domingo, 21 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (53)


Banhos de Cachoeira

 
O dia amanhecia. O sol ainda não mostrava a cara, mas as barras da aurora se tingia de rosa. Hora de começar a colocar as vacas para dentro do curral, ansiosas por encontrar seus bezerros que haviam dormido separados, para que o leite das mães se acumulasse durante a noite. O berreiro dos animais marcava que ali, e na vizinhança, as atividades de terreiro começavam.

Antes, porém, meu pai ia à bica e jogava umas boas mãozadas de água fria no rosto. Nos meses de seca, quando tudo minguava, a água do rego chegava mais fria e pinicava na cara das gentes de hábitos matutinos. Meu pai dizia gostar daquela sensação de sangue aflorando à pele, se certificando do que acontecia nas extremidades dos vasos capilares. O cafezinho para a boca-de-pito ficava para mais tarde, quando minha mãe já acendera o fogo na fornalha, raspara a rapadura sobre a taboa côncava de madeira, guardada perto da base da chaminé, e coara o café torrado em casa, exalando cheiro que percorria distância da cozinha ao curral. Isso, todo dia, desde gerações.

No dia de São João, mês de junho, mês da seca e dos dias de mais friagem, minha mãe retirava as duas crianças da cama e os levava, ainda antes de o sol nascer, para dar-lhes três golinhos de água da bica, na ponta dos dedos, para que Deus e o santo,  o do Jordão, as conservassem em boa saúde. Era costume, também, aguar as plantas, encher o pote com aquele líquido bento, para que a saúde estivesse sempre presente na família. Entretanto, caso se olhasse na superfície de algum poço d´água e não se visse, ou a própria sombra refletida, naquela hora de pouca luz, bons presságios não haveria. Isso de bem e mal sempre estarem juntos, até no dia de santo, remonta os tempos.

Meu pai, como de resto todos os moradores dos campos das redondezas, não costumava tomar banho diário. Não era prática comum por aquelas bandas. No final do dia havia o cerimonial dos lava-dorsos e dos lava-pés, para homens e meninos, e um carregar de bacias para o quarto, para as abluções mais recônditas das mulheres e meninas. No dia em que se aludiu a essa prática tão corriqueira e saudável, melhor do que a de muitas que nem isso tinham, de se higienizarem lá onde os do sexo oposto pouco cuidava, houve risos nos machões dos novos tempos, e minha mãe subiu nos tamancos, diante do engraçadinho. O tabu e o recato falaram mais alto. Não havia por que tanto se resguardar, no entanto, se até a Europa, de onde vieram normas civilizatórias, era exemplo de costumes bem menos asseados.

 Nos finais de semana, feriados e dias santos de guarda, eu assistia meu pai nos preparativos de ida à cachoeira. No paiol de milho, pegava uma boa espiga, descascava-a, e, com ajuda de um garfo, rasgava a palha em inúmeras tiras, tomando cuidado de não desgarrá-las do nó do pé. Bucha feita, passava a mão na toalha, colocava-a em volta do pescoço, não esquecia o sabão da cuia, e tomava o rumo do córrego, para o banho completo, de gente civilizada.

A cachoeira, na verdade, não era, assim, tão encachoeirada, pelo volume do córrego, de águas claras e potáveis, livres, ainda, do chorume de granja de porcos, que veio se instalar nas cabeceiras. Bem na passagem para a outra banda do barranco, no vau, por onde passavam cavaleiros e animais, o toá represava as águas que caíam do alto, espumantes e luminosas. Formavam-se, ali, o poço e a ducha, componentes de um bom banho, frio e saudável. Naqueles tempos, o local era caminho de transeuntes, que encurtavam caminho em direção ao Pântano, arruado de poucas casas, igreja e casa paroquial. Mas, nos domingos e feriados, o movimento escasseava.

Tempos, mais tarde, tive a oportunidade agradável de molhar meu corpo naquelas águas frias, e sentir o peso da cachoeira do Brejo Comprido. Cedo, de lá mudamos, eu ainda criança, em idade de escola.

De lembranças, uma me cutuca a memória infantil. Minha irmã e eu, de certa feita, procurávamos pocinhos de água corrente para pescar piabas e lambaris. Fomos dar, sem que nossa mãe soubesse, lá na tal cachoeira. De cima do toá escorregadio, lançamos os anzoizinhos “olho-de- mosquito”, no remanso do poço, onde o redemoinho dava mais sossego aos raros e possíveis peixinhos. Em dado momento, meu anzol enroscou no barranco, por sobre o fervilhar das águas. Minha irmã, dois anos mais velha, teve a inocente ideia de me segurar pelos pés, para que eu descesse de cabeça para baixo, até ele, e o recuperar. Enquanto isso, os nossos anjos da guarda seguravam firmes as mãos dela, para não se escorregar e me soltar sobre o tumulto das águas. Mais tarde, soubemos que nossa mãe levava uns ralhados de um tio dela, que chegara em nossa casa, levado pelo prenúncio de chuva forte, debaixo de trovões e relâmpagos, que nem  podíamos ouvir, por causa do barulho das águas.

Hoje, ao passar por aquele minguado curso d´água, de lodo escuro e malcheiroso, vejo aquela ínfima corredeira, que insiste em desgastar, cada vez mais, o toá já tão desfeito pelas inúmeras enchentes, e sorrio para dentro. Tento recuperar imagens de perigo e de prazer. Pareço mentir para mim mesmo, ao imaginar meu pai, jovem a assoviar felicidades, enquanto ensaboava o corpo com bucha nova de palha de milho e sabão preto de decoada de cinza de assa-peixes. Ele, ainda, desfrutava de uma água limpa e fresca, e voltava para dentro de casa, o corpo leve, para um final de dia desanuviado. Com certeza, ia pensava em passarinhos verdes e cheiros de amor.

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