente, ainda mais em se tratando do próprio marido da professora! Ela, própria, quem sabe, nunca poderia dedicar gesto tão cheio de afetividade a seus alunos. Parecia-lhe, até, que o caminho de casa encurtara, tão doces os pensamentos que acompanhavam-lhe os passos. Afinal, não era qualquer menino de escola a merecer a sorte de sentir em sua cabeça mãos tão caras, como aquelas do marido da professora.
Chegou em casa, depositou, como sempre, os objetos de escola no lugar costumeiro. Tirou o uniforme para não sujá-lo, deixando-o dependurado atrás da porta do quarto, em ordem, para o dia seguinte. Vestiu a roupa da zurra diária, um tanto enxovalhada. Lembrou-se, mais uma vez, do afago de há pouco, oferecido pelo marido da professora. Esta nunca passaria, assim, por tão repetidas vezes, as mãos na cabeça dos alunos, acariciando-lhes os cabelos. E, para, mais uma vez reviver aqueles afetuosos momentos, tão significativos em sua ainda pouca existência, passou, ele próprio, as mãos por onde havia pouco deslizaram mãos tão honradas.
            Mas um susto o alfinetou no fundo da alma, bem no fundo, onde a dor  marca forte e as cicatrizes nunca mais desaparecem. Alguma coisa grudou-lhe nas mãos e espelhou-lhe uma cara suja, impressa na mesma tinta que, simplesmente, trocara de mãos, sujando-lhe a lembrança de inocente menino de escola. Era da mesma cor que a do gradil da casa da professora.

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