terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (29)

Chico-doido e a Tervina-do-Zé-Chico

O Chico da Rosa, o Compadre Chico de meu pai, homem cumpridor, nada tinha de excepcionalidades no juízo, mas recebera o apelido de Chico-Doido por obra da Etelvina, conhecida nas vizinhanças por Tervina do Zé-Chico. Velha e solitária, mãe do Vicente, mais conhecido como Vicente da Tervina, esse, sim, ocupante de mente reduzida e corpo avantajado. Alma simples, que sempre acompanha e protege a quantos a ela recorrem, da qual também se guarda lembranças e crenças, por aquelas alturas da Fulminante.
 Pois bem, a Tervina era moradora de rancho de pau-a-pique, com cobertura vetusta de telha colonial, das tais ainda moldadas nas coxas de escravos, cercado de palmeiras-guariroba e pasto jamais batido, que gente do lugar identificaria como capoeira rala. Água, buscava-se no balde, adentrando mais profundo na mata mais densa. A pobre coitada, de idade provável, era daquelas que acreditavam nas forças do céu e do inferno, em espíritos bons e maus, e alimentava as superstições com sua ignorância existencial. Qualquer sinal que aparecesse de inusitado, trazido pelas forças da natureza que a cercava de perto, poderia ter conotação de “feitiço”, realizado por mãos humanas.
 Também, pudera! A Tervina vivia o seu tempo maior de vida sozinha, em meio ao balanço dos ramos verdes e o estralar dos galhos secos, guardados amontoados em um cômodo do rancho, com os quais fazia seu foguinho de fornalha de barro, para cozinhar arroz com feijão, alguma mistura que nascia ao deus-dará. Nem horta tinha, a não ser algumas plantinhas para servir de remédio, quando a precisão beliscava no corpo ressequido. Do fogo, alimentava também o cachimbo que devia trazer certo alento aos escassos pensamentos. Do que conseguia amealhar, ou, melhor, o filho deficiente lograva ganhar, nada podia ser desperdiçado. Uma das poucas testemunhas de suas condições de sobrevida contou que, para recuperar um grão de feijão ou de café a ser socado no pilão, era capaz de remover, com a maior dificuldade, boa parte dos gravetos que ia depositando por ali, até que, bem secos, os amontoava no quartinho costumeiro, perto do fogão de lenha.
Testemunha-se, também, que criava, soltas nos pastos, algumas galinhas raquíticas, filhas do sempre mesmo galinho bastardo que se encarregava de, com a voz estridente, dar umas notas de alegria àquele ambiente de hábito tristonho. Sem com quem conversar, a Tervina falava sozinha, ou com as galinhazinhas, às quais dava nomes diferenciados. A Boneca e a Espevitada eram as mais atenciosas aos seus apelos de atenção, talvez à espera de alguma sobra de arroz queimado ou de feijão requentado. Dos coqueiros, recolhia os frutos e os guardava a um canto do rancho, para quebrá-los e retirar deles a castanha, sob os olhares gananciosos de alguma menina da vizinhança.  A Tervina não era má pessoa e carregava doses de convivência social, trazidos dos velhos tempos de moça solteira.
Viúva precoce do tal Zé Chico, só teve um filho, o dito Vicente, que, segundo contam, nascera normal, mas doenças na infância o fizeram curto de idéias. Não tinha outro destino a não ser perambular pela redondeza, sem nada pedir, mas ganhando o de comer, o de vestir e o de distribuir a quem com sua alma mais se afinasse. Moravam mãe e filho em terra alheia, justamente nos domínios da Dona Rosa, mãe, como já se anteviu, do Chico, ou do Francisco, como ela fazia questão de bem pronunciar. O “doido” ficou por conta da Tervina, que o julgava capaz de amendrontá-la, com práticas que ela supunha ligadas aos poderes sobrenaturais. A feitiços, melhor dizendo.
Segundo ela, em um canto de sua porta aparecera um enorme excremento humano, seco, sinal evidente de malquerença e portador de maus desejos. O ato, como não podia deixar de ser, foi atribuído às atitudes pouco amistosas do filho da vizinha, Dona Rosa. À época, o rapaz já dela carregava o apodo de Chico Doido. Entretanto, essa atribuição era mais do que indevida, como se podia acreditar, pelo bom comportamento e consideração que o detentor da alcunha detinha de todos os moradores da vizinhança.
Tempos depois, aconteceu o passamento do Vicente. Este sempre costumava retornar à casa depois de suas andanças, e desapareceu, assim sem mais nem menos. A Tervina não deu muita importância ao sumiço do filho,  embora tivesse estranhado o comportamento  do cãozinho, de nome Rubinho, que sempre o acompanhava em suas errâncias,  indo e vindo com mais freqüência ao rancho, à procura de água e comida. Isso ela contou mais tarde, detalhando, inclusive, o diálogo que mantinha com o animalzinho: “Rubinho, cadê seu sinhô?”. De resposta, só recebia a tristeza do olhar e o imediato sumiço.
 Por aqueles dias, sem nada saber, a mulher do Sabino, outro filho da Dona Rosa, viu algo diferente, ao passar pelo cerradinho, que ladeava o habitual caminho que levava a sua casa. Falou com o cunhado que foi verificar o que poderia ter acontecido. Um pressentimento de algo que pudesse explicar o desaparecimento do filho da vizinha ranzinza o acompanhava. E lá encontrou o Vicente em estado já avançado de putrefação.
Sem muito considerar o que a Tervina espalhava a seu respeito, reuniu a vizinhança, para dar enterro mais digno ao defunto, com direito a sufrágio por parte dos moradores do lugar. Plantou-lhe uma cruz sobre a tumba rasa e rezou comovido com os outros presentes o secundando. Mesmo assim, a despercebida mãe ainda lamentou que o filho não merecera sepultura adequada, como os demais. Em campo-santo de cidade, dizia ela.
A vida isolada no casebre escuro tornava cada vez mais triste a esquisitice da moradora. Ninguém saberia dizer o dia, nem como findou os tempos. E Chico-doido passou a ser apenas lembrança de um passado longínquo, que se encarregou de eclipsar aquela alcunha inadequada para pessoa de índole boa. Depois de longa convivência com sua esposa, Andrezina, enviuvou. Os quatorze filhos se foram espalhando, levados para longe de casa, pelas premências da vida.
Muito tempo depois, fomos encontrá-lo, sozinho, vestido de branco, o corpo amansado pelos anos, e com a memória ainda regada de luz. A casa pobre, limpa e bem cuidada, trazia as paredes quadriculadas de fotos as mais variadas, com as quais convive no dia a dia. Uma filha lhe faz companhia e recolhe as notícias dos irmãos retirados, para alimentar-lhe as saudades. Falamos de tudo e de quase todos, dos velhos tempos. Somente a Tervina ficou esquecida a um canto, esperando para ser lembrada.
Mas ela não veio, e não foi por ressentimento. O prazo da visita poderia ter durado mais, para que nos contasse com mais detalhes o apelido há muito esquecido. Chico-doido seria uma foto a mais, na parede do esquecimento?

Um comentário:

Marco Túlio disse...

Li o conto da Tervina que se passa na Fulminante. Muito bem elaborado. Digno de um renomado escritor.