terça-feira, 23 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (54)


Leite azedo

 
A avó desconjurava o nome de pia. Dizia que sua sedentária figura, desde tempos afastados dos já finais da vida, não condizia com a linha natural que apresentara na bacia batismal, quando recebera o nome ainda comum de Josefina. A massa corporal, em grande parte advinha do fato de não poder se movimentar, situação a que fora obrigada, em decorrência de acidente que fraturou-lhe uma perna e rompera ligamentos que sustêm os intestinos, deixando-os à mostra na flor da pele. Hérnia, como diriam os médicos especialistas do assunto. No fundo era obesa, e a natureza foi-se amoldando àquela situação de prisioneira do assento, banco de grossa tábua e pés bem plantados, confeccionado sob medida, para suportar o peso excessivo do corpo.

Assim, além do caráter firme, tornara-se mandona, e, comumente, ríspida nas maneiras de distribuir ordens, que o forte temperamento ditava ao marido, doce pessoa, e à filha solteira, inteiramente voltada aos seus cuidados. Dizer que excedia no regramento desagradava a alguns de seus próximos parentes, que não compartilhavam dessa opinião, a seu ver, preconceituosa. Quando muito, achavam-na enérgica nos tratos, apesar da escassa mobilidade física que levou até a morte. O passamento adveio aos sessenta e seis anos de sofrida existência terrena. Na defesa de possíveis agravos àquela matriarcal figura, ainda se costuma ouvir que "felizes aqueles seus descendentes que trazem pouco de seu sangue corrente nas veias”. Nem sempre a vida ativa se limita aos que se movimentam o dia inteiro. Ela agitava sem muito se mexer. “Nunca teve sangue de barata”.

Vale se redimir dos juízos apressados e reconhecer que o sedentarismo não a impedia de sustentar agradável e boa prosa, a qual não deixava de contentar os ouvintes com as descobertas de parentescos. Naquela sociedade estreita e fechada, assuntos de casamentos e consangüinidades, nos mais diferentes níveis e graus de proximidades, eram corriqueiros. Isso, ainda nos tempos em que a tecnologia, os meios de transportes e de comunicação não afastavam os mais jovens do convívio entre primos e primas, na conservação de valores morais e pecuniários, hoje bem menos relevantes.

Naquele tempo, as crianças só prestavam atenção no que viam, e não se  lhes permitiam perguntas. Essa prática, proporcionava-lhes, contudo, que tirassem por si mesmas conclusões dos acontecimentos, ao ajuntarem cacos de assuntos dos mais variados matizes. Em adultos, era fácil reconstituir, daquela cerâmica rústica, uma época e seus costumes. Dentre estes, a avó tinha o habito de tomar leite azedo. Para o deguste da iguaria, ela convidava alguns próximos parentes e convivas mais chegados para compartilhar com eles o repasto. Ademais, esta modalidade de consumo do leite não era exclusividade daquela casa. Outras famílias do lugar o praticava com os mesmos gostos.

Uma cabaça era adrede preparada, para a transformação do leite puro, recém-saído dos úberes quentes das vacas, no curral contiguo à casa. O avô não esquecia de reservar o melhor leite “para dentro”. Este era extraído dos animais mais sadios, e que estavam prestes a desmamar seus bezerros já quase garrotes. Em final de lactação, diriam os técnicos no assunto. O líquido se revelava mais gordo e saboroso. A boca do recipiente, assim como a tampa, tinha a forma estrelada, de tal forma que não permitisse o acesso de outro modo que não por meio de um objeto. A saliva, ali, não teria lugar. Entretanto, lá dentro as bactérias trabalhassem rapidamente, para, à noite, a avó poder saborear seu leite azedo, “comido” com farinha de mandioca ou de milho, por meio de uma colher de metal. O barulho da boca, ao se sugar tal manjar, dava ao procedimento um colorido que bem traduzia o prazer de um ritual de comensais.

Pelo que se tem lembrança, as crianças não compartilhavam daquelas prelibações. Mas um personagem transparece dentro delas: o Candinho, figura saída de um sem números de Cândidos e Cândidas, que povoavam aqueles meios, naqueles já passados tempos. Este não tinha a mente na qualidade das pessoas normais. Era apoucado nas idéias e, pelo que se recorda, tinha os pés chatos e revirados para dentro do espectro piramidal dos membros inferiores, fato que caracterizava ainda mais sua minguada psiquê.  Além de apreciar o leite que a avó lhe oferecia, e fazer os habituais ruídos no sorvê-lo, o Candinho ainda se permitia, sem nenhum constrangimento, os arrotos que o líquido naturalmente suscitava. Caso demorasse algum tempo mais, viriam os borborigmos, as flatulências a anunciarem os efeitos do azedume do leite gordo da cumbuca, nos vários metros de entranhas dilatadas..

Ainda hoje, quando se assiste aos inumeráveis derivados do leite e seus adjetivados processos de fermentação, pode-se mesmo pensar que os antigos hábitos da avó não se distanciavam tanto dos da atualidade. Não contavam, é claro, como não se pode deixar de aceitar, com os cuidados que a saúde pública e seus protetores procuram imprimir. Entretanto, quem pode garantir que, mais dias  produtos lácteos não venham desacreditar os atuais. O importante será pensar que, assim como as bactérias de antigamente se harmonizavam com os organismos da época, com o tempo também irão se adaptando aos organismos em contínua evolução.

As atuais geladeiras e modos de refrigeração, mais adequados à conservação de alimentos e ao controle de bactérias, danosas ou benéficas, não impedem que os descendentes daquela gente, que apreciava o leite azedo das cumbucas guardadas na dispensa da casa, comumente exposta a outros apreciadores  que não somente aos seres humanos, estejam vivendo sãos e salvos, para a continuidade da espécie, até que o planeta, por si só, resolva a se desvencilhar de suas prepotentes invenções.

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