Leite azedo
A avó desconjurava o nome de pia.
Dizia que sua sedentária figura, desde tempos afastados dos já finais da vida,
não condizia com a linha natural que apresentara na bacia batismal, quando
recebera o nome ainda comum de Josefina. A massa corporal, em grande parte
advinha do fato de não poder se movimentar, situação a que fora obrigada, em
decorrência de acidente que fraturou-lhe uma perna e rompera ligamentos que sustêm
os intestinos, deixando-os à mostra na flor da pele. Hérnia, como diriam os
médicos especialistas do assunto. No fundo era obesa, e a natureza foi-se
amoldando àquela situação de prisioneira do assento, banco de grossa tábua e
pés bem plantados, confeccionado sob medida, para suportar o peso excessivo
do corpo.
Assim, além do caráter firme, tornara-se mandona, e,
comumente, ríspida nas maneiras de distribuir ordens, que o forte temperamento
ditava ao marido, doce pessoa, e à filha solteira, inteiramente voltada aos
seus cuidados. Dizer que excedia no regramento desagradava a alguns de seus próximos
parentes, que não compartilhavam dessa opinião, a seu ver, preconceituosa.
Quando muito, achavam-na enérgica nos tratos, apesar da escassa mobilidade
física que levou até a morte. O passamento adveio aos sessenta e seis anos de sofrida
existência terrena. Na defesa de possíveis agravos àquela matriarcal figura,
ainda se costuma ouvir que "felizes aqueles seus descendentes que trazem pouco
de seu sangue corrente nas veias”. Nem sempre a vida ativa se limita aos que se
movimentam o dia inteiro. Ela agitava sem muito se mexer. “Nunca teve sangue de
barata”.
Vale se redimir dos juízos apressados e
reconhecer que o sedentarismo não a impedia de sustentar agradável e boa prosa,
a qual não deixava de contentar os ouvintes com as descobertas de parentescos.
Naquela sociedade estreita e fechada, assuntos de casamentos e consangüinidades,
nos mais diferentes níveis e graus de proximidades, eram corriqueiros. Isso,
ainda nos tempos em que a tecnologia, os meios de transportes e de comunicação
não afastavam os mais jovens do convívio entre primos e primas, na conservação
de valores morais e pecuniários, hoje bem menos relevantes.
Naquele tempo, as crianças só
prestavam atenção no que viam, e não se lhes permitiam perguntas. Essa prática,
proporcionava-lhes, contudo, que tirassem por si mesmas conclusões dos
acontecimentos, ao ajuntarem cacos de assuntos dos mais variados matizes. Em
adultos, era fácil reconstituir, daquela cerâmica rústica, uma época e seus costumes.
Dentre estes, a avó tinha o habito de tomar leite azedo. Para o deguste da
iguaria, ela convidava alguns próximos parentes e convivas mais chegados para
compartilhar com eles o repasto. Ademais, esta modalidade de consumo do leite
não era exclusividade daquela casa. Outras famílias do lugar o praticava com os
mesmos gostos.
Uma cabaça era adrede preparada, para a
transformação do leite puro, recém-saído dos úberes quentes das vacas, no
curral contiguo à casa. O avô não esquecia de reservar o melhor leite “para
dentro”. Este era extraído dos animais mais sadios, e que estavam prestes a
desmamar seus bezerros já quase garrotes. Em final de lactação, diriam os técnicos no assunto. O líquido se revelava mais gordo e saboroso. A
boca do recipiente, assim como a tampa, tinha a forma estrelada, de tal forma que não
permitisse o acesso de outro modo que não por meio de um objeto. A
saliva, ali, não teria lugar. Entretanto, lá dentro as bactérias trabalhassem
rapidamente, para, à noite, a avó poder saborear seu leite azedo,
“comido” com farinha de mandioca ou de milho, por
meio de uma colher de metal. O barulho da boca, ao se sugar tal manjar, dava
ao procedimento um colorido que bem traduzia o prazer de um ritual de comensais.
Pelo que se tem lembrança, as crianças
não compartilhavam daquelas prelibações. Mas um personagem transparece dentro
delas: o Candinho, figura saída de um sem números de Cândidos e Cândidas, que povoavam
aqueles meios, naqueles já passados tempos. Este não tinha a mente na qualidade
das pessoas normais. Era apoucado nas idéias e, pelo que se recorda, tinha os
pés chatos e revirados para dentro do espectro piramidal dos membros
inferiores, fato que caracterizava ainda mais sua minguada psiquê. Além de apreciar o leite que a avó lhe
oferecia, e fazer os habituais ruídos no sorvê-lo, o Candinho ainda se
permitia, sem nenhum constrangimento, os arrotos que o líquido naturalmente
suscitava. Caso demorasse algum tempo mais, viriam os borborigmos, as
flatulências a anunciarem os efeitos do azedume do leite gordo da cumbuca, nos vários metros de entranhas dilatadas..
Ainda hoje, quando se assiste aos
inumeráveis derivados do leite e seus adjetivados processos de fermentação,
pode-se mesmo pensar que os antigos hábitos da avó não se distanciavam tanto dos da
atualidade. Não contavam, é claro, como não se pode deixar de aceitar, com os
cuidados que a saúde pública e seus protetores procuram imprimir.
Entretanto, quem pode garantir que, mais dias produtos lácteos
não venham desacreditar os atuais. O importante será pensar que, assim como as
bactérias de antigamente se harmonizavam com os organismos da época, com o
tempo também irão se adaptando aos organismos em contínua evolução.
As atuais geladeiras e modos de
refrigeração, mais adequados à conservação de alimentos e ao controle de
bactérias, danosas ou benéficas, não impedem que os descendentes daquela gente, que apreciava o leite
azedo das cumbucas guardadas na dispensa da casa, comumente exposta a outros apreciadores
que não somente aos seres
humanos, estejam vivendo sãos e salvos, para a continuidade da espécie, até que
o planeta, por si só, resolva a se desvencilhar de suas prepotentes invenções.
Nenhum comentário:
Postar um comentário