sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (15)

A “com´é que chama”

O vocabulário, como sempre, limitado ou apenas sugerido. Mais do que palavras, os gestos explicam. Coisas da roça, do pouco falado, no sempre afobado momento do sem-saber como mandar, da pouca leitura ou do não se conseguir comunicar. O laconismo na conversa se traduz na idéia dos atos sugeridos, autoritários. Costume de consagrar o respeito a todo preço.
Com os de mais pouca idade, então, só a agudeza do olhar, o aceno mais brusco devia bastar. Nem carecia de mais demora na explicação. Fechar a cara e ir comandando de rompante resumia a curta fala: “Vai lá dentro e traz a... a... a ‘com´é que chama’!. Depressa !”.
O menino não tinha tempo, nem podia retrucar, perguntar o nome da tal “com´é que chama” de tanta necessidade, e, ao mesmo tempo,  tão carregada de imprecisão. Tinha que sair correndo, reconstituindo a cena desde o momento da premente carência do tal objeto, adivinhando, pelo caminho, a serventia que lhe seria destinada. E trazê-lo, por mais incógnito fosse, o mais depressa possível.
Assim, diante de tais freqüentes situações, era imperioso pensar, bater cabeça, relembrar a cena, do começo ao fim do serviço em execução, que justificasse a tal urgência. Caso trouxesse a ferramenta trocada, ou um objeto qualquer, incorria no risco de levar reprimenda, além de ter que rebuscar caminho para, num pé lá outro cá, identificar uma outra “com´é que chama”  que atendesse o objetivo desejado.
Não havia escolha, não havia erro, só lugar para acerto, por meio da adivinhação, da perspicácia e inteligência de meninos de roça, que não eram, como nunca foram, tão “rudos”, como ainda, comumente, se apregoa. Ou a eles creditam os inexperientes garotões das urbes.
Nestes muitos recantos das Minas, a “com´é que chama” ainda impera no elenco escasso do palavreado das gentes pouco dadas à comunicação dos lábios, e continuará sendo a ferramenta para indefinidas serventias. Apenas para alguns, cada vez mais raleados interlocutores, ela será passível de adequada significação nos gestos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (37)

A casca, dia após dia, mais alvejada,
O miolo, ainda, assaz vermelho,
O coração vibrante, a alma aliviada.

Os braços fiáveis, as pernas fortes,
O corpo-esteio, abrandado no espelho,
A fatal/idade, investida a qualquer meio.

O exemplo, a viva sucupira branca,
De aparência alva, o cerne rubro,
Do cerrado ralo, ou do mato denso.

De verdade, o lenho, a vontade, o senso,
A força, ainda que sem igual engenho,
São graças, mais do que real desempenho. 


Abdiquei-me das sensatas idéias,
Dos conselhos, dados de graça,
Que julguei eficazes, por herança,
Capazes de imutáveis mudanças.

Os tempos não mais concedem
Dividir pensares por conta da idade,
Carregados dos humanos preceitos,
E das cãs, como prova de verdades.

Doravante, o mundo investe nas máquinas,
Frias, de intolerâncias e mais teimosias,
Revisando, estonteantes, os conceitos
De antigas e comprovadas teorias.

Definitivos, os apertos nos teclados,
Com evidentes e nefastos resultados.
Provisórios, os acertos dos diálogos,
E as justas paridades nos decálogos.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (14)

Outra história de cachorro 

O arraial do Pântano, ou do Pantano, ou, mesmo, do Panta, de pronúncia mais cômoda, ficava nas cercanias do lugar onde moravam, questão de umas três léguas a cavalo, quando muito, ou de hora e meia de estrada puxada, aproveitando o ar da manhã que, ainda, não se deixara aquecer pelos primeiros raios do sol. O horário da missa não costumava passar das oito horas, e os padres, naquele tempo, não perdoavam desculpas de atrasos por causa das distâncias do povoado.
 De vez em quando ia um padre para celebrar a missa, atender as confissões, fazer alguns batizados e casamentos apressados. Extrema-unção e encomendações de defuntos eram casos mais esporádicos, mas também davam de acontecer. Bastava correr pelas redondezas a notícia de missa no Panta que para rumavam os tementes a Deus, para se desobrigarem e aliviarem as almas do que pensavam ser pecados e empecilhos a uma vida mais cristã. Dívidas são dívidas, e com as de Deus, sempre presente e atento aos mínimos gestos, mesmo os do escuro dos quartos, abençoados no altar, não se brinca. Carregar culpa é coisa muito ruim. Para se comungar era preciso, primeiro, se desvencilhar delas, as quais, por mais mínimas fossem, não deviam ser poucas, dados os muitos cansaços que o trabalho da roça provocavam, e a premência do sono exigia. Segundo, pelos ensinamentos dos padres e da Santa Madre Igreja, da época, que não economizavam queimaduras no inferno, valha-nos Deus, Nosso Senhor!.
Naquele dia, o casal e o filho, ainda carregado na cabeceira do arreio, saíram cedo, acompanhados pelo cachorro da casa que, não havia muito, adotaram, a pedido de um amigo, morador de cidade, que julgava o animal sofrendo com a falta do que fazer. Na roça, teria mais serventia. O bicho se afeiçoara aos novos donos e não os largava nem para se irmanar com os demais representantes da raça que, naquelas ocasiões de festa no arraial, aproveitavam para medir força e rosnarem seus ciúmes naturais.
Durante a missa o Peri ficara do lado de fora da igreja, a cabeça apoiada nas patas dianteiras e o olhar observador sobre quem entrava ou saía. Ninguém o importunou e por lá ficou, até quando o padre deu as últimas recomendações de temor a Deus. Encerrada a cerimônia, o cão esperou até que seus donos passassem diante de seus olhares submissos, para acompanhá-los aonde dirigissem seus passos. Dizem que cachorro entra na igreja por encontrá-la aberta, mas com o Peri, esse não foi o caso. Tinha brios e sabia o seu lugar na porta da capela, afastado o suficiente para não ser incomodado com possíveis “sai pra lá”, nem incomodar os fiéis com algum eventual rosnado de agravo, ou ganido de dor nas costelas.
Ali por perto ficava a casa de uma sobrinha do Silvestrão, a Doralinda, conhecida do casal, mas não do cachorro. Aproveitaram para fazer-lhe uma visita. A Doralinda era muito popular no arraial, e sua casa era grande, mas costumava abrigar mais gente do que permitia. Se em igreja cachorro entra por apanhar a porta aberta, desta vez, o Peri não teve outra escolha senão entrar, também, na casa, e se postar aos pés da dona, sempre de cabeça por sobre as mãos e o olhar de expectativa e piedade.

Ocorre que o Silvestrão, tio da anfitriã, veio vindo, entrando da banda da rua. Sem se dar pela presença do animal, tropeçou-se nele. Dando-lhe um pontapé nas traseiras, enxotou-o dali pra fora, enquanto esbravejava: ”Quem é o dono dessa assombração?” Minha mãe, que nunca deixava o mingau esfriar na beirada do prato, nem a língua pregar-lhe no céu da boca, respondeu de rompante e o olhar fuzilante: “Essa assombração é minha! Se quiser passar, passe por cima!” Diante do acontecido e da sem-gracesa geral, o jeito foi se retirar, em busca do marido e do caminho de casa.
A amizade com a Doralinda arrefeceu, e com o Silvestrão esfriou de vez. Em casa, quando o assunto girava sobre história de cachorro, sobretudo lá pelos arruados do Panta, minha mãe acrescentava que lugar de cachorro de roça é na porta da igreja, ou do lado de fora das casas, talvez arrependida da língua solta que, por natureza, não podia deixar de ter.

domingo, 18 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (36)

Que movimentos
fazem girar o sol?
Que sentimentos,
a alma de girassol?

A flor se revolve
em pétalas-hélices,
e parece parada,
girando por nada.

Mas, assim como o sol,
de raios em coroa,
não gira à toa,
seu calor é transpirado
no amor, sempre acordado.




Eu passo,
Você passa,
Compassamos
Pela vida.

De passos dados,
Compassados,
Caminhamos
Lado a lado.

Mas você volta,
Eu volto, revoltamos
Contra a vida atrapalhada
Dos humanos.

sábado, 17 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (35)

A importância da janela
Está bem defronte dela.
Peneiram o sol poente,
Dosando o ar ardente,
As árvores de sentinela.

 
Lugares há que não as merecem,
Mundos sem nexo e sem brios,
Onde o sol, cada dia mais quente,  
Ou, deveras, cada dia mais frio,
É onipotente, inclemente e impio.



As bifurcações nas estradas,
Encruzilhadas absolutas,
Fizeram-nos bem resolutos,
Que, bem mais cedo ou bem mais tarde,
Nos distanciaram, na luta.

Quem nasce para seguir juntos?
Nossas armas, braços e pernas,
São mais curtos que as vontades
De chegada ao fim da jornada,
Sem minutas e sem alardes.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (13)

O burrinho sabiá


Esta história, na verdade, não é a do burrinho Sabiá, que era manso, apesar de velhaco e empacador, muito natural da raça, ou melhor, da carência dela, que burro é animal híbrido, infértil e de atitudes inesperadas. Fazê-lo mudar de idéia, e pôr-se em marcha, demandava esforço. Se convencê-lo a sair de casa traduzia dificuldades, voltar para casa, então, contrariava o que se poderia, à primeira vista, imaginar. Ainda mais porque, ele conhecia sobejamente, aqueles caminhos, a ponto de poder  andar, até, de olhos vendados.Talvez pensasse que, se saísse tinha que voltar, e, se voltasse, tinha que sair novamente. Melhor ficar onde estava. E fincava o pé, murchava as orelhas, empacava, e pronto! "Daqui ninguém me tira", devia pensar!
 Mas, como se ia dizendo, a história não é a dele, mas a de meu pai, que, na ocasião, contava uns oito anos, idade em que conheceu a orfandade paterna. Mas tinha sido elevado a proprietário do tal burrinho teimoso e cheio de manhas. Ganhara-o de presente do pai, por ser manso e já em tempos de se aposentar, um tanto ardiloso, como se disse, mas, para menino de roça, sem muito o que fazer, tais defeitos não devia ser estorvo que o impedisse de prestar pequenos serviços.de porta de casa. Trouxe consigo, de antigos donos, o nome  Sabiá, talvez por ser, assim, tão sabido, como o pássaro de peito roxo e olhar agudo.  Mas, meu pai, naquela idade, pelo que se vai contar, também tinha seus lampejos de astúcia, que não se adquire somente com a chegada dos anos, mas pela observação e agudeza de espírito.
Virava e mexia, minha avó o enviava à casa do pai, não muito distante, para levar um recado, buscar notícias, ou cumprir atos rotineiros de família.  Para isso o burrinho devia servir, e menino sempre teve muita utilidade, bobos de quem não aproveitasse. Além do mais, precisava iniciar o filho na lida da fazenda, como era natural acontecer.
Ocorre que meu pai ganhara, também, recentemente, de agrado, um punhalzinho, que, orgulhosamente, exibia preso à cinta, e que, ainda não lhe tinha servido, por falta de ocasião. E esta logo se apresentou, como se verá, e foi assim:
Um dia, de volta da casa do avô, no meio do caminho, que adentrava um cerrado grosso, o Sabiá, ciente de transportar um dono de pouca experiência, resolveu mostrar sua personalidade de burro manhoso. Empacou e pensou: “Daqui não saio, nem que se for no talho!”
Meu pai deu com os calcanhares, repuxou as rédeas, o chicoteou com a varinha de ramo novo, que sempre se quebra com as folhas na ponta, para só assustar e menos maltratar, gritou "vamos, vamos, Sabiá", e nada. O burrinho, naquele dia, estava mesmo de veneta, de pirraça possuído. A situação estava de difícil solução. O jeito seria deixá-lo por ali, e voltar a para a casa, com os arreios nas costas, pensou o menino, como, também, deve ter maliciado o burrinho.
Foi que meu pai se lembrou do punhalzinho que trazia bem embainhado, à cintura. Jogou a vara fora, retirou a faquinha da bainha, segurou-a firme, e, com a mão que estava livre das rédeas, aplicou, com a força de que dispunha, uma estocada bem na anca do teimoso animal. Com o susto, ele pôs-se, novamente, a andar, talvez sentindo que o sangue   o molhava anca abaixo.
Foi, então, que meu pai olhou e pensou: “Como vou fazer, agora, para contar o mal feito? Se contar, acabo apanhando, se não contar acabam descobrindo e me batendo! O castigo vai vir, na certa!”
Duas vezes, a caminho, apeou do burrinho, encheu as mãos de terra e tentou estancar com ela o sangue que insistia em escorrer pelas pernas abaixo. O que fazer, então? Confessar o acontecido? Não confessar?
Conta não conta, o medo foi aumentando, o caminho encurtando até chegar à casa. que, diferentemente de outras vezes, desta, foi logo desapeando, desarreando o animal, guardando a arreata, e o soltando no pasto, o mais depressa, não sem antes dar-se conta de que o sangue continuava a escorrer, misturado a terra e suor.
A mãe estranhou a sem-graceza do filho, mas nada perguntou. Meu pai estava inquieto, não esquecia do ocorrido. Temia pela vida do burrinho e pelas conseqüências de sua impensada atitude. Por umas duas ou três vezes foi ao pasto verificar se o sangue estancara. Lá, jogava mais terra na ferida que parecia não se fechar mais.
Em uma daquelas inabituais ausências, a mãe mandou ir atrás, ver o que estava acontecendo.  Descoberta a arte, conta-se que meu pai recebeu o castigo merecido, e perdeu o punhalzinho para nunca mais o encontrar.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (34)

Ando lendo,
Ando rabiscando,
Ando e desando
Criando fantasias
À revelia,
Sem conseqüências,
Sem fadigas em demasias
Sem demências
Sem ousadias.

Preciso esvaziar-me de pensamentos inúteis
Esquecer-me de mim e do que faço
Adormecer meus traços de cansaços
Sem demoradas permanências
Nos vagos espaços do sono,
Mas,
Quando sói carregar-me nos braços,
Mais por descuido meu que por dormência,
Ainda, assim, mais me enlaça
Nos passos largos das carências,
De misturadas ausências com abandono.

domingo, 11 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (33)

As fotos da vida

O velho vê na fotografia
um passado de puras alegrias,
a escorrerem pelas fendas do tempo
com a certeza de chegada
às escorregadias águas do rio-vida.

Um desconforto oprime-lhe o peito,
já quase desfeito, de tanta luta,
se dividindo entre saudades
e os rígidos preceitos de conduta
da antiga labuta da confraria.

A idade não mais lhe cobra
ir atrás de felicidade imatura,  
passada e pouco vivida,
impressa nos olhares inocentes
de gáudios juvenis de antigamente.

A juventude era ingênua, desavisada,
nos anos breves, nos fatos raros,
que pouco pesavam como conselhos
sobre braços, mãos e jovens joelhos,
movidos sem medicinais reparos.

Agora, nem uma hora lhe sobra
na busca de assento seguro,
nas dobras do pensamento maduro,
que, célere, se evade no remanso
das águas em gotas do esquecimento.

As fotos apagar-se-ão com ele,
efêmeras, soltas como as lembranças
dos parentes mais próximos,  
herdeiros apenas dos gostos
das circunstâncias sem fianças.

Ninguém mais as recolherá,
em caixas de guardados documentos.
Talvez as descartará o lixeiro,
com outras mais, suas iguais,
no seu último ardente paradeiro.

sábado, 10 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (12)

Bois de coice, bois de guia

Carros de bois que despertaram variadas emoções, e ainda despertam vivas lembranças em quantos nasceram e pisaram o chão desse sertão mineiro! Não havia carapina qualquer a trabalhar a madeira de um carro com capricho e arte, ou um qualquer oficial ferrador a ferrá-lo com tal esmero, para não bambear os cravos nos altos e baixos dos mais variados terrenos e sulcadas estradas carreiras das antigas fazendas. E os bois, então, que juntos puxaram o sustento de quantos ainda carregam, no corpo e na alma, o vigor dos alimentos saudáveis, que a natureza prodigaliza àqueles que a respeitam!?.
“Arruma, Chitão! Vamos lá, Pavão!” Conserta, Faceiro! Rompe, Mineiro! E o canto monocórdio, continuado e tristonho do carro de bois ia dando vida àqueles silêncios imensos dos altos e planos, segundo o orquestravam bois e carreiro em sintonia de saudades.
Junta de bois era a de coice, mais pesados para sustentarem no pescoço o peso do cabeçalho do carro carregado de madeira ou de milho, para o desviarem, se preciso fosse, a poder do ferrão, dos moirões das porteiras, ou o rabearem, na hora de o descarregar frente ao paiol. Bois da junta de guia, que obedeciam ao comando do candeeiro, que lhes indicava o caminho. Só de ida, que na volta, podia-se largar a dianteira, que eles já decoraram a estrada. Estes faziam mais força, esticavam mais o pescoço, resfolegando para buscarem mais ar, sob a pressão da brocha e dos canzis. Quando, na descida de morro, esfolavam os cascos das mãos para segurarem, com a aguilhada em riste, afrontando-lhes os chifres, o impulso do peso do carro. , as outras juntas, as de de guia, de chaveia, por exemplo, tinham menor poder de responsabilidade na lida do carro. Era ali a escola, que as amansava e as fazia aprender a obediência ao carreiro e as disciplinas do ofício.
Dois bois fizeram nomes no carro de meu pai: o Mineiro, curraleiro azulegado, de pescoço curto e grosso, sem corcova, chifres de agulha, pernas e mãos de músculos endurecidos e fortes, e o Japão, branco, barbelado, cupim proeminente, que o remontava a um passado de marruá reprodutor, depois castrado para esta outra serventia. Os dois eram em tudo diferentes, nas formas como na cor, nas feições como nas intenções, igualados, porém, na força, porque, na canga, um boi não podia fazer mais força do que o outro, sob pena de deixar o companheiro nos chifres daquele que lhe vinha logo atrás, resfolegante e maldoso.
O Mineiro tinha fama de brigão e desafiava qualquer oponente, às turras, para a briga. Havia que se cuidar para não deixá-lo medir força com boi marruco, enciumado, para este não sair em desvantagem. Boi reprodutor que não agüenta o tranco numa disputa com boi castrado, sem poder defender seu terno de fêmeas, fica humilhado e se acovarda até na hora de cumprir com a obrigação. O Japão, não se sabe ao certo, se pelo seu passado de procriador frustrado, ou pelo peso que se lhe ia suplantando as forças, não durou muito tempo na boiada carreira de meu pai. Enquanto o primeiro ficou com a fama de forte e bom de briga, quando livre da aguilhada do carreiro, o segundo fadou-se ao esquecimento.
Mais juntas havia. Carro de bois com somente duas parelhas por aqueles lugares de morros e ladeiras era imagem rara, para não dizer impossível. O correto, mesmo, e bonito, consistia em ver atreladas, de cangas e ajoujo, pelo menos cinco, reservando as posições do meio da formação aos bois menos pesados e ainda neófitos na lida com o carro, como já dito.
O carreiro tinha que ser experiente, com maturidade e astúcia suficientes para mandar bois e carro em caminhos os mais desconcertados. Carreiro bom por aquelas bandas do Santo Antônio das Minas Vermelhas tinha nome: Nego do Jacinto. Os olhos atentos, apesar da atávica timidez, que mantinha afastados do interlocutor, não o afastavam, paradoxalmente, da imprescindível ascendência com os bois. Nunca boi amuador, diante do esforço, na subida de morro, podia deitar e deixar o companheiro sufocado na brocha dos canzis pela desatenção de sua vara alongada. 
O candeeiro, quase menino, de aguilhada nos ombros ou em riste, batia na canga dos bois de guia, para os chamar na direção certa. Quantas vezes, eu-menino tinha que equilibrar em minhas botinas de sola de couro lisa, melada e escorregadia por sobre o meloso seco, para não me deixar apanhar nos chifres daquela dupla de bois, que, no aprumo do morro, vinha bufando de cabeças baixas, sob o peso do carro chiante, carregado de estacas de madeira recém tiradas do mato da Perobinha, sob os mandos prementes dos carreiros, que o ladeavam de varas de ferrão em punho, para não deixá-lo parar no esconso do morro, até que, no momento certo, um “Ôoooa” dava um fôlego aos bois, sufocados na brocha para depois recomeçarem um novo e enorme esforço de ganharem o alto da estrada carreira, onde podiam ritmar o tom do canto do carro ao atrito dos corações, apaziguados no vital oxigênio. Naquele momento, o menino candeeiro podia largar, de zás, seu posto, à frente da boiada, para vir descansar as pernas curtas, assentado no recavém do pesado veículo.
O carro de bois, aos poucos, foi se emudecendo, minguando o canto, originário de eixo e cocões, e apagando o cheiro embalsamado do chumaço.  Eu-menino me arrebanhei para outros cantos e fatos de largas vidências. Só, agora, revivo as lembranças e os calos das longes andanças.
          “Vem, Florão! Afasta, Mineiro! Conserta, Pavão! Arruma, Faceiro, que a vida segue seu tanto!

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (11)

Porco magro, porco solto no terreiro

De longe, fora do perigo de uma dentada atrevida ou raivosa, eu assistia ao meu avô no cuidado com os porcos, criados, naquele tempo, soltos à larga na natureza.
As porcas davam cria na beira do rio, onde o sapé não mais disputava espaço com os outros capins. Simplesmente, dominava a várzea. Lugar ideal para animal se esconder e não ser encontrado, bicho-fêmea parir em paz, suas crias de instinto selvagem.
         Quando uma porca ou marrã amojada não comparecia para o milho da tarde, meu avô ia preparando o jacá, para buscar a ninhada na manhã seguinte, antes que os leitõezinhos mamões ficassem espertos e se enfiassem pelo capinzal a dentro, ou fossem comidos por algum predador esfomeado.
         No jacá ele colocava umas espigas de milho descascadas e uma outra ao natural, para, com o barulho da palha, chamar a atenção da porca parida de que ali tinha comida. Ela, com a fome do cansaço de horas de parição e das primeiras mamadas, se distraía com a ração e permitia a meu avô cuidar dos leitões, colocando-os no balaio.
 Primeiro, ele pegava uma porção do abundante sapé que a parturiente viera cortando com os dentes afiados, como se fosse parir uma centena de leitões, e com ele acamava o fundo do cesto de bambu. Uma verdadeira devastação o que o instinto materno da porca fora capaz de fazer. Depois, era preciso ficar atento para achar o ninho, e dentro dele a ninhada de leitõezinhos amontoados uns sobre os outros para intercambiarem o calor. Enquanto isso, a mãe faminta mastigava o milho, meio distraída e afastada dali. Todo cuidado era pouco, porque ela poderia resolver, sem mais nem menos, se voltar contra o intruso que lhe roubava as crias. Aí, só mesmo com a vara de bambu, que meu avô nunca esquecia, poder-se-ia conter a fúria instintiva do animal.
 Quando a porca era de primeira cria, os cuidados se redobravam, que nada de mais perigoso que uma fera daquela, recém parida, na proteção dos filhotes. E, depois, os leitões, parece, eram avisados de antemão a gritarem o quanto pudessem, em caso de qualquer agressão. Guinchos de leitão miúdo e friorento é de furar os tímpanos de um vivente. Aliás, diz-se que porco é o animal que grita mais alto e estridente, em relação ao tamanho. No desespero, então...
Depois de tudo arrumado no balaio, os bichinhos sossegavam em cima do capim, e meu avô tomava o caminho de casa com a ninhada nas costas. Para que a mãe não tivesse algum rompante e viesse em defesa de seus leitões, que, agora, apenas resmungavam, ele ia debulhando uma espiga de milho pelo caminho, com a mão que lhe sobrava livre. Aconteceu de eu-menino cumprir tal tarefa. Deixava cair, aqui acolá, uns poucos bagos, só para distraí-la, até chegarmos novamente ao terreiro.
Ali, ele dava um jeito de acomodar mãe e filhos em lugar onde pudessem correr menos perigo. Com o passar dos dias, os porquinhos, bem rechonchudinhos, de rabinhos em parafuso, iam se tornando cada vez mais atrevidos, reclamões de comida, com o leite da mãe escasseando e não os contentando mais. Ela, , agora, era toda calma, magrelona, de tetas bambas, murchas, dependuradas, sem muito ânimo para brigas e intrigas no chiqueiro.
Acontecia, também, de os porcos magros de meu avô, apesar dos cuidados e do milho abundante no paiol, darem de entrar nos quintais dos vizinhos. Comiam mandiocas, chafurdavam na lama e na terra seca, fuçavam e arrombavam açudes de regoágua. Se encontrassem uma roça de milho, então, já quase granado, faziam a festa, e estragos, na certa. Aquilo  desassossegava qualquer vivente, o mais condescendente. Alguns, para cobrar a dívida, ou fazer desfeita, cortava-lhes um pedaço da orelha, o que significava grave provocação, suficiente para dar cabo a sólidas amizades.
         Já, no chiqueiro, o porco não amolava ninguém, reclamava de comida, dormia e engordava, até que a necessidade da casa os fizesse virar banha de lata. Segundo gente entendida, porco só tem, mesmo, duas funções no mundo: comer e mais comer, para depois ser comido.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Contos contados de Minas (10)

O cão-correio

Chamava-se Leão um dos cães de meu avô. À época, minha mãe morava não muito distante da casa paterna, umas duas horas a cavalo, quando muito. Enquanto meu pai ficava preso aos afazeres da fazenda, ela colocava o filho mais velho na garupa, o mais novo na cabeça do arreio e fazia o trajeto entre as duas casas, sozinha, passando por incômodos caminhos, sabe-se lá como. Amiúde, ia visitar as duas primeiras filhas, já em idade escolar, que moravam com os pais, pela proximidade com a casa de escola, no arraial dos Caixetas.
Ela era conhecida daquelas paragens e de seus moradores, e, algumas vezes, precisou da ajuda deles, na travessia de córregos de águas crescidas pelas chuvas, ou, mesmo, para puxarem-lhe o cavalo nos atoleiros. Outras vezes, apeava sozinha do cavalo, abria colchetes e porteiras sem tramelas e mal cuidadas. Enquanto um dos filhos equilibrava na anca do animal, carregava outro, ainda muito pequeno, no braço desocupado. Dormia uma ou duas noites na casa dos pais, deixava recomendações às filhas para que fossem sempre obedientes e punha-se, novamente, nas estradas, de volta à casa, para o marido.
            Quando se despedia dos paerentes, o Leão costumava acompanhá-la um pedaço de caminho, para depois assentar-se sobre as pernas traseiras e voltar para casa dos donos. Mas nem sempre, assim, acontecia. De vez em quando, seguia a estrada até a casa de meus pais, sem nenhuma explicação e constrangimento. E por lá ia ficando, até que minha mãe o enxotava de volta, com cara fechada e palavras duras. Aí, o jeito era enfiar o rabo entra as pernas e tomar o rumo, que ninguém  demora em casa de mal agradecidos. Horas depois lá chegava o Leão meio ressabiado, olhando de soslaio, sem saber como encarar os donos, como a pedir perdão pelo sumiço, já se tornado costumeiro.
            De certa feita, minha mãe, recém-chegada do passeio, acompanhada, mais uma vez, do Leão a secundar-lhe o caminho, viu-se às voltas com um dos filhos doentes, de febre alta. Os chás caseiros, que ela conhecia, pareciam não surtir efeito. Já começava a ficar preocupada. Pensou em tirar o marido da lida costumeira e enviá-lo à casa dos pais em busca de algum remédio mais eficaz. Uma palavra de amparo da mãe ou da irmã, que conheciam bem as plantas e raízes remediadoras, se fazia imperiosa. Farmácias só em último caso, e, assim mesmo, com o Euclídes, renomado farmacêutico da Vila Guimarânia. .
            Nesta luta interna de não saber o que fazer, de imediato, avistou ali por perto o Leão, de olhares apreensivos e o focinho apoiado sobre as mãos , à espera de algum ralhado, para pôr-se de novo na estrada. O pensamento dela se iluminou. Pensou escrever um bilhete para a mãe e enviá-lo, atado, ao pescoço do cão. E foi o que fez, apesar da dificuldade em lidar com as letras. Mas, na hora de amarrá-lo ao colo do portador, veio-lhe a idéia de como fazer, para que não chegasse molhado, ou, quem sabe, até, nem chegasse. Era tempo das águas, de muita chuva, e, com certeza, os córregos, que o Leão teria de atravessar a nado, estariam cheios. O papel se derreteria, antes mesmo de chegar aos destinatários.
Mas uma outra ideia, não menos luminosa, lhe sobreveio, como solução. Começou a enrolar o bilhete em outros papéis, que ia amealhando de dentro de gavetas e debaixo de colchões, até formar um grosso pacote que julgou impermeabilizado e adequado a protegê-lo da umidade. Depois, chamou o cachorro, desconfiado, amarrou-lhe o volume ao cangote, e apontou-lhe o caminho de volta para sua casa de origem. Talvez já antevendo o que, mais dias menos dias, forçosamente, acabaria por acontecer, o fiel escudeiro não tergiversou na empreitada.
            Quando o Leão chegou à casa dos donos, estes notaram a sua presença e de onde provinha. Logo, estranharam aquele pacote atado a seu pescoço. A irmã procurou, então, saber o que era aquilo e, depois de desatá-lo, o foi desfolhando, cheia de curiosidade, até dar-se com o bilhetinho, ainda enxuto, com a mensagem que minha mãe, tão engenhosamente, lhes fazia chegar por intermédio daquele inusitado carteiro.

sábado, 3 de setembro de 2011

Pensares a conta-gotas (32)

Deixemo-las viver em paz,
ao abrigo das intempéries,
as corujinhas buraqueiras,
desses repúblicos terrenos,
e seus filhotes ingênuos,
ainda sem aprenderem direito
a comer os insetos corretos,
que não os besouros rola-bostas,
que se alimentam dos ovos
da nefasta mosca dos chifres,
nos excrementos fumegantes
dos ruminantes agradecidos
pelas picadas reduzidas
nos pescoços de couro duro
e demais partes carnudas,
dos rabos às adjacências mais pobres,
como ensina a sábia ciência dos homens,
que, também, lhes devem graças,
como, aliás, todos os seres passantes,
desamparados ou favorecidos entes,
pela existência já quase impossível
sobre este planetinha nadinha,
de muita merda, de miolo mole,
que poucos viventes rolam e engolem,
levado às moscas das circunstâncias,
carente de mais salvadores
que delas o protejam,
mesmo que voem ou rastejem,
e o conduzam na exata direção,
para onde segue o sol da purificação,
e os todos outros astros além,
irmãos das galáxias eternas,
e que, assim, seja, amém!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (9)


Avós paternos do autor, pais da 1ª tia

Um polaco, na madrugada do meu avô
(In memoriam de Isordina Caixeta, 1ª de sua geração de Caixetas, finada em 20/8/2011)

Meu avô agonizava, em um quarto escuro, à luz de lamparina, as largas e altas janelas fechadas para não deixarem entrar a aragem fresca da escuridão de uma madrugada triste. O cavalo-madrinha da tropa batia, num continuum, o polaco, no curral, ao lado da casa grande. Não se sabe se de tristeza, ou se apenas para acostumar os ouvidos dos outros animais, na maioria burros e mulas, com o som daquele instrumento pouco sonoro e mais parecido com o silêncio estranho de outros mundos. Quem quiser tirar disso uma prova basta-lhe andar pelas estradas de Galícia e Portugal, conferindo aquela sonoridade, que parece vir do fundo dos tempos e de páramos etéreos.
 Contrariamente aos hábitos daquelas regiões, meu avô gostava de tocar umas modas de viola, instrumento que ganhara de um tio da mulher. (Quando pego na viola / pra tocar umas modinhas / lembro-me bem de você / minha doce Sinhazinha. Ou,  então: Peguei na viola / comecei a cantar / ela assentou-se ao meu lado /  pra melhor me ajudar). Pouco se sabe de suas alegrias ou tristezas, uma vez que morreu cedo, com apenas 36 anos de idade. O som do polaco, no pescoço do cavalo-madrinha, deu ao moribundo, naquela noite, a nota final para o mote da viagem que acabou fazendo, antes de uma outra que ainda estava nos preparativos para os dias próximos.
Guimarães Rosa, em seu "Cara de Bronze", soube traduzir aquela cena lúgubre, que trago comigo das lembranças que me contou uma tia, filha mais velha de meu avô, que, à época, contava apenas 10 anos de idade. Meu pai, o segundo de uma nova geração de Caixetas, ficara com 8, além da responsabilidade de conduzir os negócios do pai e da mãe, viúva aos 27 anos de idade.
O moribundo havia realizado outras viagens a Formosa dos Couros, na longínqua Goiás, para comprar gado. Aguardavam-no a tropa reunida, as selas revistas, as mulas de carga escolhidas, os burros e animais de sela repassados, os apetrechos de cozinha, os peões, os acompanhantes, o cozinheiro, e, sobretudo, o cavalo-madrinha, que, mais experiente, devia fazer o ponto de união da tropa, nas passagens difíceis dos gerais, sem cercas nem beiras, e muita poeira nas longas marchas estradeiras.
Meu avô pouco se importava com alguns problemas de saúde que a sorte o fizera carregar. Um deles provinha de acidente com uma roda de carro de boi desgarrada do eixo, que passara sobre seu quadril, amassando-lhe os rins. Devido a esta fatalidade, nunca “prestara”, e havia mesmo ocasião em que precisava pedir ajuda a uma bacia de água, postada ao lado da cama, para estimular-lhe a premência de urinar. O ruído do líquido, certamente, lhe facilitava o fluxo. Outro incidente, este de fogo vindo do céu, sob forma de raio em dia de tempestade, lhe queimara o peito, vitimando o burro que montava. O choque deve ser sido, mesmo, fulminante para alguns de seus debitados órgãos urinários, pelo que se contou e pelo tempo que ainda durou. E, naquela noite de 2 de fevereiro, já no segundo casamento, 6 filhos, enquanto o cavalo-madrinha fazia soar o soturno polaco no curral, meu avô morria.
            Fazendeiro de largas datas, dinheiro e respeito, Seu Antônio Pereira já o havia desaconselhado a enfrentar dias compridos no lombo de burro até a famosa cidade goiana, para a compra do gado. “Deixa de lado essa viagem tão desconfortável e vamos de automóvel, que é mais rápido. compramos a boiada, e os peões, gente mais moça, a vêm tangendo por esses caminhos desconcertados.” Meu avô, porém, ainda acreditava na pouca idade e forças, que outros sabiam minguadas. Declinou do convite. Estava convencido de que, apesar das limitações de que tinha consciência, ainda podia durar mais uns pares de anos. A mulher nova e os filhos pequenos, um dos quais ainda por nascer, lhe inspiravam sobrevida. A viagem estava de pé, e a peonada, reunida na fazenda, escolhia os animais da comitiva. O madrinha da troca impunha respeito e fazia soar seu cincerro para acostumar os companheiros com o som do instrumento agregador.
O pagamento, em dinheiro vivo, ficaria na confiança que sempre depositava no Geromo Bina, depois do gado comprado e transladado. Os assentamentos, em letra caligrafada, sempre bem guardados na gaveta do armário de bálsamo, que dividia a sala dos espaços do vasto salão, atestava a seriedade com que trazia os negócios. Na primeira página do caderno, uma nota confirmava: “hoje, 2 de fevereiro de 1910, eu, Anicésio Vieira Machado, completo 20 anos de idade”. Um pouco mais abaixo, alguns apontamentos: “comprei do fulano de tal tantas cabeças de gado, por tanto, com pagamento para a data tal”.
Meu avô era, assim, homem organizado, de posses, dono de fazenda com nome peculiar de “Fulminante”, terra desacreditada e, depois de seu passamento, objeto, até, de gracejo, como mais apropriada para se criar tamanduá-bandeira. Entretanto, a ironia não viria pela vertente dos bens terrenos, mas por  ter sido o próprio dono, em parte, morto, fulminado por um raio que lhe diminuiu a vida ainda na flor dos anos.