quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Contos contados de Minas (36)

Caso de assombração

Este se deu na virada da Bocaina, bem ali, quando se deixa a estrada do Pântano para o descambar nas vertentes do Santo Antônio, em direção à Mata da Guariroba, ao Brejo Comprido e à Fulminante, lugar este de mais presença neste rebuscar de tempos.
Pois é, foi ali,quase  defronte ao capãozinho da Dona Sinh´Aninha, que ele, apesar de não acreditar em assombrações, presenciou um fato que, nos dizeres do Seu Jacinto Bina, crioulo de grande porte e respeito, compadre dos mais velhos e venerandos senhores daqueles meios, aquilo não era outra coisa que almas do outro mundo, assombração no duro, sem tirar nem pôr, não havia do que duvidar.
Assim foi, assim se deu. Vinha ele, em noite de muita chuva, nenhuma estrela ou réstia de lua, nuvens escuras, um breu, como é de costume descrever em assemelhadas circunstâncias. Aí, o cavalo refugou, começou a ficar desatinado, andar de lado, sem querer avançar caminho, como que sentindo ou pressentindo algum perigo. Cavalo é animal sensitivo que, dizem, enxerga como poucos no escuro.
Ele vinha de mãos ocupadas, uma segurando curto as rédeas dos arreios, e a outra empunhando a lanterna, que o tio lhe emprestara, para o caso de alguma precisão. Nunca se saberia, naquela inusitada aventura! Mas as pilhas já não respondiam tão bem. Mesmo assim, foram suficientes para lhe trazer ao foco, fraquejado, as três mulheres de branco, de cabeças agachadas, a olharem para o chão do caminho, como se não o estivessem enxergando bem. Se aquilo fosse, mesmo, assombração, as figuras ali presentes já deviam estar sentindo os apuros dos arrepios, uma vez que aqueles ermos carregavam ainda fama de mal assombrados.
Diante daquela cena um tanto quanto fantasmagórica, para aqueles instantes de noite e lugares, ele, encontrou ainda espaço nas idéias para imaginar caraminholas, como possibilidades de tirar proveito da situação confortável em que se encontrava, e fazer-se, ele próprio, de assombração, para assustar aquelas pobres criaturas. Um raspar de garganta bastaria para alvoroçar o quadro ambiente. Elas, como mais tarde se soube, pensaram e propagaram pela vizinhança a notícia de que tinham avistado almas do além, vagando em forma de luz pisca-piscante, pelos altos da Bocaina.
Não teve, porém, coragem para tanto, nem era de se dar a maldades, por leviano. Além disso, seria covardia, na sua posição de incrédulo e bem montado. Tirou-as do foco, apagou a luz, e a noite se fez ainda mais espessa. Tentou continuar o caminho que ele conhecia melhor do que o cavalo, conforme este fora comprado, recentemente, e não tivera tempo suficiente para decorar vãos e desvãos de caminhos, para ajuda de andar no escuro.
Apesar do inopinado da situação e do desconforto do momento, ele estava gostando daquela insólita aventura. Mas não demorou muito, o pai apontou na virada da linha, parando a camionete bem a sua frente. Logo, ficou sabendo que a mãe, incomodada com ele e a pouca prática no cavalgar à noite, sob ameaças de chuvas grossas, colocara a casa em polvorosa, fazendo ir ao seu encalço.  Para descarrego dos cuidados, comandara ao Nosso, ajudante temporário na fazenda, a ir aguardar o andarilho nas profundezas do Santo Antônio, por onde poderia, também, inventar de passar. Com as chuvas de há pouco, o córrego deveria, ainda, estar jogando águas nos barrancos. Para um desavisado aventureiro, que por ali quisesse atravessar, cavaleiro e cavalo rodariam, na certa. Mas não foi o caso. O empregado, depois de algum tempo observando a pedra que pusera no limite de onde as águas lambiam as margens, concluíra que o lençol abaixava. No caso de alguém, ainda se atrever a transpor o córrego, naquele escuridéu de fundos de matas, não haveria perigo de ser rodado nas correntezas.
Entrementes, dispensou a ajuda do pai e do conforto do motor, e optou por enfrentar a noite e seus temores, além do balanço gostoso do baio. Chegou à casa para a tranqüilidade da mãe e de todos, com a chuva a molhar o rabo do animal, como se diz em imagem apropriada, muito a gosto.do gaucho Romualdo.  
De volta à calma, narrou-lhes o acontecido, na virada da Bocaina. Já no domingo, o Zé Nosso encarregou-se de espalhar a notícia pela redondeza, começando pela casa da namorada, a Rosinha da Dona Sinh`Aninha, moradora justo atrás do famoso capãozinho de medrosas lembranças. E o caso, por fim, encontrou explicação. As três moças de branco, que naquela noite de pouca luz e muitas incertezas, sob aguardo de chuva iminente, tinham espalhado, antes dele, as medonhas notícias. Avistaram uma luzerna que, àquela hora da noite, de céu de negrume, podia ser coisas de outros mundos. Passavam pela Bocaina, de volta para casa, depois de saírem de um mutirão de fiandeiras, nas proximidades. Eram as filhas do Seu Tião das Quantas, morador daquelas beiradas de morros.
O fato se explicou, mas não retirou, como se demorará a tirar, a fama do lugar, na imaginação daquelas gerações de gente simples. Que Seu Jacinto Bina não lhe venha mais desacreditar o relato. Caso isso aconteça, não merecerá maior importância, porque em assombração o avisado transeunte continua não acreditando. Mas vale dizer que, pouco tempo depois desse acontecido, o cavaleiro  veio a assistir o último suspiro do negro xucro, quando a alma deixou a casca já por demais ressequida. Agora, ela mora em outras paragens de menos assombros, ou, melhor, já de todo desassombradas, por força das circunstâncias que aos viventes pouco se reservam.

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