segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Contos contados de Brasília (3)

Brasília, primeiros tempos

O ano de 1967 já findava seu pedaço de vida, e o destino o levava em um ônibus de corrida de Belo Horizonte a Brasília. Da janela, naquele final de madrugada fria, depois de horas de sacolejos e ansiedades, se divisava ao longe, como sobre uma mesa extensa, carreiras de luzes brancas, perdidas na solidão dos ermos. Imagina-se o inusitado daquela imagem, tão diferente do que, até ali, conhecera. Mais alguns minutos estava chegando à nova capital, tão noticiada pelo Brasil a fora, como a concretização da coragem de um homem, da aventura de um povo e do sonho de um santo.
Nele, também, acontecera o estalo, na noite que precedeu aquela arrancada em direção ao incerto, para ver o que lhe aconteceria, caso enfrentasse os exames vestibulares na Universidade de Brasília. O primo sempre lhe dizia, nos tumultuados dias de Beagá, que o fato de não ter estudado o suficiente das matérias de ciências exatas não o impediria de fazer o vestibular, e de ser aprovado naquela jovem instituição superior. A UnB fora criada segundo princípios  até então impensados em outras universidades do mundo.
Quando, ainda no frescor da manhã, o ônibus parou na rodoviária do Plano Piloto, ele, há muito desperto, sentiu o coração se apequenar. Tudo era grande e os espaços se alargavam como as tênues linhas do horizonte imenso. Sem saber para que lado se dirigir, pegou um táxi e pediu ao motorista que o levasse à Universidade, que, àquela época, só havia uma, e diferenciada. Nunca soube o motivo de possível equívoco, mas foi deixado na W3 sul, do lado oposto ao solicitado. Mais uma tentativa, e chegou aonde o destino o levava.
Aprovado, foi aos poucos se adaptando àquela vida de aventuras e pioneirismo, ao mesmo tempo em que a liberdade curricular o favorecia a entrar em contato com colegas, disciplinas e matérias as mais variadas. A vida acadêmica da jovem universidade espelhava a ânsia de liberdade, que os corações brasilienses e brasileiros buscavam, à época, a duras lutas.
Nos começos do primeiro ano, ficou só por conta dos estudos do curso de Letras, e participava intensamente da vida comunitária dos estudantes.  As invasões do campus, as manifestações na W3 Sul, as assembléias dos estudantes o fazia abrir os olhos e a mente. O mundo se mexia e manifestava suas vontades de mudanças.
 Depois das aulas do período matutino, os estudantes procuravam o bandejão, restaurante universitário situado em um dos módulos conhecido por OCA, construções de madeira, como eram a maioria das edificações ainda incipientes da instituição. Entre os prédios improvisados restavam as árvores do antigo cerrado, sob cujas sombras se podia fazer o quilo com uma relaxante soneca. No período vespertino, as aulas eram mais escassas, e, à noite, o campus pouco se movia, após o serviço do jantar, com sua infalível sopa, aproveitando as sobras do que fora servido no almoço.
Todos os dias, ao entardecer, o “Amarelinho”, ônibus parecido com aquelas velhas “jardineiras” bicudas, comuns nas estradas buraquentas do interior do país, passava em frente aos dormitórios, oficiais ou invadidos, para levar os estudantes mais animados até à SQS 308. Ali funcionava a vida cultural e o lazer da nova capital. Na ida, como na volta, o “Amarelinho” vinha apinhado de passageiros, que gritavam em algazarras, quando o motorista caprichava na descida de rampas, comuns na entrada e saídas das “tesourinhas”, sob os “Eixões” e nas descidas próximas ao Congresso Nacional.
A vida entre os estudantes dos mais diversos cursos ainda espelhava o espírito comunitário, responsável pelos movimentos estudantis que o governo militar tratou de inibir com o AI 5. Quantos daqueles movimentos nasceram de conscientizações as mais necessárias à formação do espírito crítico dos cidadãos!
Recém saído de uma longa experiência de aspirante a uma vida de recato, e de um longo ano, em meio a pessoas que não puderam aceitá-lo como a vida pregressa o moldara, aqueles espaços livres e aquele ambiente tolerante de Brasília muito o ajudou. Parecia que cada forasteiro procurava por aqui seu espaço, sua sina, sua esperança de melhores dias. Os caminhões “pau-de-arara”, já não eram tão freqüentes. Mas alguns ônibus empoeirados ainda despejavam levas de gente esperançosa que para cá vinha em busca de felicidade.
            Os tempos passavam. Os tempos passaram. Os tempos passam e repassam como filmes surrados pela lembrança dos que vivenciaram Brasília, daqueles primeiros tempos. O horizonte, o céu, as nuvens, as águas do lago teimam em continuar seu curso. O cerrado diminui, as árvores foram, em grande parte, substituídas por outras que não aprenderam a conviver com o ecossistema do Planalto. As que permanecem entre prédios ainda gritam por permanência ou salvação. O ar e o clima embalam o sono dos moradores, que se renovam, como não pode deixar de ser. Brasília cresce e permanece, para comprovar a busca da liberdade que a fez nascer neste horizonte infinito.

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