terça-feira, 6 de setembro de 2011

Contos contados de Minas (10)

O cão-correio

Chamava-se Leão um dos cães de meu avô. À época, minha mãe morava não muito distante da casa paterna, umas duas horas a cavalo, quando muito. Enquanto meu pai ficava preso aos afazeres da fazenda, ela colocava o filho mais velho na garupa, o mais novo na cabeça do arreio e fazia o trajeto entre as duas casas, sozinha, passando por incômodos caminhos, sabe-se lá como. Amiúde, ia visitar as duas primeiras filhas, já em idade escolar, que moravam com os pais, pela proximidade com a casa de escola, no arraial dos Caixetas.
Ela era conhecida daquelas paragens e de seus moradores, e, algumas vezes, precisou da ajuda deles, na travessia de córregos de águas crescidas pelas chuvas, ou, mesmo, para puxarem-lhe o cavalo nos atoleiros. Outras vezes, apeava sozinha do cavalo, abria colchetes e porteiras sem tramelas e mal cuidadas. Enquanto um dos filhos equilibrava na anca do animal, carregava outro, ainda muito pequeno, no braço desocupado. Dormia uma ou duas noites na casa dos pais, deixava recomendações às filhas para que fossem sempre obedientes e punha-se, novamente, nas estradas, de volta à casa, para o marido.
            Quando se despedia dos paerentes, o Leão costumava acompanhá-la um pedaço de caminho, para depois assentar-se sobre as pernas traseiras e voltar para casa dos donos. Mas nem sempre, assim, acontecia. De vez em quando, seguia a estrada até a casa de meus pais, sem nenhuma explicação e constrangimento. E por lá ia ficando, até que minha mãe o enxotava de volta, com cara fechada e palavras duras. Aí, o jeito era enfiar o rabo entra as pernas e tomar o rumo, que ninguém  demora em casa de mal agradecidos. Horas depois lá chegava o Leão meio ressabiado, olhando de soslaio, sem saber como encarar os donos, como a pedir perdão pelo sumiço, já se tornado costumeiro.
            De certa feita, minha mãe, recém-chegada do passeio, acompanhada, mais uma vez, do Leão a secundar-lhe o caminho, viu-se às voltas com um dos filhos doentes, de febre alta. Os chás caseiros, que ela conhecia, pareciam não surtir efeito. Já começava a ficar preocupada. Pensou em tirar o marido da lida costumeira e enviá-lo à casa dos pais em busca de algum remédio mais eficaz. Uma palavra de amparo da mãe ou da irmã, que conheciam bem as plantas e raízes remediadoras, se fazia imperiosa. Farmácias só em último caso, e, assim mesmo, com o Euclídes, renomado farmacêutico da Vila Guimarânia. .
            Nesta luta interna de não saber o que fazer, de imediato, avistou ali por perto o Leão, de olhares apreensivos e o focinho apoiado sobre as mãos , à espera de algum ralhado, para pôr-se de novo na estrada. O pensamento dela se iluminou. Pensou escrever um bilhete para a mãe e enviá-lo, atado, ao pescoço do cão. E foi o que fez, apesar da dificuldade em lidar com as letras. Mas, na hora de amarrá-lo ao colo do portador, veio-lhe a idéia de como fazer, para que não chegasse molhado, ou, quem sabe, até, nem chegasse. Era tempo das águas, de muita chuva, e, com certeza, os córregos, que o Leão teria de atravessar a nado, estariam cheios. O papel se derreteria, antes mesmo de chegar aos destinatários.
Mas uma outra ideia, não menos luminosa, lhe sobreveio, como solução. Começou a enrolar o bilhete em outros papéis, que ia amealhando de dentro de gavetas e debaixo de colchões, até formar um grosso pacote que julgou impermeabilizado e adequado a protegê-lo da umidade. Depois, chamou o cachorro, desconfiado, amarrou-lhe o volume ao cangote, e apontou-lhe o caminho de volta para sua casa de origem. Talvez já antevendo o que, mais dias menos dias, forçosamente, acabaria por acontecer, o fiel escudeiro não tergiversou na empreitada.
            Quando o Leão chegou à casa dos donos, estes notaram a sua presença e de onde provinha. Logo, estranharam aquele pacote atado a seu pescoço. A irmã procurou, então, saber o que era aquilo e, depois de desatá-lo, o foi desfolhando, cheia de curiosidade, até dar-se com o bilhetinho, ainda enxuto, com a mensagem que minha mãe, tão engenhosamente, lhes fazia chegar por intermédio daquele inusitado carteiro.

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