quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (13)

O burrinho sabiá


Esta história, na verdade, não é a do burrinho Sabiá, que era manso, apesar de velhaco e empacador, muito natural da raça, ou melhor, da carência dela, que burro é animal híbrido, infértil e de atitudes inesperadas. Fazê-lo mudar de idéia, e pôr-se em marcha, demandava esforço. Se convencê-lo a sair de casa traduzia dificuldades, voltar para casa, então, contrariava o que se poderia, à primeira vista, imaginar. Ainda mais porque, ele conhecia sobejamente, aqueles caminhos, a ponto de poder  andar, até, de olhos vendados.Talvez pensasse que, se saísse tinha que voltar, e, se voltasse, tinha que sair novamente. Melhor ficar onde estava. E fincava o pé, murchava as orelhas, empacava, e pronto! "Daqui ninguém me tira", devia pensar!
 Mas, como se ia dizendo, a história não é a dele, mas a de meu pai, que, na ocasião, contava uns oito anos, idade em que conheceu a orfandade paterna. Mas tinha sido elevado a proprietário do tal burrinho teimoso e cheio de manhas. Ganhara-o de presente do pai, por ser manso e já em tempos de se aposentar, um tanto ardiloso, como se disse, mas, para menino de roça, sem muito o que fazer, tais defeitos não devia ser estorvo que o impedisse de prestar pequenos serviços.de porta de casa. Trouxe consigo, de antigos donos, o nome  Sabiá, talvez por ser, assim, tão sabido, como o pássaro de peito roxo e olhar agudo.  Mas, meu pai, naquela idade, pelo que se vai contar, também tinha seus lampejos de astúcia, que não se adquire somente com a chegada dos anos, mas pela observação e agudeza de espírito.
Virava e mexia, minha avó o enviava à casa do pai, não muito distante, para levar um recado, buscar notícias, ou cumprir atos rotineiros de família.  Para isso o burrinho devia servir, e menino sempre teve muita utilidade, bobos de quem não aproveitasse. Além do mais, precisava iniciar o filho na lida da fazenda, como era natural acontecer.
Ocorre que meu pai ganhara, também, recentemente, de agrado, um punhalzinho, que, orgulhosamente, exibia preso à cinta, e que, ainda não lhe tinha servido, por falta de ocasião. E esta logo se apresentou, como se verá, e foi assim:
Um dia, de volta da casa do avô, no meio do caminho, que adentrava um cerrado grosso, o Sabiá, ciente de transportar um dono de pouca experiência, resolveu mostrar sua personalidade de burro manhoso. Empacou e pensou: “Daqui não saio, nem que se for no talho!”
Meu pai deu com os calcanhares, repuxou as rédeas, o chicoteou com a varinha de ramo novo, que sempre se quebra com as folhas na ponta, para só assustar e menos maltratar, gritou "vamos, vamos, Sabiá", e nada. O burrinho, naquele dia, estava mesmo de veneta, de pirraça possuído. A situação estava de difícil solução. O jeito seria deixá-lo por ali, e voltar a para a casa, com os arreios nas costas, pensou o menino, como, também, deve ter maliciado o burrinho.
Foi que meu pai se lembrou do punhalzinho que trazia bem embainhado, à cintura. Jogou a vara fora, retirou a faquinha da bainha, segurou-a firme, e, com a mão que estava livre das rédeas, aplicou, com a força de que dispunha, uma estocada bem na anca do teimoso animal. Com o susto, ele pôs-se, novamente, a andar, talvez sentindo que o sangue   o molhava anca abaixo.
Foi, então, que meu pai olhou e pensou: “Como vou fazer, agora, para contar o mal feito? Se contar, acabo apanhando, se não contar acabam descobrindo e me batendo! O castigo vai vir, na certa!”
Duas vezes, a caminho, apeou do burrinho, encheu as mãos de terra e tentou estancar com ela o sangue que insistia em escorrer pelas pernas abaixo. O que fazer, então? Confessar o acontecido? Não confessar?
Conta não conta, o medo foi aumentando, o caminho encurtando até chegar à casa. que, diferentemente de outras vezes, desta, foi logo desapeando, desarreando o animal, guardando a arreata, e o soltando no pasto, o mais depressa, não sem antes dar-se conta de que o sangue continuava a escorrer, misturado a terra e suor.
A mãe estranhou a sem-graceza do filho, mas nada perguntou. Meu pai estava inquieto, não esquecia do ocorrido. Temia pela vida do burrinho e pelas conseqüências de sua impensada atitude. Por umas duas ou três vezes foi ao pasto verificar se o sangue estancara. Lá, jogava mais terra na ferida que parecia não se fechar mais.
Em uma daquelas inabituais ausências, a mãe mandou ir atrás, ver o que estava acontecendo.  Descoberta a arte, conta-se que meu pai recebeu o castigo merecido, e perdeu o punhalzinho para nunca mais o encontrar.

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