quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Contos contados de Minas (37)

           “Sai da janela, assombração!” 

Conta-se o milagre, não se revela o santo. Conta-se o conto, aumenta-se o ponto, corta-se o tanto, inventa-se o quanto. Da verdade faz-se a mentira, com mais graça e arte, na ficção dos tênues repartes.
O Zequinha de Seu Clarimundo era rapaz delicado, de voz de contralto e débeis feições. Corpo aprumado, magro e rosto afinado. Um tanto fraco nas forças, é bem verdade, talvez por ser a rapa do tacho, bem usado. A moça era do lugar, avantajada no corpo e nos hábitos, um tanto diferentes das demais congêneres. De belas e robustas formas, porém. Algum tempo antes de se casar com o Zequinha, ela estivera, de certa feita, em visita à casa da Dona Maria, em companhia da mãe, vizinha de grande respeito e postura. Ao falarem da iminência do casamento, ouviu da sincera anfitriã: “Você está tão nova para pensar em casamento, menina. Espere mais um pouco!” “Não, está conversado, o casório tem dia marcado, não há mais como esperar!”
Por esta ocasião, ela já tirava do bolso o canivetão, a palha de milho que umedecia na ponta da língua e alisava bem alisada na lâmina do corneta, antes de segurá-la por entre os dedos anular e médio da mão. Na palma colocava as lascas picadas do pedaço de fumo de rolo. Depois de enrolado o avantajado pito, acendia-o no tição da fornalha e, sem nenhuma cerimônia, dava as primeiras baforadas para gozar-lhes o prazer, como se estivesse adentrando os páramos celestiais.
Aquilo era atitude de moça, que falava em casamento?”, pensou a Dona Maria. “Fosse, como fosse, mulher velha e viúva, ainda vá lá, se relevava, mas aquela menina”! Enquanto isso o Zequinha devia estar na casa do pai, ajudando-o e aos irmãos mais velhos, com o quanto as parcas forças permitiam, na lida do curral e nos afazeres do terreiro, que consistiam, sobretudo, em colocar dentro de casa os mantimentos, para o sustento da família.
O casamento não devia tardar muito a acontecer, como era do costume. Casamento pedido, marcava-o, logo, sem muito esperar. E foi o que se deu. Casaram-se e foram morar, de início, na casa dos pais do noivo, enquanto se ajeitasse as terras e a casinha onde criar família, como sempre aconselhava o padre, na hora do sim solene na igreja.
Domingo é dia de visitas na roça. Na casa do sogro pouca gente aparecia e a monotonia convidava a visitas na casa dos vizinhos. Antes do almoço, de preferência, para não compartilhá-lo com as tantas bocas da família. Naquele dia santo, de pouca atividade na casa de Seu Marcelo, estavam somente o marido, a mulher, Dona Maria, e o filho caçula. Dia do senhor deveria ser bem guardado. Dona Maria tivera uma boa idéia: matar um “franguinho” para o almoço, por que não! O terreiro estava cheio deles e o paiol de milho, também. Apesar do pouco entusiasmo do marido e do filho, ela foi ao paiol e passou a mão no primeiro volátil que sobrevoou-lhe a cabeça.
estava com o frango na gamela, no ponto de ser depenado, sapecado e aberto, quando apareceram os recém casados. Vamos entrar! Entraram. A Ana, como do costume, foi para a cozinha conversar com a dona da casa e o Zequinha ficou na sala proseando com o dono. Sorte é que o anfritrião, de bem mais idade que o visitante, era pessoa de boa prosa, que não escolhia assunto para alimentar uma conversa. Enquanto o Zequinha emitia sons contraltos na sala, na cozinha, a Ana alisava na língua a palha de pito, com o cornetão e o fumo de corda de prontidão. Pito enrolado,  na auréola da palha bem umedecida, e aceso no tição da fornalha, a Ana nem cuidou em se oferecer para cuidar do frango no lugar da dona da casa, como devia de ser. As baforadas eram por demais prazerosas e ofuscavam-lhe as idéias e a civilidade.
Chamou-se da cozinha para o almoço. “Venham pra dentro, o almoço está pronto!” Mas o Zequinha foi desde recusando: “Nós almoçamos na casa do pai, antes de sair pra , estamos sem precisão!” “Mas venham se servir assim mesmo, matei um franguinho. Venham puxar das panelas!” Era preciso insistir, como se insistiu: “Vocês não devem ter almoçado o suficiente, e já faz tempo, aproveitem!” E se foram os dois em direção da fornalha, onde os tições, ainda quentes, acalentavam a comida nas panelas. O primeiropegou a coxa e o encontro, e a outra, o encontro e a coxa. Para os da casa ficaram os pedaços menos nobres do frango, que era assim que as coisas se davam com eles . Sem seca.
Na casa do sogro, a vida seguia seu curso, e a Ana, ao se casar, encontrou casa cheia e dividida em dois ternos de gente. De um lado os cunhados, com o sogro no comando rígido do patriarcado. De outro, as cunhadas e a sogra, grupo bem mais numeroso e recatado. As moças ficavam confinadas nas repartições internas e anteriores da casa, principalmente, cozinha e circunvizinhanças. Os homens, nos serviços braçais externos, currais, roças e carro de bois. As “meninas”, como eram chamadas as “filhas mulheres”, cuidavam da comida e da roupa dos “irmãos homens”.
Nos primeiros dias, a Ana ficou do lado das mulheres. Depois, aos poucos, foi se esgueirando, até se aproximar da janela que dava para o curral, onde o sogro e os filhos cuidavam das vacas e sua prole. Ali ela, parece, se sentiu mais à vontade. Das primeiras olhadelas até as primeiras baforadas no cigarro de palha de milho foi um pulo. E ficou por uns momentos, postada na contemplação dos serviços masculinos, inclusive no do franzino Zequinha.
Mas o sogro, pai de quatorze filhos, cinco homens e nove mulheres, era homem perspicaz que não andava de olhos nos bolsos e nós na língua. Ao ver a nora recente no sem-que-fazer, se deleitando com a fumaça do cigarro e os olhares compridos ao deus-dará, tomou aqueles gestos como desrespeito à sua autoridade de patriarca e bramiu: “Sai da janela, assombração. Vai pra dentro ajudar as meninas, ou procurar ocupação!
           Não por aquilo, mas, logo, dali se mudaram e viveram, aparentemente, felizes por alguns pares de anos. Ele na lida do terreiro, roçar dos pastos, trato das vacas. Ela, nos afazeres domésticos, baforando o pito de palha, e os olhares compridos perpassando janelas e os longes das estradas. Tiveram filha, que cresceu, estudou e se mudou. A solidão foi pesando no corpo de ambos, menos no dela do que no dele, como não se podia deixar de enxergar. Teria sido esta uma desculpa adequada para a desforra que a Ana encontrou, ao trocar o marido por alguém de mais firmeza na voz, nos atos e no resto?

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