segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Pensares a conta-gotas (159)


O igual sempre cansa,
o diferente alcança
o que sempre falta
na alma da gente.

 

 
O cego olha para dentro,
não vê do lado de fora,
a escuridão dos iluminados. 

Desconhece perigo de terrenos,
terremotos e tissunames,
e, quando cai, só cai em si,
para não mais tornar a cair. 

O surdo ouve o som do coração,
desconhece silêncio e barulho,
dos demais mortais. 

O mudo não fala do que vê,
não divulga loucuras e dados
do que sabe
dos que andam de lado. 

Neste mundo, de pouco conteúdo,
cego não é cego, surdo não é surdo,
mudo não é mudo. 

Cegos, surdos, mudos são os que falam,
escutam, enxergam torturas,
calam nomes,
e números de falácias e faturas.
 

 

A dor de poucos dói menos
que o sofrimento dos muitos
miseráveis, incapazes, loucos,
que não tocam a razão
dos donos desse torrão.  

Pobres, coitados, desvalidos de compaixão,
sequer serão acolitados
de esperança e boa intenção
dos santos de situação,
entronizados como proteção.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Pensares a conta-gotas (158)


De que haverá
de se lembrar?

Desse deserto
de pouco amor
e gramas?

De areias quentes
de esquecimentos? 

De águas ferventes
de indiferenças?
 
De fronteiras amuradas
de egoísmos?  

De caras amarradas
de lavadas carências? 

De vidas passadas
sem saudades,
de demências?
 


 
Não se lamenta o acontecido,
quando muito, comenta-se
o aprumo das rodas,
o rumo do roteiro,
a consistência das molas,
a velocidade dos fatos. 

O destino é que controla
a vida que segue e não para,
porque a viagem é sem demora,
e podem ser muitas e variadas as rotas,
pouco se tem ciência e visão,
do pó das estradas remotas.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Pensares a conta-gotas (157)


Enquanto uns destampam sorrisos,
outros agonizam,
longe do paraíso.

Onde os que desfrutam,
enquanto outros lutam,
sem nome? 

Para onde vão os que morrem,
enquanto outros fogem
dos que sofrem? 

O que sobrará dos que comem,
enquanto outros somem
exalados da fome?

 

 
Quantos merecem
uma palavra
de reconhecimento,
mesmo que seja a minha;

Quantos precisam
de um pingo
de amor e carinho,
mesmo que sejam os meus;

Quantos repartem
uns pedaços de alma, em dores,
mesmo que sejam por carências
de mais variados valores?

Vive-se sempre mais secamente,
planta-se mais em terrenos vazios,
sem dono,
mesmo ciente de que se colherá
mais tarde
o suplemento do abandono
que sempre arde.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Pensares a conta-gotas (156)


A vida será eterna,
para quem deixa
das passagens,
sinais de presença.

Há quem desaparece
nas curvas dos mapas,
e só aderna
em águas turvas e densas
de cisternas.

 

 
Da morte,
seria a pior parte,
a definitiva idade? 

Morre-se aos poucos,
sem deixar de ser
de eterna idade?

 


O que adianta finar-se
por causa maior
de merecimento?

O que se há de exaltar,
senão atos menores
de endividamento?

sábado, 17 de novembro de 2012

Pensares a conta-gotas (155)


Há textos
com mais ou menos
confeitos,
com menos ou mais
redemoinhos e jeitos
de pensamentos,
jogados ao azar
dos ventos.

Idiossincrásicos
tons,
ousadas cores
e sons,
de mais conceitos,
de menos proveitos
de mais ou menos efeitos
batons.

 

 
Ocorre-me tecer e pensar
asneiras, pilhérias,
até, quase besteiras, misérias,
de variadas maneiras
no proceder das carreiras.
Quem de as conter e conferir,
reprovar ou repelir,
como lhes apeteçam,
ou, mesmo, queiram
que aconteçam?

Urdo textos e mais novelos
de algodões e lãs
e desconheço
tropeços e solavancos
de cabrestos.

 



A porção de arroz
que, ora, na fome
da sorte, traças,
dá bem para dois
comparsas,
em frugal repasto
em que sou o réu,
e você, o algoz
das praças.




 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Pensares a conta-gotas (154)

O sol desanda do compasso dos homens,
desconhece o tamanho certo
dos sapatos pesados de pés espertos,
que só andam no ritmo incerto,
à procura de quantos enormes ganhos.

O interesse dos grandes quereres terrenos
menosprezam
as necessidades dos seres pequenos,
extenuados das grandes vias
de cruciais agonias.

O horário de verão, por sinal,
é feito ferrão amolado
a ferir crianças no sonho interrupto,
ainda envoltas no escuro do sono,
para irem à escola de titubeantes
distribuidores de luz.

Entrementes, os insensatos magnatas
fingem desconhecimentos
dos que ignoram seus usos profusos.
de só pensarem nos pobres viventes
como frias porcarias
presas de ironias e motivos escusos.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Pensares a conta-gotas (153)


A justiça a-parece cega,
e só enxerga
o lado esconso
das regras.

Alguns juízos errados
fazem de conta que não veem
o lado inverso
ao arbitrar as aparências
de cara clemência.

Condenados,
assim o foram ajudados,
quiçá, instados,
visando melhores resultados.

 

 
Pode o grande ser pequeno
e o pequeno, grande?
Pode o grande ser grande
e o pequeno, pequeno?
 
A medida do tamanho
será o empenho que se tem
ao bem que, pequeno ou grande,
se expande
ou ao lenho, leve ou pesado,
que se carrega
como regra do já traçado.

 


 

Ele sofreu,
mas não pregou
o sofrimento.

Sempre soube
que o homem já sofre
bem mais
do que é capaz

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Pensares a conta-gotas (152)


 Flamboaiãs, ipês e flores em festivais de cores

 
De repente, Brasília se incendeia,
Flameja num afã de festas a mancheias
De tantas réstias de cores e vestimentas
Róseas, amarelas, verdes e vermelhas.

Da terra brota o fogo,
Num duelo de brotos e afagos,
Desde a prima luz da manhã,
Nas flores quentes dos ipês e flamboaiãs.

O róseo e o roxo se acendem;
Singelo, surpreende o amarelo;
O verde, em véu, esplandece,
O branco e o azul ressurgem, no céu.

Um tapete vermelho
Se estende conforme,
Na passarela do fausto enorme,
Que o novo aparato alardeia.

Não há licença a se pedir,
Não há pedágio a se pagar.
Um só desmedir-se de piso e cores,
Para toda a gente poder passar. 

Mas há muito mais de que se lembrar:
A Cidade é toda cerimônia de fogo,
Dos palcos aos palácios e monumentos,
Dos festivais de gozos, dos sentimentos.

Contos contados de Minas (57)


In/Certezas

 
Os primeiros dias de Rio Branco foram de incertezas, de não se saber para onde ir, onde morar. Tinha mais alguns dias, um mês, no máximo, para procurar um lugar que o abrigasse pelo tempo que se dispusesse a permanecer naqueles ares amazônicos. Tudo eram novidades, além da forte  umidade e do mofo brotando de todos os recantos do quarto do hotel, para onde o levaram até encontrar moradia definitiva.

No Departamento de Letras, da Universidade Federal do Acre, os colegas vivenciavam os problemas dos quantos ali chegavam, como se fossem retirantes de lugares mais confortáveis. Todos procuravam ajudar, divulgar entre os colegas que avisassem, caso soubessem de casa, apartamento ou quartos para solteiros ou casados. Até os próprios alunos já estavam cientes do problema e procuravam soluções de moradias e aconchegos. Eram professores. que se dispunham a vir do sul até ali, recrutados, o que não constituía tarefa fácil para o reitor da Instituição. Os primeiros dias estavam garantidos. O restaurante do hotel os alimentava após as aulas. As noites os enrolavam no calor viscoso do respirar da floresta, do rio e dos inúmeros igarapés das proximidades.

Um colega, entretanto, professor de uma outra língua estrangeira que a dele, sabedor desde o início da procura por alojamento, chamou-o de lado e disse que, caso quisesse, poderia morar com ele.. Recebera uma casa popular, em um bairro novo, não muito distante do Pálácio da Cultura, onde funcionava, provisoriamente, todos os cursos da UFAC, e decidira assumi-la. Até ali, havia já algum tempo, morava com um colega, também em quarto alugado. A nova residência contava com dois quartos, sala e cozinha, e um quintal com dois pés de coco-anão. De quebra, a casa ainda fora contemplada com uma castanhola, de folhas largas, e muita sombra para amenizar o calor daqueles lugares caniculares.. O telhado de folhas de zinco não era o mais apropriado para a região, mas o mais econômico para a população de baixa renda. As frutas da árvore copada, que mais tarde ele chamou de castanhas, se encarregavam de assustá-lo, quando se desprendiam por sobre o telhado, em tamborilar de repente.

Na mudança do colega houve móveis que preencheriam os espaços da casa. A dele se resumiu a uma mala de roupas e objetos de toalete. Alguns livros, quando muito. Em poucos dias tudo encontraria seu devido lugar. Entretanto, algo ainda estava por vir. A secretária do Departamento sentiu-se no dever de revelar-lhe a verdadeira identidade do colega com que se dispunha a morar. Tratava de um homossexual. Isso, pensara ela, poderia ser de grande valia para evitar-lhe possíveis aborrecimentos, com disse-me-disses desagradáveis. Ainda, segundo ela, aquele convívio sob o mesmo teto poderia provocar ciúmes no ex-companheiro, com quem dividira espaços, até ali. Amigos outros, com a mesma tendência sexual, também poderiam prejudicar a convivência tranqüila entre ambos.

Ele agradeceu a preocupação em torno de sua pessoa, mas disse-lhe que nada o afetaria, caso sentisse sua liberdade respeitada, e que não acreditava poder acontecer o contrário do que estava pensando, por se tratar de alguém que tão gentilmente o convidara, em momento de necessidade. De sua parte, sempre estaria, também, disposto a respeitar-lhe os espaços, que eram dele e de que poderia dispor como bem lhe aprouvesse. E, assim, se concebeu e, assim, se deu.

As visitas ao amigo nunca o perturbaram, nem as sussurrantes conversas que poderiam tirar-lhe a concentração das leituras que a profissão exigia. Quando a ocasião se apresentava, os dois se assentavam em torno da mesa da sala ou no sofá, para conversarem sobre assuntos acadêmicos. Acontecia irem a festas juntos, acompanhados dos tais amigos, homossexuais, sempre discretos e respeitosos de sua individualidade. O que era, no início, simples coleguismo e deferência, foi sei tornando base de grande amizade. Um era professor de língua e literaturas de língua inglesa e o outro, professor de língua e literaturas de língua francesa. Falavam das duas culturas, de seus valores e autores. Entre eles, lembra-se bem, Edgar Alan Poe freqüentava as discussões com seus textos de realismo mágico. O mundo latino, incluído o brasileiro, também encontrava o lugar naquelas tertúlias.

O tempo passou e levou o colega ao Rio de Janeiro para curso de mestrado. Ele continuou morando em sua casa, debaixo da mesma árvore que, em noites de lua cheia, naquelas solidões amazônicas, filtrava a luz e espalhava manchas escuras sobre a areia branca da área que dava para a esquina da rua. Ali, durante o dia, uma senhora vinha, diariamente, espalhar seus utensílios, para satisfazer os apreciadores do tacacá. Naquelas noites-acres, o latido de cães e o barulho de vacas passeando seus bezerros pelas ruas desertas, davam-lhe a sensação de lugares fantasmagóricos e ermos estelares. Por algum tempo, morou sozinho, até que dois novos professores chegaram para os cursos de Letras e dividiram com ele os mesmos espaços e despesas da casa.

O colega, do Rio, escreveu-lhe, propondo disposições a tomar com relação à ocupação da casa e o que fazer com os móveis e demais papéis que deixara para trás. Parece que não tinha intenção de voltar ao Acre, tão breve. Ele poderia permanecer na casa pelo tempo que quisesse, pelo preço que julgasse justo e apropriado ao interesse mútuo. O acordo era-lhe, em tudo, favorável, e assim foi feito a contento de ambos. Ao final da carta, uma frase não só chamou-lhe a atenção, como lhe calou fundo no coração. Ela dizia: “Você foi a melhor coisa que me aconteceu no Acre”.

A sua experiência durou pelo tempo que deveria durar. De lá voltou à cidade de onde chegara, levando sempre no peito as melhores lembranças daquele povo acolhedor, com quem muito se enriqueceu e em quem espera ter deixado alguma coisa de proveito. Algum tempo depois, soube que o amigo morrera de AIDS, ainda enquanto estava no Rio, e sem mais voltar a ocupar as acomodações daquela casa, que compartilharam juntos.
 
           Dizem os entendidos que é melhor arrepender-se do feito do que do não feito.. Quem padece de tais momentos nunca pode negar o que deixou de fazer e o que poderia ter feito. A vida é mesmo um conflito entre contentamentos e descontentamentos. Mesmo para quem garante conseguir se esquecer, facilmente, do passado, sempre haverá de sobrar uma ponta de insatisfação sobre algo não realizado, pouco ou nada compartilhado. A amizade sempre poderia ter sido maior e melhor correspondida, sobretudo, quando não mais se pode aumentá-la, nem melhorá-la nestes pedaços de tempo e recantos de mundos.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Contos contados de Minas (56)


Natal e outras festas

 
            O primeiro natal na cidade foi um espetáculo estranho para aquele menino que, até então, morara no campo e nunca ouvira falar em Papai Noel. Lembrava muito bem de ter acordado, e, ao sair à rua, ver a meninada puxando carrinhos novos e coloridos, meninas exibirem, umas às outras, as bonecas de pano e louça, como se fossem bebês bem vestidas. Os adultos falavam em Natal e em Menino Jesus. Havia, também, as cores vermelha e branca, nos objetos de seu escasso conhecimento.

Em alguns cantos de rua, uma musiquinha leve dava certo tom de estranheza, e, na igreja, aonde ia acompanhando da mãe, que já não perdia a missa “aos domingos e dias santos de guarda”, sob pena de punição divina, muitos enfeites. Entre todas as atrações, aquilo que mais lhe pungia: as figuras do presépio, animais conhecidos, as três figuras dos reis magos que enfileirados e de tamanhos desiguais, para darem a ideia de que não viajavam pari passu e chegavam de lugares díspares. O menino Jesus era o centro de tudo e parecia bater os pezinhos e pernas gordinhos, com ares de contentamento, por se sentir tão querido.

            Os pais eram muito religiosos e, quando moravam na roça, na medida do possível, observavam os mandamentos da lei de Deus e da Igreja. Tudo foi se clareando na cabeça dele, depois que os pais mudaram para a cidade, com o objetivo de colocarem os filhos na escola. Quando lhe perguntaram se acreditava em Papai Noel, ele, primeiro, quis saber o que era aquilo. Depois, simplesmente, disse que não, e que, na casa dele, aquela pessoa não passava, e, menos ainda, deixava presentes. Pudera! Nem, mesmo, abraços recebia. Aos oito anos, estas coisas, de que só veio a conhecer aos poucos, nada significavam.

Em casa, nunca foi costume dar parabéns no “dia dos anos”, desejar votos de “Feliz Páscoa”, e “Feliz Natal e Próspero Ano Novo”, embora soubesse que os pais se lembravam dos aniversários dos filhos. Da Páscoa, pelo mandamento da Igreja, quando deviam se confessar e comungar, e do dia do nascimento de Jesus, por tradição, sem manifestações de cores. Preferia-se calar a se expor a fazer coisa que soasse artificialidade, por falta de costume. Não fazia diferença alguma, executar ou não atitudes de outros. Podia ser timidez, mas colocava-se em conta da tradição dos antepassados, gente rude e pouco afeita a se externarem sentimentos.

Quando o destino o levou à casa de formação religiosa, originária da França, forçoso foi acostumar com práticas que não lhe eram familiares. As festas religiosas eram realizadas com todo o requinte ritualístico que lhes convinha, e, depois das cerimônias, a mesa do refeitório ficava repleta de doces e chocolates, ao som de músicas clássicas e cânticos festivos. O Natal era o que mais marcava, além do domingo de Páscoa que vinha recompor as almas das tristezas, também, vividas nos cânticos gregorianos da Semana Santa.

Os freqüentadores daqueles recintos bucólicos da fazenda de Mendes eram oriundos das mais variadas regiões do centro-oeste, e nascidos de famílias, em grande parte, de descendência européia e camponesa. Quando alguém aniversariava, o diretor da casa interrompia o silêncio da refeição dispensava as leituras piedosas, para anunciar o nome do homenageado, pedir palmas, depois de cantar o “parabéns para você”. 

Um mundo diferente o desafiava culturalmente. No dia em que foi instado a escrever uma carta ao pai, pelo seu dia, não sabia como escrever. As palavras não lhe saíam do coração e, escrevê-las, sem senti-las, lhe pareceu uma violência de berço. Escreveu, porém, o que não sentiu. Tempos depois, soube que o pai, ao recebê-las, também não soube como se comportar. Afastou-se de quem pudesse assistir a uma possível fraqueza, com o extravaso de emoções, que ninguém poderia saber existissem. O afastamento físico do meio familiar não fora, porém, tão difícil, sem o contato do olho no olho ou a mão na mão. Tudo questão de formação, cultura, sem que isso mudasse sentimentos.

Tempos depois, acreditando-se recomposto daqueles velhos costumes, tentou parabenizar o pai pelo aniversário. Um primo o perguntara pela idade e dia dos anos. Por coincidência, aquele era o dia, e o primo o abraçou desejando-lhe saúde e felicidades. Presente ao ato, ele não pôde se omitir ou esconder gestos e palavras. Os sentimentos ficaram-lhe presos no peito, embora, naquela época, já houvesse deixado o seminário, e se conscientizara de toda a cultura que os formara, ao pai e a si mesmo.

Quando ocorre cobrarem-lhe pela frieza e pouca atenção, em festas cada vez mais comercializadas, nem sempre nascidas do convívio amigável entre as pessoas, a vontade, ainda, lhe vem de fugir, para, no escuro de si mesmo, formular os mais sinceros votos de bons desejos aos anfitriões.
            E o dia de Natal daquele distante primeiro ano de vida urbana é uma presença indelével em sua memória, desajustada desses tempos cada vez mais civilizados

domingo, 28 de outubro de 2012

Pensares a conta-gotas (151)


Ora doce, ora insulso ou amargo,
carrego momentos escassos,
em percalços ambíguos e lassos:

Ora tímido, ora palhaço,
enrubesço-me do que faço,
fujo de beijos e abraços;

Se finjo, sou como corda de aço,
não externo ar de mormaço,
esfrio no espelho os pedaços;

Se chego a desenho, sou o traço,
do rabisco, mero embaraço,
projeto de moradas, sem o paço;

Se galgo muralhas e ameias,
sou como amarras sem o laço,
ameaço ser torre, e sou terraço; 

Barco, que parte de porto-regaço,
sou a vela, o cordame crasso,
o mastro, ao vento, flácido.

Por onde me resto, às pressas,
nasço, cresço, vivo, renasço,
ou, simplesmente, venho e passo?

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (55)


O destino do porco.

O porco levanta sete vezes durante a noite, para comer, e, não encontrando o que comer, come o dono.”
(Os antigos, nos dizeres de D. Mariquinha)

 
Todo bicho nasce para uma serventia ou servidão: uns para cantarem, outros para mugirem, nadarem, voarem, caçarem ou serem caçados. Alguns para gritarem e, outros até, para ficarem mudos, aguentarem, calados, as injustiças do mundo e de seus bichos-homens.

Conta-se que numa roda de evadidos da Ásia Menor, nem tão muçulmanos, assim, discutia-se sobre o hábito de se comer carne de porco, por aqui. Torciam os narizes, repugnavam-se os estômagos, franziam a cara, gesticulavam em sinal de agravo. Como pode essa gente comer porco, animal amante de porcarias, impuro como o próprio nome prova e comprova?

Falavam em árabe, para que ninguém, naquele recanto latino, pudesse compreender o assunto da conversa. Afinal, eles não tinham nenhum motivo para ofender o povo que os recebera de braços abertos, como, por sinal, todos que para cá se transportam.

Todavia, ali por perto, entre os funcionários da loja, diante da qual aquela conversa se animava, alguém acompanhava o assunto, mais por intuição do que por compreender a língua na qual ela se processava. Era o rapaz, cunhado do proprietário, que resolveu se intrometer no assunto, com a liberdade que seu enviesado parentesco lhe permitia. Falou num português meio embolado, para dar ares de que manjava um pouco da língua mais utilizada pelos adeptos de Maomé.

- Aposto que vocês estão falando, de novo, do porco. Estou vendo pela cara e pelos gestos. Devem estar dizendo que a carne é ruim, impura. Mas eu vou provar-lhes que o animal é o único que nasceu para ser comido. Não tem mais nenhuma serventia.

E ele foi desfiando os nomes de bichos que lhe vinham vindo  desordenadamente à cabeça.

- Tomem o cachorro. Para que serve o cachorro? Para proteger seu dono, guardar a casa, brincar com as crianças, acompanhar o dono em suas andanças, avisar da chegada de algum estranho, além de ser o mais  fiel amigo do homem.

 - Para que serve o gato? Para pegar rato, e dar-se a coçar no colo de alguma madame sem muito o que fazer na vida, agradar as crianças pela beleza de suas cores e pelagens variadas, em livros de escola.

- Para que serve a galinha? Para botar ovos, avisar aos donos de algum bicho estranho rondando a casa. Isso, quando ela não nos pode servir de alimento, é claro! O galo enfeita o terreiro, canta de madrugada, anuncia a aurora, e  reaviva a nostalgia.

- A vaca, para que serve a vaca? Para dar leite, produzir mais vacas e bois, que vão ajudar o homem a puxar o alimento da roça.

- Para que serve o cavalo? Para carregar o homem, puxar carroça, correr nos hipódromos e competições de hipismo, além de serem ostentados em cartazes e estampas de rodeios, a se pendurar nas paredes, com um calendário aos pés..

- E a ovelha, o carneiro? Para fornecerem lã que tecerá os casacos de frio por esse mundo a fora. E, até, queijo famoso se faz de seu pouco leite!

- Para que serve a cabra? Para dar, aos resistentes à lactose de outros leites, o cálcio indispensável ao desenvolvimento do corpo das crianças carentes.

- E o beija-flor? Para colorir os olhos e polinizar as flores, das quais vão nascer os frutos.

- E a abelha, para que serve? Para fabricar o mel, alimentar as pessoas.

- E o pato, a ema, o jacaré, o peixe, a onça, o pavão, o urubu, a seriema, o gavião, o peixe-boi, o caititu e tudo quanto é bicho que vive por aí, no mato, no céu ou no terreiro? Para manterem o equilíbrio da natureza. A cotia, por exemplo, rói o ouriço da castanheira do Pará e planta suas sementes, para perpetuar a espécie da maior árvore da mata amazônica.

E o porco, para que serve, além de comer, dormir, reclamar por mais comida, colocar desarmonia na pocilga e procriar aquela quantidade de leitões, em uma das gestações mais curtas que se conhece para seu tamanho e volume? A cada barrigada, a porca traz uma enorme ninhada, que, por sua vez, só pensa em mamar, comer, procriar, dormir e engordar. Porco não dá leite, não puxa carroça, não canta de madrugada, não carrega ninguém nas costas, não é tão animal de estimação, nem é essa beleza toda que alguns filmes infantis procuram divulgar. Além de tudo, grunha e ronca quando dorme. Entretanto, apesar de porco, e de comer tudo o que é porcaria, tem uma das carnes mais saborosas que há. Porco nasceu para comer e ser comido. E pronto!

          Dito isto, o rapaz deixou-os calados e, parece, até hoje continua convicto de suas idéias. Nunca considerou o fato de ele não comer cachorro assado na feira, ovo enterrado durante meses no chão até virar gelatina esverdeada e mal cheirosa, cérebro de macaco vivo, cobra venenosa, para só ficar nisso. Nem todo estômago está preparado para suportar tais arrepios da indigestão. Sem falar nos valores vegetarianos, que merecem todo o respeito. Carne, bovina, ovina ou exótica, pressupõe morte de animais que, como nós, compartilham este equilíbrio da natureza. Sem falar que Cultura é cultura e não se costura, inconsútil.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Pensares a conta-gotas (150)


 
 
Caso esqueçam meu nome,
que me chamem de Francisco.
Não me importo com isso,
e, até, muito me honra
o acaso do renome.

Assim, se me tiram a fran(quia)
do santo homônimo,
ainda me sobrará o cisco,
esquecido no manto pobre
do pseudônimo, que me cobre.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pensares a conta-gotas (149)


Epitáfio de gente ativa:
 
“Só teve tempo
de descansar
a definitiva mente”.

 

Epitáfio de gente pública:

“Nem direito teve
de morrer,
anônima mente”.

 

Epitáfio de gente apressada:

“Correu, correu,
e caiu na estrada,
irremediável mente”.

 

Epitáfio de gente egoísta

“Sempre foi dependente,
na hora de ajudar,
ficava de dor no dente”.

 

Epitáfio de gente valente:

“Jaz, aqui, um forte
que desafiou
a morte.”

 

Epitáfio de gente altiva:

Caiu, incauto,
do salto
do sapato alto.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (54)


Leite azedo

 
A avó desconjurava o nome de pia. Dizia que sua sedentária figura, desde tempos afastados dos já finais da vida, não condizia com a linha natural que apresentara na bacia batismal, quando recebera o nome ainda comum de Josefina. A massa corporal, em grande parte advinha do fato de não poder se movimentar, situação a que fora obrigada, em decorrência de acidente que fraturou-lhe uma perna e rompera ligamentos que sustêm os intestinos, deixando-os à mostra na flor da pele. Hérnia, como diriam os médicos especialistas do assunto. No fundo era obesa, e a natureza foi-se amoldando àquela situação de prisioneira do assento, banco de grossa tábua e pés bem plantados, confeccionado sob medida, para suportar o peso excessivo do corpo.

Assim, além do caráter firme, tornara-se mandona, e, comumente, ríspida nas maneiras de distribuir ordens, que o forte temperamento ditava ao marido, doce pessoa, e à filha solteira, inteiramente voltada aos seus cuidados. Dizer que excedia no regramento desagradava a alguns de seus próximos parentes, que não compartilhavam dessa opinião, a seu ver, preconceituosa. Quando muito, achavam-na enérgica nos tratos, apesar da escassa mobilidade física que levou até a morte. O passamento adveio aos sessenta e seis anos de sofrida existência terrena. Na defesa de possíveis agravos àquela matriarcal figura, ainda se costuma ouvir que "felizes aqueles seus descendentes que trazem pouco de seu sangue corrente nas veias”. Nem sempre a vida ativa se limita aos que se movimentam o dia inteiro. Ela agitava sem muito se mexer. “Nunca teve sangue de barata”.

Vale se redimir dos juízos apressados e reconhecer que o sedentarismo não a impedia de sustentar agradável e boa prosa, a qual não deixava de contentar os ouvintes com as descobertas de parentescos. Naquela sociedade estreita e fechada, assuntos de casamentos e consangüinidades, nos mais diferentes níveis e graus de proximidades, eram corriqueiros. Isso, ainda nos tempos em que a tecnologia, os meios de transportes e de comunicação não afastavam os mais jovens do convívio entre primos e primas, na conservação de valores morais e pecuniários, hoje bem menos relevantes.

Naquele tempo, as crianças só prestavam atenção no que viam, e não se  lhes permitiam perguntas. Essa prática, proporcionava-lhes, contudo, que tirassem por si mesmas conclusões dos acontecimentos, ao ajuntarem cacos de assuntos dos mais variados matizes. Em adultos, era fácil reconstituir, daquela cerâmica rústica, uma época e seus costumes. Dentre estes, a avó tinha o habito de tomar leite azedo. Para o deguste da iguaria, ela convidava alguns próximos parentes e convivas mais chegados para compartilhar com eles o repasto. Ademais, esta modalidade de consumo do leite não era exclusividade daquela casa. Outras famílias do lugar o praticava com os mesmos gostos.

Uma cabaça era adrede preparada, para a transformação do leite puro, recém-saído dos úberes quentes das vacas, no curral contiguo à casa. O avô não esquecia de reservar o melhor leite “para dentro”. Este era extraído dos animais mais sadios, e que estavam prestes a desmamar seus bezerros já quase garrotes. Em final de lactação, diriam os técnicos no assunto. O líquido se revelava mais gordo e saboroso. A boca do recipiente, assim como a tampa, tinha a forma estrelada, de tal forma que não permitisse o acesso de outro modo que não por meio de um objeto. A saliva, ali, não teria lugar. Entretanto, lá dentro as bactérias trabalhassem rapidamente, para, à noite, a avó poder saborear seu leite azedo, “comido” com farinha de mandioca ou de milho, por meio de uma colher de metal. O barulho da boca, ao se sugar tal manjar, dava ao procedimento um colorido que bem traduzia o prazer de um ritual de comensais.

Pelo que se tem lembrança, as crianças não compartilhavam daquelas prelibações. Mas um personagem transparece dentro delas: o Candinho, figura saída de um sem números de Cândidos e Cândidas, que povoavam aqueles meios, naqueles já passados tempos. Este não tinha a mente na qualidade das pessoas normais. Era apoucado nas idéias e, pelo que se recorda, tinha os pés chatos e revirados para dentro do espectro piramidal dos membros inferiores, fato que caracterizava ainda mais sua minguada psiquê.  Além de apreciar o leite que a avó lhe oferecia, e fazer os habituais ruídos no sorvê-lo, o Candinho ainda se permitia, sem nenhum constrangimento, os arrotos que o líquido naturalmente suscitava. Caso demorasse algum tempo mais, viriam os borborigmos, as flatulências a anunciarem os efeitos do azedume do leite gordo da cumbuca, nos vários metros de entranhas dilatadas..

Ainda hoje, quando se assiste aos inumeráveis derivados do leite e seus adjetivados processos de fermentação, pode-se mesmo pensar que os antigos hábitos da avó não se distanciavam tanto dos da atualidade. Não contavam, é claro, como não se pode deixar de aceitar, com os cuidados que a saúde pública e seus protetores procuram imprimir. Entretanto, quem pode garantir que, mais dias  produtos lácteos não venham desacreditar os atuais. O importante será pensar que, assim como as bactérias de antigamente se harmonizavam com os organismos da época, com o tempo também irão se adaptando aos organismos em contínua evolução.

As atuais geladeiras e modos de refrigeração, mais adequados à conservação de alimentos e ao controle de bactérias, danosas ou benéficas, não impedem que os descendentes daquela gente, que apreciava o leite azedo das cumbucas guardadas na dispensa da casa, comumente exposta a outros apreciadores  que não somente aos seres humanos, estejam vivendo sãos e salvos, para a continuidade da espécie, até que o planeta, por si só, resolva a se desvencilhar de suas prepotentes invenções.

domingo, 21 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (53)


Banhos de Cachoeira

 
O dia amanhecia. O sol ainda não mostrava a cara, mas as barras da aurora se tingia de rosa. Hora de começar a colocar as vacas para dentro do curral, ansiosas por encontrar seus bezerros que haviam dormido separados, para que o leite das mães se acumulasse durante a noite. O berreiro dos animais marcava que ali, e na vizinhança, as atividades de terreiro começavam.

Antes, porém, meu pai ia à bica e jogava umas boas mãozadas de água fria no rosto. Nos meses de seca, quando tudo minguava, a água do rego chegava mais fria e pinicava na cara das gentes de hábitos matutinos. Meu pai dizia gostar daquela sensação de sangue aflorando à pele, se certificando do que acontecia nas extremidades dos vasos capilares. O cafezinho para a boca-de-pito ficava para mais tarde, quando minha mãe já acendera o fogo na fornalha, raspara a rapadura sobre a taboa côncava de madeira, guardada perto da base da chaminé, e coara o café torrado em casa, exalando cheiro que percorria distância da cozinha ao curral. Isso, todo dia, desde gerações.

No dia de São João, mês de junho, mês da seca e dos dias de mais friagem, minha mãe retirava as duas crianças da cama e os levava, ainda antes de o sol nascer, para dar-lhes três golinhos de água da bica, na ponta dos dedos, para que Deus e o santo,  o do Jordão, as conservassem em boa saúde. Era costume, também, aguar as plantas, encher o pote com aquele líquido bento, para que a saúde estivesse sempre presente na família. Entretanto, caso se olhasse na superfície de algum poço d´água e não se visse, ou a própria sombra refletida, naquela hora de pouca luz, bons presságios não haveria. Isso de bem e mal sempre estarem juntos, até no dia de santo, remonta os tempos.

Meu pai, como de resto todos os moradores dos campos das redondezas, não costumava tomar banho diário. Não era prática comum por aquelas bandas. No final do dia havia o cerimonial dos lava-dorsos e dos lava-pés, para homens e meninos, e um carregar de bacias para o quarto, para as abluções mais recônditas das mulheres e meninas. No dia em que se aludiu a essa prática tão corriqueira e saudável, melhor do que a de muitas que nem isso tinham, de se higienizarem lá onde os do sexo oposto pouco cuidava, houve risos nos machões dos novos tempos, e minha mãe subiu nos tamancos, diante do engraçadinho. O tabu e o recato falaram mais alto. Não havia por que tanto se resguardar, no entanto, se até a Europa, de onde vieram normas civilizatórias, era exemplo de costumes bem menos asseados.

 Nos finais de semana, feriados e dias santos de guarda, eu assistia meu pai nos preparativos de ida à cachoeira. No paiol de milho, pegava uma boa espiga, descascava-a, e, com ajuda de um garfo, rasgava a palha em inúmeras tiras, tomando cuidado de não desgarrá-las do nó do pé. Bucha feita, passava a mão na toalha, colocava-a em volta do pescoço, não esquecia o sabão da cuia, e tomava o rumo do córrego, para o banho completo, de gente civilizada.

A cachoeira, na verdade, não era, assim, tão encachoeirada, pelo volume do córrego, de águas claras e potáveis, livres, ainda, do chorume de granja de porcos, que veio se instalar nas cabeceiras. Bem na passagem para a outra banda do barranco, no vau, por onde passavam cavaleiros e animais, o toá represava as águas que caíam do alto, espumantes e luminosas. Formavam-se, ali, o poço e a ducha, componentes de um bom banho, frio e saudável. Naqueles tempos, o local era caminho de transeuntes, que encurtavam caminho em direção ao Pântano, arruado de poucas casas, igreja e casa paroquial. Mas, nos domingos e feriados, o movimento escasseava.

Tempos, mais tarde, tive a oportunidade agradável de molhar meu corpo naquelas águas frias, e sentir o peso da cachoeira do Brejo Comprido. Cedo, de lá mudamos, eu ainda criança, em idade de escola.

De lembranças, uma me cutuca a memória infantil. Minha irmã e eu, de certa feita, procurávamos pocinhos de água corrente para pescar piabas e lambaris. Fomos dar, sem que nossa mãe soubesse, lá na tal cachoeira. De cima do toá escorregadio, lançamos os anzoizinhos “olho-de- mosquito”, no remanso do poço, onde o redemoinho dava mais sossego aos raros e possíveis peixinhos. Em dado momento, meu anzol enroscou no barranco, por sobre o fervilhar das águas. Minha irmã, dois anos mais velha, teve a inocente ideia de me segurar pelos pés, para que eu descesse de cabeça para baixo, até ele, e o recuperar. Enquanto isso, os nossos anjos da guarda seguravam firmes as mãos dela, para não se escorregar e me soltar sobre o tumulto das águas. Mais tarde, soubemos que nossa mãe levava uns ralhados de um tio dela, que chegara em nossa casa, levado pelo prenúncio de chuva forte, debaixo de trovões e relâmpagos, que nem  podíamos ouvir, por causa do barulho das águas.

Hoje, ao passar por aquele minguado curso d´água, de lodo escuro e malcheiroso, vejo aquela ínfima corredeira, que insiste em desgastar, cada vez mais, o toá já tão desfeito pelas inúmeras enchentes, e sorrio para dentro. Tento recuperar imagens de perigo e de prazer. Pareço mentir para mim mesmo, ao imaginar meu pai, jovem a assoviar felicidades, enquanto ensaboava o corpo com bucha nova de palha de milho e sabão preto de decoada de cinza de assa-peixes. Ele, ainda, desfrutava de uma água limpa e fresca, e voltava para dentro de casa, o corpo leve, para um final de dia desanuviado. Com certeza, ia pensava em passarinhos verdes e cheiros de amor.

sábado, 20 de outubro de 2012

Pensares a conta-gotas (148)




Sinais dos tempos

Distâncias se encurtam
Tempos se enlutam
Rios, mares evaporam
Calor aumenta e mata
Frio derrete ou esmaga.

Chuvas engrossam e engolem,
Ventos e fogo devastam
Ar sufoca e envenena
Animais desaparecem
Pessoas crescem ou se apequenam.

Amigos nascem e somem
Virtudes passam e se estiolam
Amor e sexo perdem a graça
Nas quermesses das praças
Enfraquecidos da vida fácil.






Sofre de um querer
estar sempre certo,
no modo incerto de viver.

Mas sabe de outros olhos   
menos errados,
porque menos vendados.

Pouco deixou de lado,
de manias, vindas do berço,
de julgar-se depreciado
sem endereço.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Pensares a conta-gotas (147)


Vêm-me vontades,
não sei, bem, de onde,
de certo,
do fundo do peito,
de buscar amigos,
amealhados em caminhos,
de saudades,
e reganhar coragem,
para de novo buscar
antigas verdades.




O que fazer dos feriados,
prolongados,
das festas santas e apatias
de domingos?

Não há mais o que distingo,
com tempo vazado,
nesses vagares de pingos
e respingos, molhado!

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (52)

Escuridão, escuridões

Nunca havia pensado, até então, em escuro absoluto, ou quase. Sempre haveria mínima centelha de luz por onde andamos. Mesmo quando se entra em uma caverna, a muitos metros da superfície da terra, há um fóton qualquer, um verme, um inseto luminoso a nos fazer companhia. Se saímos à noite, na escuridão de breu, quando as nuvens carregadas de chuva mal esperam para desabarem, uma luz de estrela, mesmo de viés, consegue enxergar nossa insignificância.
Uma lenda indígena faz-me repensar os antigos conceitos sobre escuridão total, ou quase, e sua existência. Os índios, que a grande parte de nós ainda julga atrasados, incapazes de pensamentos mais profundos, encontraram um exemplo de breu absoluto, ou quase. Não sei bem como tomei conhecimento dela, se de ouvir falar, se por meio de alguma leitura. Sei que veio dos índios, e a lenda diz, mais ou menos, assim;
No início do mundo, só existia a luz. Era dia o tempo todo, e a escuridão estava aprisionada dentro de um coco. Mas, um dia, um índio deixou o coco cair. Este quebrou e a escuridão fugiu, dividindo, com a luz, a presença no mundo. Assim, nasceram dia e noite.
Imaginei-me, então, dentro de um coco. Certamente, lá ficaria totalmente no escuro, não veria nada, nem mesmo as paredes brancas das castanhas. O tato, o paladar, o olfato seriam os únicos sentidos a me guiar. Poderia explorar as rugosidades das castanhas, o sabor e seu perfume. Não ouviria o rumorejar da água, nem os ruídos vindos do lado de fora. Nada, a não ser que o coco contivesse ar, lá dentro. Os olhos estariam cegos para a luz do lado de fora. Seria como um surdo-mudo desprovido de visão. Mas isso são questões para cientistas,pessoas de alto rigor e precisão nas assertivas..
A lenda indígena me leva, também, a pensar nos sentidos que nos guiam. Sem eles o que seríamos? Haveria algum ser vivo a possuir outro tipo de sentido que não os nossos cinco. É claro que, dependendo de cada indivíduo, poder-se-ia privilegiar algum deles mais do que outro, segundo as necessidades da sobrevivência. Há animais que aprimoram o tato, outros o olfato, outros a visão, outros a audição, outros o paladar. Nas mulheres, a intuição, por força de maior responsabilidade na procriação e continuidade da espécie humana, que bem pode parecer um sexto sentido. Que o diga, A. Einstein: “Não existe nenhum caminho lógico para o descobrimento das leis elementares – o único caminho é o da intuição.”
Uma pessoa, desprovida da visão, da audição, da fala, restando-lhe somente o tato, o paladar e o olfato, pôde comunicar seus sentimentos e, até, escrever a história de sua vida, de seu mundo peculiar. Mas, quanto de si, teve que doar para tanto esforço à procura do diálogo com os comuns dos mortais. A falta de comunicação seria como nascer dentro de um coco, sem saber que poderia se quebrar, um dia.
A fuligem que saía do bico da lamparina de querosene ou dos poços de azeite de mamona das candeias, dependuradas nas paredes das casas, que impregnava pulmões, não era tão negra como a noite absoluta do índio. A picumã, formada da fumaça e do óleo das lenhas queimadas no fogão de barro, há gerações pregada nos caibros e telhas por sobre a fornalha, mesmo que, de vez em quando, retirada para tingir os fiados de algodão e lã das fiandeiras e tecedeiras, não devia ser tão negra, como a escuridão do coco quebrado do índio. Nem a cera que a abelha arapuá retira das resinas, e tinge, para calafetar as entradas de sua cachopa negra, poderia se comparar à escuridão que um coco foi aprisionando, desde quando o coqueiro o gerou de um cacho de flores e odores.
           Talvez, a escuridão de certas pessoas, cheias de maldades, se comparasse àquela que o índio deixou escapar do coco lendário. A noite não consegue apagar as luzes das estrelas e dos pirilampos. Mas o breu das mentes belicosas é bem mais escuro e desprovido de luz e calor.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (51)

Gerci

Trabalho de menino vale pouco, bobo de quem não aproveita. Menino sem o que fazer? Arranja-se-lhe, rápido, um serviço qualquer. “Busca um copo de água pra mim; alcança um tição para eu acender o pito; pega o cavalo; traz as vacas, que já é hora; traz a enxada e limpa aquele canto de cerca; corta aquele ramo que está entrando pela varanda; ajuda sua mãe a fazer os queijos; pega, no cabide da parede da sala, o meu chapéu; procura as botinas, debaixo da cama; cata os picões das pernas da calça; dê um pulo, num pé lá outro cá, à casa do compadre Chico, e pergunta se a comadre melhorou da gripe; leva isso para o compadre Joãozinho e pergunta se a Maria sarou das dores nas costas; corre lá no quintal e conta quantos ovos as galinhas já botaram, hoje; limpa minhas botas, que é pr´a eu não sujar o assoalho da sala; desarreia e solta o pampa na porteira do pastinho, porque, amanhã cedinho, pode dar trabalho de trazê-lo ao curral; ajunta o esterco das vacas!” E, assim, mais muitas e muitas outras contas faltantes, no rosário das comandas e serventias.
Raros eram os donos de terra, por aqueles lados, que não tinham um menino ajustado para ajudá-los na lida rural, na arrumação do terreiro, na tiração do leite, na cura do gado. Desses tais, o Geraldo, vulgo Lelesso, o Tiãozinho, seu irmão, filhos da Margaridinha do Zequinha, o Belchior, vulgo Brechó, mais tarde, Compadre Brechó, de vozeirão cavernoso, revólver à cintura, bem à mostra, para impor respeito aos mais ousados do arraial, o João Norato, de quem se herdou uma mesa enegrecida na gordura e fumaça de fornalha, se empretejando na cor da pele dos “cativos”, de quem veio a origem, esse tal, último, era também, compadre, pelo batismo da Clélia, vulgo Quileca, sabe-se lá, do que foi feito dela, coitadinha! O não menos compadre Nazário Martinho, filho da Maria Izídio, vulgo Marizídia, este, até, quem sabe, um meio-irmão de meu pai, já que, dessas coisas só se falava no pé do ouvido, por aqueles fundões recônditos da Serra Feia, ou do Serrote, Morro Feio, ou, até mesmo, do vasto Paraíso.
Mas, dentre todos os ajustados, um me vem à lembrança, o Gerci, por ter repartido comigo alguns prazos de dias e de vida infantil. Devia, na época, contar uns doze ou treze anos, e eu, ainda, nem alcançara os sete, a justificada idade da razão, com possibilidades, até, de cometer pecados, carecer de confissão, e fazer a primeira comunhão, segundo as prescrições da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, como se decorava no catecismo. Na minha solidão de, até ali, caçula ou com irmão ainda gugunando ao sugar os seios fartos da mãe, carente de companhia para brincar, um rapazote, como o Gerci, era de grande serventia, além de servir para ser mandado, como já se disse.
Um dia, segundo minha mãe, já que, daquele tempo, pouco me lembro, a não ser pelas cascas dos acontecidos, o Gerci deu de rodear a casa, desenxabido, olhando para o chão, como se procurasse alguma coisa perdida, querendo e não querendo fazer o que parecia querer e não queria. Ela, então, foi saber dele o que estava acontecendo, desconfiada de algum malfeito. “Não é nada, não, Dona Maria”! “É,.sim,.e pode ir desembuchando, que eu sei que aí tem coisa escondida”!  Nisso, ela reparou que o menino tinha, na mão, um canivetinho, que ela sabia ser meu. “E esse canivetinho, o que está fazendo nas suas mãos?” “É meu, que comprei no arraial!” “Comprou nada, que eu reconheço bem!” Apertou, apertou, até ele confessar que tinha “tirado” de minhas coisas. “Não faça mais isso, que conto para sua irmã!”
O Gerci era menino sem família. Largado, como se dizia. A tal irmã, já moça, bonita, como ainda me lembro dos olhares infantis que lhe reservei, morava na casa de uma tia de meu pai. Andou me dando uns banhos em situações vexatórias, para a pouca idade que tinha, por ocasião de uma dor de barriga, em dia de festa, com muita gente por perto. Dela, que eu sabia ser irmã do meu companheiro, só me recordo da bondade e da beleza. Não sei do resto de sua vida, nem que fim levou, certamente, nos braços de algum instinto mais sôfrego e apessoado, carregando-a de filhos e de cuidados.
Outra lembrança que desencavo do fundo do tempo, foi a história de retirada de esterco do curral das vacas. Essa já não vem do Brejo Comprido, mas dos socavões da Serra Feia, para uns, ou da Picada, para outros, lugar onde meu pai tinha umas terras mais frescas, para descanso dos descampados, Na inclemência do sol, do Chapadão só retirava o sustento das vacas, quando ateava fogo nos campos, para o aproveito das queimadas. O broto verdinho do capim macega, suculento, misturado às cinzas, parecia deleitar sobremaneira as criações. A delícia daquelas primícias, misturadas com o potássio, dava-lhes peso, anca arredonda e pelagem lustrosa, mesmo se (como nada vem, assim, gratuitamente), algumas delas exagerassem na dosagem da ruminação e lambuzassem as redondezas do rabo, ao espalharem os restantes moles do capim recém-digerido. Mas é, assim, que os bichos crescem e alimentam de diversos modos os seres humanos.
A ordem de serviço para o Gerci, muitas vezes, era ajuntar o esterco seco das vacas que ia se acumulando no curral, e transportá-lo, sobre um couro velho de vaca, até o quintal, onde, por si só, se espalhava para o saciar das plantas úteis e inúteis. O processo era rudimentar, pois não se dispunha de carroças ou carrocinhas, de espécie alguma. Agarrávamos na aba mais saliente do couro, e, de costas, íamos arrastando continente e o conteúdo até o destino, cada vez mais afastado, já que comecávamos pelo caminho mais curto.  O Gerci, em garantia de poder brincar comigo, depois das tarefas cumpridas, impunha condição de ajudá-lo na empreitada. Naquela idade, com muita certeza, minha ajuda devia ser pouca, mas, como já se disse, trabalho de menino, por menor que seja, nem bobo enjeita.
O esterco seco, em tempos de vento, próprios do período da estiagem, fazia redemoinhos e entrava pelos buracos mais expostos do corpo, olhos, ouvidos, narinas, boca, garganta, e endurecia cabelos, cílios e supercílios. Minha mãe vivia repetindo que não vencia tirar poeira de esterco de sobre os móveis, camas e utensílios de cozinha. Também, do chão batido do rancho de pau-a-pique, esburacado, com o destorrôo natural da terra, por ação da  vassoura, durante as várias varridas da casa. A poeira levantava, apesar das borrifadas de água, para irritar-nos os olhos. O pó de capim moído, na mó dos dentes bovinos, entrava por todos os buracos do rancho, deixados pela queda do reboco de barro cru. Intervalos de telhas, portas e janelas deixavam passar canudos de luz misturados  a pó de estrume.
A bem da verdade, o rancho só tinha quadro cômodos: sala, cozinha, despensa e quarto. Da sala para a cozinha, um meio corredor, terminado em degrau levava à cozinha. Ali, bem ao canto, ficava o pote e o copo de alumínio, para a retirada da água, ainda fresquinha da bica. Os ventos da estiagem faziam com que se devesse lavar, frequentemente, pote e copo, por causa do pó de esterco acumulado. Só não se lavava as almas, porque meus pais eram jovens, e o colchão de palha sossegava rápido as canseiras do diário.
Quando o estrume das rezes se avolumava no recanto das vacas, costumávamos fazer, ao entardecer, como brincadeiras infantis, caminhos tortuosos com a enxada. Os trilhos longos pareciam desenhos labirínticos, rios amazônicos, cujas águas vão escolhendo o caminho, à procura de terreno plano, sem se importarem com distâncias, que o importante é chegarem ao mar, às nuvens, para depois regressarem ao começo das viagens. Assim, também, os meninos de roça, com os ziguezagueados traçados no chão dos currais, tomados pelo esterco, para depois percorrê-los, incansavelmente, como se quisessem desafiar o tempo e as distâncias, naquele exíguo quadrilátero, até que a noite e o sono nos levassem para sonharmos com tombos e escorregos de barrancos, sinais de que o corpo espichava, enquanto a mente descansava, sem que, ao menos, suspeitássemos.
O Gerci era menino e procurava aliviar os serviços, e eu, criança, queria fugir do tédio de sentir o tempo passar mais devagar, naqueles fundões de morros, onde o dia se encurtava e a noite se espichava, com o sol entrando mais cedo e a noite chegando mais depressa, para um eterno recomeçar.
Em uma ocasião, o Gerci procurou um pretexto para ganhar um dia de folga. Ficara sabendo da reza de um terço de santa Luzia. Sem coragem de pedir à minha mãe que o liberasse para a oração,  perguntou se minha mãe não era devota da santa, e não guardava o dia. No local, sempre se reuniam muitas pessoas dos arredores, das mais diferentes idades, e meninas-moças, que conseguiam se furtar das vistas das mães para trocarem olhares dissimulados com os rapazotes presentes. Mas, minha mãe o decepcionou ao dizer-lhe que não, sem pensar que a santa era a protetora dos olhos, e, com toda a certeza, ajudaria a todos e a si própria, na coceira dos olhos, originada na poeira do esterco. Ficaram os olhares das meninas e os suspiros do Gerci sem o auxílio da santa, hoje ressequida em um relicário de igreja, sob sua proteção, na cidade de Veneza.
           Meu companheiro, Gerci, desapareceu das minhas lembranças infantis, apagou-se no escuridéu do tempo, sem deixar rastro, como, de resto, costuma acontecer à maioria dos mortais, cada vez mais amiúde, com o  desenraizamento das terras onde nasceram, para voarem como poeira de esterco a outros cantos de mundo desconhecido.