“Sai da janela, assombração !”
Conta-se o milagre , não se revela o santo . Conta-se o conto , aumenta-se o ponto , corta-se o tanto, inventa-se o quanto. Da verdade faz-se a mentira , com mais graça e arte , na ficção dos tênues repartes.
O Zequinha de Seu Clarimundo era rapaz delicado , de voz de contralto e débeis feições . Corpo aprumado , magro e rosto afinado. Um tanto fraco nas forças, é bem verdade, talvez por ser a rapa do tacho, bem usado. A moça era do lugar , avantajada no corpo e nos hábitos, um tanto diferentes das demais congêneres. De belas e robustas formas, porém. Algum tempo antes de se casar com o Zequinha, ela estivera, de certa feita, em visita à casa da Dona Maria, em companhia da mãe, vizinha de grande respeito e postura. Ao falarem da iminência do casamento , ouviu da sincera anfitriã: “Você está tão nova para pensar em casamento , menina . Espere mais um pouco !” “Não , já está conversado, o casório tem dia marcado, não há mais como esperar!”
Por esta ocasião , ela já tirava do bolso o canivetão, a palha de milho que umedecia na ponta da língua e alisava bem alisada na lâmina do corneta, antes de segurá-la por entre os dedos anular e médio da mão . Na palma colocava as lascas picadas do pedaço de fumo de rolo . Depois de enrolado o avantajado pito , acendia-o no tição da fornalha e, sem nenhuma cerimônia, dava as primeiras baforadas para gozar-lhes o prazer, como se estivesse adentrando os páramos celestiais.
“Aquilo era atitude de moça , que falava em casamento?”, pensou a Dona Maria. “Fosse, como fosse, mulher velha e viúva , ainda vá lá, se relevava, mas aquela menina ”! Enquanto isso o Zequinha devia estar lá na casa do pai , ajudando-o e aos irmãos mais velhos, com o quanto as parcas forças permitiam, na lida do curral e nos afazeres do terreiro, que consistiam, sobretudo , em colocar dentro de casa os mantimentos , para o sustento da família .
O casamento não devia tardar muito a acontecer , como era do costume . Casamento pedido, marcava-o, logo, sem muito esperar . E foi o que se deu. Casaram-se e foram morar, de início, na casa dos pais do noivo, enquanto se ajeitasse as terras e a casinha onde criar família , como sempre aconselhava o padre, na hora do sim solene na igreja .
Chamou-se da cozinha para o almoço . “Venham pra dentro , o almoço está pronto !” Mas o Zequinha foi desde já recusando: “Nós já almoçamos na casa do pai, antes de sair pra cá , estamos sem precisão !” “Mas venham se servir assim mesmo , matei um franguinho. Venham puxar das panelas!” Era preciso insistir , como se insistiu: “Vocês não devem ter almoçado o suficiente, e já faz tempo, aproveitem!” E lá se foram os dois em direção da fornalha, onde os tições, ainda quentes, acalentavam a comida nas panelas . O primeiropegou a coxa e o encontro , e a outra, o encontro e a coxa . Para os da casa ficaram os pedaços menos nobres do frango, que era assim que as coisas se davam com eles . Sem seca.
Na casa do sogro , a vida seguia seu curso , e a Ana, ao se casar, encontrou casa cheia e dividida em dois ternos de gente . De um lado os cunhados , com o sogro no comando rígido do patriarcado . De outro , as cunhadas e a sogra, grupo bem mais numeroso e recatado. As moças ficavam confinadas nas repartições internas e anteriores da casa , principalmente, cozinha e circunvizinhanças . Os homens , nos serviços braçais externos, currais, roças e carro de bois. As “meninas”, como eram chamadas as “filhas mulheres”, cuidavam da comida e da roupa dos “irmãos homens”.
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