domingo, 26 de fevereiro de 2012

Pensares a conta-gotas (73)

Um poema nunca se escreve,
Mas se vive e se cala
No âmago do peito.
O que sai pela boca,              
Ou do próprio cálamo             
É o que da alma se exala
E se inala rarefeito.      

Um poème ne s´écrit jamais,
Mais se vit et se tait,
À l´abri du coeur.
Ce qui sort par la bouche,
Ou même de la plume,
C´est ce qui s´évapore de l´âme,
Et que, moins dense, l´on hume.



O homem é demasiado pequeno.
Menor ainda, o mundo.
O universo, sem dimensão definida.
Minha vontade,
Bem maior que a vida
Mesmo indefinida.

L`homme est si petit.
Encore plus petit est le monde.
Et l´univers, sans taille définie.
Et les desirs?
Bien plus grands que la vie
Même indéfinie.


Nem sei como consegui pensar e,
Ainda, escrever o que pensei,
Se, agora, já nem mais sei
Como, até aqui, cheguei
De cabeça aos ventos
Com pensamentos
Que me deram
Sustentos
Alentos
lentos

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Pensares a conta-gotas (72)

Que os filhos não cresçam,
nem se aborreçam ou sofram,
nem trabalhem ou corram,
ou se levantem, assim, tão cedo,
ou cheguem atrasados,
aos olhares alheios, apartados.

Um dia, estarão sozinhos,
não se levantarão mais tarde,
trabalharão e correrão
como qualquer vivente,
ou, até, serão traídos
por olhares serpentes.

Aprenderão que viver é perigoso,
sem deixarem de fugir da vida,
por imperioso e por ciso,
sem que os pais estejam próximos, atentos,
por impotentes ou já desaparecidos
destes recantos de infernos ou paraísos.

Não haverá por que serem lembrados,
como não é costume acontecer
com quaisquer antepassados.
O tempo não os deixará para trás,
para não retirarem dos descendentes
a ocasião de mais viverem,
na insana procura da paz.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Pensares a conta-gotas (71)

Como não sei me doar
Em bem falar,
Doo-me, assim,
como sôo.

Como só sei me doer
Em mais sofrer,
Condoam-se comigo,
como sou.


Quatro e meia me deitei,
Seis e meia me acordei,
Sete e meia me aprumei,
Pouco dormi, menos sonhei.

Do mundo a que sucumbi,
Pouco ou nada guardei,
Do tanto que menos vivi,
Mais com-tem-po-ri-zei.



Quero a vida viva, vivinha.
Morta, seria erva na horta,
A dar sementes daninhas,
Para mais gente mesquinha.


Andar e desandar,
Sem pressa de chegar,
É agravante bastante,
Para o caminhante,
Do irreverente,
E do instante irrelevante!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Pensares a conta-gotas (70)

Perdi, por nada,
Sonos e sonhos,
Suores, valores,
Voláteis vapores,
Mais prazeres,
Do que ardores.

Perdi bem-me-queres,
Por temores
De gerar mal-me-queres
E rancores.


Somos todos passageiros
De trem pontual e veloz
De paradeiro incerto, audaz.

A viagem não é perto, ou sem fim,
E conduz a destino fugaz
Perdido dentro de mim.


Evanesce a beleza
Como fenece a flor
De que nasce o fruto
Que protege a semente
Na planta que cresce
E se alimenta da gente
E sustenta no talo
A flor que apodrece
E reflete a certeza
De mais um círculo
De vida e beleza.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Contos contados de Brasília (4)

Restaurante universitário 

Salada de repolho roxo, cortado grosseiramente, misturado a muitos galhos de agrião (gostava de triturar, com os dentes anteriores, os talos, escutando o barulho, como bem sabem fazer os roedores), molho de cenoura, vinagre e cheiro verde, tomate em largas fatias, condimentado, grossos pedaços de mamão, como sobremesa, arroz branco, bem soltinho, feijão amarelo, amassado, bifes de carne acebolados, cozidos ao molho, suco, farinha, molho apimentado a gosto. Tudo muito abundante, com acompanhamento nutricional. Filas de estudantes aguardando a sua vez de se servir, diante de cartazes advertindo para não se servirem de porções em excesso, pois que seriam jogadas posteriormente no lixo do refeitório.
Fez, mentalmente, as contas. Há quarenta e dois anos, comera pela primeira vez em um protótipo daquele restaurante universitário, sem nunca ter revirado o nariz para dizer, como já ouvira de outros ex-alunos, que aquela comida era ruim. Sempre gostara dela, fosse o que fosse servido. Com o passar do tempo, tudo se modificara, do prédio aos cardápios e maneiras de servir. Mas, pelo que sabia, nenhum dos milhares de estudantes que por ali passaram, tivera que ser socorrido por descuido de higiene ou alimento deteriorado.
Depois das refeições, durante aquele seu primeiro semestre de 1968, costumava aproveitar a sombra das árvores do campus universitário para fazer a sesta, com um cochilo rápido em aguardo às aulas do período vespertino. Agora, quando podia, aproveitava para voltar aos velhos tempos e se infiltrar em meio aos estudantes, compartilhar com eles de um espaço à mesa e se sentir mais jovem, mesmo sabendo que sua cabeça, em quase tudo, se distanciava da de seus companheiros comensais, a começar pelos cabelos brancos, que ele fingia desconhecer.
Enquanto degustava momentos de saudade, ia observando aquelas fisionomias de jovens que bem poderiam ser seus netos. Alunos, talvez não houvesse nenhum mais, freqüentando aquele recinto, uma vez que já fazia doze anos que se aposentara, um tanto intempestivamente, sem muito refletir, diante dessas intermitências políticas, ora fazendo, ora desfazendo decisões tomadas. A sua aposentadoria, pois, nascera de uma dessas incertezas administrativas, políticas do faz-se hoje para se voltar atrás amanhã. “Se não me aposentar agora, quem sabe depois não vou poder desfrutar de uma vida mais satisfatória!” E, assim, se fez, e, assim, ficou feito.
O certo é que se arrependera, ficando, ainda com toda a capacidade de trabalho, em casa, sem compartilhar com outras pessoas toda uma bagagem de conhecimento que julgava ainda válida. Se lia algo que poderia desdobrar com os alunos, lamentava o fato. As sociedades mais primitivas valorizavam seus anciãos pelo conhecimento, fruto da experiência, que os anos ia lhes acrescentando. Hoje, com a tecnologia, não se pensa assim. O que se ganha em progresso rápido, perde-se em contatos humanos, olhares nos olhos, debates e trocas de idéias, aprendizado coletivo. O que se ganha em informação, perde-se em educação e comunicação. As pessoas se distanciam cada vez mais umas das outras, se isolam no egoísmo das telas de seus moni-tores e computadores. A auto-suficiência tem o gosto insosso do isolamento, da solidão, da sensação de inutilidade.
Mesmo que se elimine cada vez mais o papel, os talões de cheques, o papel moeda, e valoriza-se demasiadamente os títulos, conseguidos cada vez mais facilmente e abundantes, a experiência tem que ser provada e não comprovada. O velho professor, depois de anos de trabalho e dedicação não somente em sala de aula, receptivo aos alunos que o procuravam para discutirem e aprofundar um assunto, mesmo que adverso, em sua sala de estudos, já não mereceu mais de seus colegas, ao deixar suas atividades, por aposentadoria  precipitada, uma sequer palavra de agradecimento. O que parece contar são os resultados imediatos e evanescentes, e não os permanentes e indeléveis. Enquanto isso vai a sociedade do progresso perdendo a cultura humanística e a civilização. Ensino peripatético, foram-se os tempos!
No restaurante universitário, os jovens estudantes iam se escasseando, deixando lugares para as reminiscências e as saudades do retardatário. A comida, uma vez mais, foi bem digerida e trouxe o gostoso sabor da simplicidade e da eficiência. Ainda se come bem por lá, naqueles, talvez, poucos momentos de contatos humanos que, certamente, deixarão mais lembranças, daqui a quarenta anos. Daí, essa vontade de desencavar guardados:

Gostaria de sonhar com a uni-vers(al)idade,
onde se reúnam pesquisadores do bem,
e se priorize, também, mais conteúdos,
conhecimentos, como reais valores,
experiências e empenho de educadores,
mais do que doutores, como penhores,
mais do que títulos e tais aparências,
sem transparências, docências e louvores,
como ora se supõe garantam o engenho
e o renome dos verdadeiros professores.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Contos contados de Brasília (3)

Brasília, primeiros tempos

O ano de 1967 já findava seu pedaço de vida, e o destino o levava em um ônibus de corrida de Belo Horizonte a Brasília. Da janela, naquele final de madrugada fria, depois de horas de sacolejos e ansiedades, se divisava ao longe, como sobre uma mesa extensa, carreiras de luzes brancas, perdidas na solidão dos ermos. Imagina-se o inusitado daquela imagem, tão diferente do que, até ali, conhecera. Mais alguns minutos estava chegando à nova capital, tão noticiada pelo Brasil a fora, como a concretização da coragem de um homem, da aventura de um povo e do sonho de um santo.
Nele, também, acontecera o estalo, na noite que precedeu aquela arrancada em direção ao incerto, para ver o que lhe aconteceria, caso enfrentasse os exames vestibulares na Universidade de Brasília. O primo sempre lhe dizia, nos tumultuados dias de Beagá, que o fato de não ter estudado o suficiente das matérias de ciências exatas não o impediria de fazer o vestibular, e de ser aprovado naquela jovem instituição superior. A UnB fora criada segundo princípios  até então impensados em outras universidades do mundo.
Quando, ainda no frescor da manhã, o ônibus parou na rodoviária do Plano Piloto, ele, há muito desperto, sentiu o coração se apequenar. Tudo era grande e os espaços se alargavam como as tênues linhas do horizonte imenso. Sem saber para que lado se dirigir, pegou um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Universidade, que, àquela época, só havia uma, e diferenciada. Nunca soube o motivo de possível equívoco, mas foi deixado na W3 sul, do lado oposto ao solicitado. Mais uma tentativa, e chegou aonde o destino o levava.
Aprovado, foi aos poucos se adaptando àquela vida de aventuras e pioneirismo, ao mesmo tempo em que a liberdade curricular o favorecia a entrar em contato com colegas, disciplinas e matérias as mais variadas. A vida acadêmica da jovem universidade espelhava a ânsia de liberdade, que os corações brasilienses e brasileiros buscavam, à época, a duras lutas.
Nos começos do primeiro ano, ficou só por conta dos estudos do curso de Letras, e participava intensamente da vida comunitária dos estudantes.  As invasões do campus, as manifestações na W3 Sul, as assembléias dos estudantes o fazia abrir os olhos e a mente. O mundo se mexia e manifestava suas vontades de mudanças.
 Depois das aulas do período matutino, os estudantes procuravam o bandejão, restaurante universitário situado em um dos módulos conhecido por OCA, construções de madeira, como eram a maioria das edificações ainda incipientes da instituição. Entre os prédios improvisados restavam as árvores do antigo cerrado, sob cujas sombras se podia fazer o quilo com uma relaxante soneca. No período vespertino, as aulas eram mais escassas, e, à noite, o campus pouco se movia, após o serviço do jantar, com sua infalível sopa, aproveitando as sobras do que fora servido no almoço.
Todos os dias, ao entardecer, o “Amarelinho”, ônibus parecido com aquelas velhas “jardineiras” bicudas, comuns nas estradas buraquentas do interior do país, passava em frente aos dormitórios, oficiais ou invadidos, para levar os estudantes mais animados até à SQS 308. Ali funcionava a vida cultural e o lazer da nova capital. Na ida, como na volta, o “Amarelinho” vinha apinhado de passageiros, que gritavam em algazarras, quando o motorista caprichava na descida de rampas, comuns na entrada e saídas das “tesourinhas”, sob os “Eixões” e nas descidas próximas ao Congresso Nacional.
A vida entre os estudantes dos mais diversos cursos ainda espelhava o espírito comunitário, responsável pelos movimentos estudantis que o governo militar tratou de inibir com o AI 5. Quantos daqueles movimentos nasceram de conscientizações as mais necessárias à formação do espírito crítico dos cidadãos!
Recém saído de uma longa experiência de aspirante a uma vida de recato, e de um longo ano, em meio a pessoas que não puderam aceitá-lo como a vida pregressa o moldara, aqueles espaços livres e aquele ambiente tolerante de Brasília muito o ajudou. Parecia que cada forasteiro procurava por aqui seu espaço, sua sina, sua esperança de melhores dias. Os caminhões “pau-de-arara”, já não eram tão freqüentes. Mas alguns ônibus empoeirados ainda despejavam levas de gente esperançosa que para cá vinha em busca de felicidade.
            Os tempos passavam. Os tempos passaram. Os tempos passam e repassam como filmes surrados pela lembrança dos que vivenciaram Brasília, daqueles primeiros tempos. O horizonte, o céu, as nuvens, as águas do lago teimam em continuar seu curso. O cerrado diminui, as árvores foram, em grande parte, substituídas por outras que não aprenderam a conviver com o ecossistema do Planalto. As que permanecem entre prédios ainda gritam por permanência ou salvação. O ar e o clima embalam o sono dos moradores, que se renovam, como não pode deixar de ser. Brasília cresce e permanece, para comprovar a busca da liberdade que a fez nascer neste horizonte infinito.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Pensares em conta-gotas (69)

Nem sempre a melhor partida,
resulta na melhor chegada,
depende da forma empregada
na condução da corrida.

Tudo se acaba,
tudo se transforma,
tudo se consome
tudo obra do homem.

A mata some,
a terra escorre,
a rocha assoma,
o relevo é sem sombra.

Por quanto tempo, ainda,
as fotos não mentirão
aos olhares de netos gulosos,
que não se sabem infindos,
nem infelizes, e vão indo e vindo?


Caminhar é medir      
espaços e tempos,                  
mixar angústias          
a compassos, pensamentos?    

(Marcher c´est mésurer
Espaces et temps,
Mixer des angoisses
À des compas pensants?)

Contos contados de Minas (38)

            Três colegas, três caminhos 

Foi um aluno mediano, nem mais nem menos inteligente ou aplicado do que os demais, do Grupo Escolar e do curso ginasial de sua época. Embora de origem rural e viesse a ter contato com as primeiras letras e números com quase oito anos, alcançou os colegas urbanos, e, até, sem falsa modéstia, superou alguns deles, mais privilegiados da sorte. O pai era, como se dizia, morador da “roça”, de poucas letras. Conhecia, entretanto, a dificuldade de quem não experimentara as facilidades da instrução. Era semi-alfabeto, mas sabia que se não tivera condições de estudar, os filhos teriam sorte diferente. Por isso enviara as duas primeiras filhas à escola, que pouco distava da casa dos sogros, com a professora Maria Guimarães.
Ali, entretanto, se ensinava até os três primeiros anos do chamado “curso primário”, nível no qual a maior parte dos meninos e meninas do lugar não arredaria o pé pelo resto da vida. Quanto a ele, o terceiro da irmandade, aguardaria, solitário, junto à saia da mãe, a vez de, também, buscar os ensinamentos da eficiente professora. Para tanto, passaria, também, a morar com os avós maternos, enquanto, certamente, as duas irmãs voltariam para a casa dos país, para aprenderem o ofício de “futuras donas de casa”, como acontecera com a mãe.
Afortunadamente, o pai avançou adiante da maioria dos parentes. Mudou-se para a cidade, com o propósito de arranjar escola mais adiantada, para as filhas continuarem os estudos, e ele entrar no primeiro ano primário. Foram matriculados, os três, no Grupo Escolar Professor Modesto, em Patos de Minas, próximo à residência que alugara no largo do Rosário. Três meses depois, mudaram para outra casa, que o pai comprara, no centro da cidade, que não lhe passava pela cabeça morar em imóvel de outros, e muito mesmo de aluguel.
O menino terminou o primeiro ano, com aprovação, e procurou um estabelecimento escolar que ficasse mais perto da casa. Dirigiu-se ao Grupo Escolar Marcolino de Barros, edifício imponente e de grande reputação, sem que antes cuidasse de providenciar os resultados da escola anterior. A nova direção quis, então, averiguar, novamente, o nível de escolaridade do novato e fez com que passasse um teste, ali mesmo, na hora, à queima-bucha. Julgou que deveria continuar no primeiro ano, em uma turma mais avançada, porém. Para consolá-lo do retrocesso, disseram que fora promovido do primeiro ano atrasado para o primeiro adiantado, desprestigiando, sem constrangimento, o ensino da instituição anterior. Para ele, entretanto, aquelas sutilezas de sentido se revelavam desnecessárias. O aparente atraso fez dele um dos melhores alunos nos quatro anos primários que se seguiram, até “tirar o diploma”.
Um de seus colegas, dessa época, chamava-se Marcelo. Com ele dividiu, no final do ano letivo, o primeiro lugar da turma. Os dois foram companheiros, novamente, no segundo ano. O Marcelo continuou a ser o primeiro aluno. Ele recuou para o segundo. No terceiro ano, o colega manteve a liderança da turma, e ele tornou a secundá-lo. No quarto ano, foram colocados, por acaso, em turmas diferentes.
Alguns dias antes do término daquele último ano do curso primário, algo inusitado aconteceu na cidade. Ele ouviu, pela primeira vez na vida, os sons da palavra greve, embora, bem mais tarde, apreendesse todo o seu significado de movimento paredista de assalariados que se tinha o costume de se reunir na praia (grève, em francês), para melhor e com mais espaço reivindicar direitos. As professoras estavam, pois, em greve, e não davam mais aula. Ficavam agrupadas em frente ao prédio da prefeitura, ou em passeatas pela avenida principal que, coincidentemente, se situava defronte ao Grupo. Enquanto isso, os alunos as observavam, sem compreenderem o que estava acontecendo.
 Naquele ano, não houve provas finais e, conseqüentemente, também a classificação usual, com festa e palavras bonitas da diretora. Ele não pôde saber, então, qual a sua classificação, nem a de seu imbatível rival, dessa vez, em outra sala de aula. Acredita, porém, sem medo de engano, que teria obtido, sem sombra de dúvida, a melhor nota de sua turma. Nunca mais o viu, cada um deles seguindo rumos que o destino poderia traçar-lhes. Assim, o autor destas lembranças foi estudar em outro estado e se afastou do convívio dos antigos colegas do grupo escolar. na universidade, voltava com freqüência para respirar os ares da infância e a presença dos parentes mais próximos.
Um dia, do terraço de um bar da cidade, viu encostar um desses caminhões que transportam engradados de cerveja e os vai entregando de bar em bar. Dele desceu o Marcelo, arqueado sob o peso dos caixotes, a transportá-los às costas até o interior do bar. Dali continuaria com as paradas, as descidas e os carregamentos. Enquanto isso, ele o observava e bebia goles de cerveja misturada a reminiscências, cada um mais amargo do que o outro.
Assim, revira e volta a vida, e o destino o guiou ao Juvenato Marista, de Mendes, logo depois de concluídos os estudos primários. Teve, também, ali, outro colega, de nome Célio, o mais aplicado da turma de primeira série ginasial, na velha terminologia educacional. O Célio tinha mais idade que os demais alunos. Não era isso, entretanto, que o fazia mais estudioso do que os outros, ou mais inteligente, quem sabe. Na classificação mensal, sempre obtinha o lugar de primeiro aluno da classe, quando ainda se adotava o sistema de emulação, logo eliminado. Foram colegas da primeira até a quarta série ginasial.
Algum tempo depois, quis, novamente, o destino que os caminhos de ambos seguissem rumos diferentes. Ele foi estudar em Brasília e o Célio, por muito tempo não soube por onde andou. Pareceu-lhe que voltara a Belo Horizonte, de onde viera para o colégio interno marista de Mendes.
Aquele tempo passou como não podia deixar de passar. Ele veio a recuperá-lo, um pouco, quando quis freqüentar o grupo que, de vez em quando, volta ao local onde outrora funcionou o tal internato e que, hoje, se converteu em bucólico e pitoresco parque ecológico, com a preservação de parte da mata atlântica. , os antigos alunos buscam recuperar o passado, para dividi-lo entre si, em animadas conversas .
           Em uma dessas ocasiões, ele encontrou-se com um ex-colega, o J.  Arciso, com quem buscou lembrar o tempo de sala de aula, naquele ambiente de verdes e frescor. E vieram-lhes as inevitáveis perguntas: o que foi feito do Fulano, e do Sicrano, e do Beltrano? E do Célio, o que foi feito dele? Então, o J. .Arciso, atualmente, advogado em sua cidade, Colatina, no Espírito Santo, disse ter-se encontrado, casualmente, com o Célio, havia algum tempo. E detalhou: “Logo que deixou o internato, teve que abandonar os estudos para trabalhar e prover a subsistência da família. Deixou os estudos de lado”.
            Tristes notícias, amargas lembranças! Quantos mais, não tiveram a sua sorte! A vida tem, mesmo, razões que a própria razão não compreende, ou não pode compreender. Nem, por isso, deixa de ser a vida, de incógnitas, sortes e desditas. A quem cabe julgar de suas idas e voltas? A felicidade, no pensamento de Machado de Assis, pode estar no contemplar de um par de botinas rangedeiras. Quem sabe, ainda, no transportar de caixotes de cerveja, ou no amparo da família, ou, até mesmo, na aparente incógnita do destino!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Contos contados de Brasília (2)

            O caso da seriema.
Um ovo. Por si , nada demais, mas um tanto esquisito e misterioso. De galinha não era, de pata ou de outra ave, doméstica ou reconhecidamente incomum, não poderia ser. De que seria, então? Melhor esperar que a chocadeira revelasse a origem de tão inesperado produto.
O tempo, um pouco mais demorado do que se esperara, revelou um penado estranho, que foi alimentado com o que se julgou mais adequado para ave, ou pássaro de maior porte, por intuição natural. Com isso, os dias foram passando e o estranho animalzinho também foi se alongando. Um bico enorme, pernas de arrepiar, que além de finas e compridas tinha coloração avermelhada. As ralas plumagens, então, era esperar para ver no que daria aquilo!  A comida foi se transmudando, conforme seus donos julgassem maior a voracidade do desconjuntado penígero. Mais dias, mais meses e o bicho se fez reconhecer em sua verdadeira identidade. Tratava-se, disse um entendido, de uma seriema, que viria a ser, como se verá, um exemplar de apartamento, ou melhor, segundo alguns mais espirituosos, de campos apertados.
Aquele gênero de aves era originário dos espaços gerais. Consultado, o empregado do comércio de artigos para animais, da quadra, receitou alimentação mais apropriada à espécie: pescoço de frango, para melhor relembrar ao novo animal de estimação suas façanhas com cobras e lagartos. Animaizinhos roedores, embora com algum desagrado, eram, por vezes, também ofertados no cardápio do novo habitante do apartamento. 
E o animal crescia e crescia, em tamanho e lepidez. Comida não era o que lhe faltava naquela comunidade ecologicamente correta. Empenou-se todo, firmou as alongadas pernas que cresceram o tanto que a natureza previra, para animal que deveria vagar por campos de capim duro e pontiagudos, terrenos rochosos à procura de algum réptil surdo e distraído, cobras a se esquentarem ao sol. Um penacho veio coroá-lo de rei ou rainha (ainda não se sabia) dos campos gerais, ou, no caso, daquelas áreas pouco conformes.
E pulava, como pulava o esbelto plumado, que não tinha, geneticamente, nenhuma propensão a acumular adiposidades! Simplesmente abria as asas e num átimo alcançava um ponto qualquer mais alto que a agudez de seus olhos podia divisar. Tudo isso sob os olhares maravilhados dos anfitriões, um casal de idosos que se comprazia em ter em casa um membro da família em substituição aos filhos que havia muito alçaram vôos mais longos. Como disse alguém: “a natureza é assim, mãe perdiz solta nos descampados os filhotes para nunca mais tornar a vê-los”. Ali, era o caso (ou o acaso): no lugar da perdiz perdida no descampado, uma seriema alvoroçada.
De seus modos voláteis nada a reclamar. Era, até, uma atração a mais, para a satisfação contemplativa do casal, tanto suas graças e trejeitos, no voejar, no abrir de asas, no aguçar do olhar. Mas uma coisa podia ser desagradável, não fosse a tolerância dos donos: os naturais hábitos campeiros da ave que não escolhia lugares para seus dejetos abundantes, mau cheirosos, corrosivos e freqüentes. Mas isso, também, ficava pela conta do ônus que se pagava pela beleza de seu porte esbelto de manequim em passarela particular.
A moça ou moço, nunca se soube nem se precisava saber, começou, um belo dia, a ensaiar uns sons estranhos, como que de saudade de alguma coisa ou lugar longínquo. Tentou e parou, para dias depois alcançar mais algum progresso em seu intento de comunicação. Ele ou ela, meses mais tarde, afinara a voz e gritava a plenos pulmões, abaixando e levantando o pescoço para maior performance, para prazeres ou pesares, próprios a possíveis ouvintes circunvizinhos. Faltava-lhe, evidentemente, como mais tarde se veio a conhecer, um parceiro que lhe secundasse em duo musical.
Entrementes, o animal que tirava a rotina do apartamento, também, sem querer, perturbava o sono e o repouso dos vizinhos, com aqueles cantos estridentes do amanhecer e do entardecer. Estes se informaram do que se tratava. Reclamaram com o porteiro, com o zelador, com o síndico, que procurou os proprietários do imóvel de onde provinham tão agudos ruídos. Os proprietários argumentaram resistentes, convictos de suas idéias ecológicas. Não havia o que fazer senão um abaixo-assinado de todos os demais condôminos. E foi o que se fez, com um arrazoado que passou de apartamento em apartamento, expondo os motivos para que se pudesse pôr fim àquele animal estranho, selvagem, deslocado de seu habitat natural, contrariando todo e qualquer regulamento dos organismos ambientais.
Entretanto, o documento, embasados nos mais irrefutáveis argumentos ambientalistas, enroscou em algum galho de pau, ingazeira ou coivara, onde se perde anzol em correnteza de rio cheio, carregando balseiros. O enrosco tinha endereço certo. Alguém, pelo relatado, dera razão aos padrinhos do canto da seriema, como veio a se revelar pela própria lábia do defensor em público. Este argumentou em favor da permanência do animal e de seus cantos em tons maiores: por que não se reclamar, antes, do barulhos dos carros que faziam vibrar os vidros nas vidraças; do enlouquecedor estrépito das motos envenenadas; das algazarras dos jovens de cara cheia nos terraços dos bares da quadra; das escandalosas e supérfluas sirenes das viaturas da polícia e,  até mesmo, das ambulâncias vazias de doentes; dos cavalos-de-pau de desajuizados perturbadores do sono dos próprios moradores do bloco? Que viesse, então, o canto da seriema ao amanhecer do sol e ao entardecer das frias quadras de Brasília!
O argumento pareceu forte. O abaixo-assinado não vingou. Os proprietários, sabedores de tão consistentes convicções ecológicas, vieram conhecer o autor e agradecê-lo pelo desinteressado apoio, sem que se alardeasse aos fiscais do IBAMA, que costumam requisitar aves apartadas de seu habitat natural, mesmo que tragam felicidade aos seus donos, apaziguando um pouco de sua solidão, tão presente no quotidiano desse paradoxal planalto central.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pensares a conta-gotas (68)

Temos muito medo
de viver.
A vida só nos ameaça
de morte.
Independente de sul,
de leste,
de oeste, ou de norte,
a solidão nos apavora,
e a utopia nos deixa,
sem hora




Como é que hei
de me lembrar,
se já esqueço
a cabeça no ar?
O corpo é tão incapaz
de voltar a cobrar,
por lei,
o que já deixo de saber,
o que faço,
o que fiz,
ou desfazer hei?




Acredito
No porvir
E mais razões
Encontro
De existir.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Contos contados de Minas (37)

           “Sai da janela, assombração!” 

Conta-se o milagre, não se revela o santo. Conta-se o conto, aumenta-se o ponto, corta-se o tanto, inventa-se o quanto. Da verdade faz-se a mentira, com mais graça e arte, na ficção dos tênues repartes.
O Zequinha de Seu Clarimundo era rapaz delicado, de voz de contralto e débeis feições. Corpo aprumado, magro e rosto afinado. Um tanto fraco nas forças, é bem verdade, talvez por ser a rapa do tacho, bem usado. A moça era do lugar, avantajada no corpo e nos hábitos, um tanto diferentes das demais congêneres. De belas e robustas formas, porém. Algum tempo antes de se casar com o Zequinha, ela estivera, de certa feita, em visita à casa da Dona Maria, em companhia da mãe, vizinha de grande respeito e postura. Ao falarem da iminência do casamento, ouviu da sincera anfitriã: “Você está tão nova para pensar em casamento, menina. Espere mais um pouco!” “Não, está conversado, o casório tem dia marcado, não há mais como esperar!”
Por esta ocasião, ela já tirava do bolso o canivetão, a palha de milho que umedecia na ponta da língua e alisava bem alisada na lâmina do corneta, antes de segurá-la por entre os dedos anular e médio da mão. Na palma colocava as lascas picadas do pedaço de fumo de rolo. Depois de enrolado o avantajado pito, acendia-o no tição da fornalha e, sem nenhuma cerimônia, dava as primeiras baforadas para gozar-lhes o prazer, como se estivesse adentrando os páramos celestiais.
Aquilo era atitude de moça, que falava em casamento?”, pensou a Dona Maria. “Fosse, como fosse, mulher velha e viúva, ainda vá lá, se relevava, mas aquela menina”! Enquanto isso o Zequinha devia estar na casa do pai, ajudando-o e aos irmãos mais velhos, com o quanto as parcas forças permitiam, na lida do curral e nos afazeres do terreiro, que consistiam, sobretudo, em colocar dentro de casa os mantimentos, para o sustento da família.
O casamento não devia tardar muito a acontecer, como era do costume. Casamento pedido, marcava-o, logo, sem muito esperar. E foi o que se deu. Casaram-se e foram morar, de início, na casa dos pais do noivo, enquanto se ajeitasse as terras e a casinha onde criar família, como sempre aconselhava o padre, na hora do sim solene na igreja.
Domingo é dia de visitas na roça. Na casa do sogro pouca gente aparecia e a monotonia convidava a visitas na casa dos vizinhos. Antes do almoço, de preferência, para não compartilhá-lo com as tantas bocas da família. Naquele dia santo, de pouca atividade na casa de Seu Marcelo, estavam somente o marido, a mulher, Dona Maria, e o filho caçula. Dia do senhor deveria ser bem guardado. Dona Maria tivera uma boa idéia: matar um “franguinho” para o almoço, por que não! O terreiro estava cheio deles e o paiol de milho, também. Apesar do pouco entusiasmo do marido e do filho, ela foi ao paiol e passou a mão no primeiro volátil que sobrevoou-lhe a cabeça.
estava com o frango na gamela, no ponto de ser depenado, sapecado e aberto, quando apareceram os recém casados. Vamos entrar! Entraram. A Ana, como do costume, foi para a cozinha conversar com a dona da casa e o Zequinha ficou na sala proseando com o dono. Sorte é que o anfritrião, de bem mais idade que o visitante, era pessoa de boa prosa, que não escolhia assunto para alimentar uma conversa. Enquanto o Zequinha emitia sons contraltos na sala, na cozinha, a Ana alisava na língua a palha de pito, com o cornetão e o fumo de corda de prontidão. Pito enrolado,  na auréola da palha bem umedecida, e aceso no tição da fornalha, a Ana nem cuidou em se oferecer para cuidar do frango no lugar da dona da casa, como devia de ser. As baforadas eram por demais prazerosas e ofuscavam-lhe as idéias e a civilidade.
Chamou-se da cozinha para o almoço. “Venham pra dentro, o almoço está pronto!” Mas o Zequinha foi desde recusando: “Nós almoçamos na casa do pai, antes de sair pra , estamos sem precisão!” “Mas venham se servir assim mesmo, matei um franguinho. Venham puxar das panelas!” Era preciso insistir, como se insistiu: “Vocês não devem ter almoçado o suficiente, e já faz tempo, aproveitem!” E se foram os dois em direção da fornalha, onde os tições, ainda quentes, acalentavam a comida nas panelas. O primeiropegou a coxa e o encontro, e a outra, o encontro e a coxa. Para os da casa ficaram os pedaços menos nobres do frango, que era assim que as coisas se davam com eles . Sem seca.
Na casa do sogro, a vida seguia seu curso, e a Ana, ao se casar, encontrou casa cheia e dividida em dois ternos de gente. De um lado os cunhados, com o sogro no comando rígido do patriarcado. De outro, as cunhadas e a sogra, grupo bem mais numeroso e recatado. As moças ficavam confinadas nas repartições internas e anteriores da casa, principalmente, cozinha e circunvizinhanças. Os homens, nos serviços braçais externos, currais, roças e carro de bois. As “meninas”, como eram chamadas as “filhas mulheres”, cuidavam da comida e da roupa dos “irmãos homens”.
Nos primeiros dias, a Ana ficou do lado das mulheres. Depois, aos poucos, foi se esgueirando, até se aproximar da janela que dava para o curral, onde o sogro e os filhos cuidavam das vacas e sua prole. Ali ela, parece, se sentiu mais à vontade. Das primeiras olhadelas até as primeiras baforadas no cigarro de palha de milho foi um pulo. E ficou por uns momentos, postada na contemplação dos serviços masculinos, inclusive no do franzino Zequinha.
Mas o sogro, pai de quatorze filhos, cinco homens e nove mulheres, era homem perspicaz que não andava de olhos nos bolsos e nós na língua. Ao ver a nora recente no sem-que-fazer, se deleitando com a fumaça do cigarro e os olhares compridos ao deus-dará, tomou aqueles gestos como desrespeito à sua autoridade de patriarca e bramiu: “Sai da janela, assombração. Vai pra dentro ajudar as meninas, ou procurar ocupação!
           Não por aquilo, mas, logo, dali se mudaram e viveram, aparentemente, felizes por alguns pares de anos. Ele na lida do terreiro, roçar dos pastos, trato das vacas. Ela, nos afazeres domésticos, baforando o pito de palha, e os olhares compridos perpassando janelas e os longes das estradas. Tiveram filha, que cresceu, estudou e se mudou. A solidão foi pesando no corpo de ambos, menos no dela do que no dele, como não se podia deixar de enxergar. Teria sido esta uma desculpa adequada para a desforra que a Ana encontrou, ao trocar o marido por alguém de mais firmeza na voz, nos atos e no resto?