sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (55)


O destino do porco.

O porco levanta sete vezes durante a noite, para comer, e, não encontrando o que comer, come o dono.”
(Os antigos, nos dizeres de D. Mariquinha)

 
Todo bicho nasce para uma serventia ou servidão: uns para cantarem, outros para mugirem, nadarem, voarem, caçarem ou serem caçados. Alguns para gritarem e, outros até, para ficarem mudos, aguentarem, calados, as injustiças do mundo e de seus bichos-homens.

Conta-se que numa roda de evadidos da Ásia Menor, nem tão muçulmanos, assim, discutia-se sobre o hábito de se comer carne de porco, por aqui. Torciam os narizes, repugnavam-se os estômagos, franziam a cara, gesticulavam em sinal de agravo. Como pode essa gente comer porco, animal amante de porcarias, impuro como o próprio nome prova e comprova?

Falavam em árabe, para que ninguém, naquele recanto latino, pudesse compreender o assunto da conversa. Afinal, eles não tinham nenhum motivo para ofender o povo que os recebera de braços abertos, como, por sinal, todos que para cá se transportam.

Todavia, ali por perto, entre os funcionários da loja, diante da qual aquela conversa se animava, alguém acompanhava o assunto, mais por intuição do que por compreender a língua na qual ela se processava. Era o rapaz, cunhado do proprietário, que resolveu se intrometer no assunto, com a liberdade que seu enviesado parentesco lhe permitia. Falou num português meio embolado, para dar ares de que manjava um pouco da língua mais utilizada pelos adeptos de Maomé.

- Aposto que vocês estão falando, de novo, do porco. Estou vendo pela cara e pelos gestos. Devem estar dizendo que a carne é ruim, impura. Mas eu vou provar-lhes que o animal é o único que nasceu para ser comido. Não tem mais nenhuma serventia.

E ele foi desfiando os nomes de bichos que lhe vinham vindo  desordenadamente à cabeça.

- Tomem o cachorro. Para que serve o cachorro? Para proteger seu dono, guardar a casa, brincar com as crianças, acompanhar o dono em suas andanças, avisar da chegada de algum estranho, além de ser o mais  fiel amigo do homem.

 - Para que serve o gato? Para pegar rato, e dar-se a coçar no colo de alguma madame sem muito o que fazer na vida, agradar as crianças pela beleza de suas cores e pelagens variadas, em livros de escola.

- Para que serve a galinha? Para botar ovos, avisar aos donos de algum bicho estranho rondando a casa. Isso, quando ela não nos pode servir de alimento, é claro! O galo enfeita o terreiro, canta de madrugada, anuncia a aurora, e  reaviva a nostalgia.

- A vaca, para que serve a vaca? Para dar leite, produzir mais vacas e bois, que vão ajudar o homem a puxar o alimento da roça.

- Para que serve o cavalo? Para carregar o homem, puxar carroça, correr nos hipódromos e competições de hipismo, além de serem ostentados em cartazes e estampas de rodeios, a se pendurar nas paredes, com um calendário aos pés..

- E a ovelha, o carneiro? Para fornecerem lã que tecerá os casacos de frio por esse mundo a fora. E, até, queijo famoso se faz de seu pouco leite!

- Para que serve a cabra? Para dar, aos resistentes à lactose de outros leites, o cálcio indispensável ao desenvolvimento do corpo das crianças carentes.

- E o beija-flor? Para colorir os olhos e polinizar as flores, das quais vão nascer os frutos.

- E a abelha, para que serve? Para fabricar o mel, alimentar as pessoas.

- E o pato, a ema, o jacaré, o peixe, a onça, o pavão, o urubu, a seriema, o gavião, o peixe-boi, o caititu e tudo quanto é bicho que vive por aí, no mato, no céu ou no terreiro? Para manterem o equilíbrio da natureza. A cotia, por exemplo, rói o ouriço da castanheira do Pará e planta suas sementes, para perpetuar a espécie da maior árvore da mata amazônica.

E o porco, para que serve, além de comer, dormir, reclamar por mais comida, colocar desarmonia na pocilga e procriar aquela quantidade de leitões, em uma das gestações mais curtas que se conhece para seu tamanho e volume? A cada barrigada, a porca traz uma enorme ninhada, que, por sua vez, só pensa em mamar, comer, procriar, dormir e engordar. Porco não dá leite, não puxa carroça, não canta de madrugada, não carrega ninguém nas costas, não é tão animal de estimação, nem é essa beleza toda que alguns filmes infantis procuram divulgar. Além de tudo, grunha e ronca quando dorme. Entretanto, apesar de porco, e de comer tudo o que é porcaria, tem uma das carnes mais saborosas que há. Porco nasceu para comer e ser comido. E pronto!

          Dito isto, o rapaz deixou-os calados e, parece, até hoje continua convicto de suas idéias. Nunca considerou o fato de ele não comer cachorro assado na feira, ovo enterrado durante meses no chão até virar gelatina esverdeada e mal cheirosa, cérebro de macaco vivo, cobra venenosa, para só ficar nisso. Nem todo estômago está preparado para suportar tais arrepios da indigestão. Sem falar nos valores vegetarianos, que merecem todo o respeito. Carne, bovina, ovina ou exótica, pressupõe morte de animais que, como nós, compartilham este equilíbrio da natureza. Sem falar que Cultura é cultura e não se costura, inconsútil.

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