O
destino do porco.
“O porco levanta sete vezes durante a noite, para comer, e, não encontrando o que comer, come o dono.”
(Os antigos, nos dizeres de D. Mariquinha)
Todo bicho nasce para uma serventia ou
servidão: uns para cantarem, outros para mugirem, nadarem, voarem, caçarem ou
serem caçados. Alguns para gritarem e, outros até, para ficarem mudos, aguentarem,
calados, as injustiças do mundo e de seus bichos-homens.
Conta-se que numa roda de evadidos da
Ásia Menor, nem tão muçulmanos, assim, discutia-se sobre o hábito de se comer carne
de porco, por aqui. Torciam os narizes, repugnavam-se os estômagos, franziam a
cara, gesticulavam em sinal de agravo. Como pode essa gente comer porco, animal
amante de porcarias, impuro como o próprio nome prova e comprova?
Falavam em árabe, para que ninguém,
naquele recanto latino, pudesse compreender o assunto da conversa. Afinal, eles
não tinham nenhum motivo para ofender o povo que os recebera de braços abertos,
como, por sinal, todos que para cá se transportam.
Todavia, ali por perto, entre os
funcionários da loja, diante da qual aquela conversa se animava, alguém
acompanhava o assunto, mais por intuição do que por compreender a língua na
qual ela se processava. Era o rapaz, cunhado do proprietário, que resolveu se
intrometer no assunto, com a liberdade que seu enviesado parentesco lhe
permitia. Falou num português meio embolado, para dar ares de que manjava um
pouco da língua mais utilizada pelos adeptos de Maomé.
- Aposto que vocês estão falando, de
novo, do porco. Estou vendo pela cara e pelos gestos. Devem estar dizendo que a
carne é ruim, impura. Mas eu vou provar-lhes que o animal é o único que nasceu
para ser comido. Não tem mais nenhuma serventia.
E ele foi desfiando os nomes de bichos
que lhe vinham vindo desordenadamente à
cabeça.
- Tomem o cachorro. Para que serve o
cachorro? Para proteger seu dono, guardar a casa, brincar com as crianças,
acompanhar o dono em suas andanças, avisar da chegada de algum estranho, além
de ser o mais fiel amigo do homem.
- Para que serve o gato? Para pegar rato, e
dar-se a coçar no colo de alguma madame sem muito o que fazer na vida, agradar
as crianças pela beleza de suas cores e pelagens variadas, em livros de escola.
- Para que serve a galinha? Para botar
ovos, avisar aos donos de algum bicho estranho rondando a casa. Isso, quando ela
não nos pode servir de alimento, é claro! O galo enfeita o terreiro, canta de
madrugada, anuncia a aurora, e reaviva a
nostalgia.
- A vaca, para que serve a vaca? Para
dar leite, produzir mais vacas e bois, que vão ajudar o homem a puxar o
alimento da roça.
- Para que serve o cavalo? Para
carregar o homem, puxar carroça, correr nos hipódromos e competições de
hipismo, além de serem ostentados em cartazes e estampas de rodeios, a se
pendurar nas paredes, com um calendário aos pés..
- E a ovelha, o carneiro? Para
fornecerem lã que tecerá os casacos de frio por esse mundo a fora. E, até, queijo
famoso se faz de seu pouco leite!
- Para que serve a cabra? Para dar,
aos resistentes à lactose de outros leites, o cálcio indispensável ao
desenvolvimento do corpo das crianças carentes.
- E o beija-flor? Para colorir os
olhos e polinizar as flores, das quais vão nascer os frutos.
- E a abelha, para que serve? Para
fabricar o mel, alimentar as pessoas.
- E o pato, a ema, o jacaré, o peixe,
a onça, o pavão, o urubu, a seriema, o gavião, o peixe-boi, o caititu e tudo
quanto é bicho que vive por aí, no mato, no céu ou no terreiro? Para manterem o
equilíbrio da natureza. A cotia, por exemplo, rói o ouriço da castanheira do
Pará e planta suas sementes, para perpetuar a espécie da maior árvore da mata
amazônica.
E o porco, para que serve, além de
comer, dormir, reclamar por mais comida, colocar desarmonia na pocilga e
procriar aquela quantidade de leitões, em uma das gestações mais curtas que se
conhece para seu tamanho e volume? A cada barrigada, a porca traz uma enorme ninhada,
que, por sua vez, só pensa em mamar, comer, procriar, dormir e engordar. Porco
não dá leite, não puxa carroça, não canta de madrugada, não carrega ninguém nas
costas, não é tão animal de estimação, nem é essa beleza toda que alguns filmes
infantis procuram divulgar. Além de tudo, grunha e ronca quando dorme. Entretanto,
apesar de porco, e de comer tudo o que é porcaria, tem uma das carnes mais saborosas
que há. Porco nasceu para comer e ser comido. E pronto!
Dito isto, o rapaz deixou-os calados e, parece, até hoje continua convicto de suas idéias. Nunca considerou o fato de ele não comer cachorro assado na feira, ovo enterrado durante meses no chão até virar gelatina esverdeada e mal cheirosa, cérebro de macaco vivo, cobra venenosa, para só ficar nisso. Nem todo estômago está preparado para suportar tais arrepios da indigestão. Sem falar nos valores vegetarianos, que merecem todo o respeito. Carne, bovina, ovina ou exótica, pressupõe morte de animais que, como nós, compartilham este equilíbrio da natureza. Sem falar que Cultura é cultura e não se costura, inconsútil.
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