terça-feira, 29 de agosto de 2017

Nuvens esparsa (69)

Vida forra de passarinho.

Sem pensar em dias,
nem horas,
sem quase o que fazer
de dever ou demora,
a não ser viver,
e fazer viver,
e cantar e cantar,
a não mais poder,
pelo quanto puder
aguentar de lazer,
de soprazer,
o pássaro, parece
passar o tempo em prece,
sem fazer de conta,
porque a vida é leve
passatempo no ar,
de brisa breve,
estrada larga,
sem paragens,
sem resistências 
ou retráteis margens.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Nuvens esparsas (68)

O dinheiro é sem alma, sem coração,
deixa pobre sem opção,
que, se correr, o bicho pega,
se parar, de precisão, de fome,
o bicho é homem.

Há desconto pra tudo,
na luta das injustiças,
do vale-tudo desenfreado, 
menos pra dinheiro desregrado,
igualado na cobiça.

Questão é de desrespeito
ou de vergonha, nenhuma ou pouca,
contrafeito no valor, em inteiros ou avos,
da penúria, da pecúnia,
dos bens alienados?

Quanto vale o picolé de coco
do menino pernalta, esfomeado,
artefato apenas perfumado,
empurrando carrinho de coitado?
Um real? Paga-se oitenta centavos.

Quanto, o carro contrabandeado?
Cem mil? Leva-se por oitenta.
Qual o valor do apartamento,
mobiliado em madeira de lei, condenada?
Quinhentos mil? Compra-se por quatrocentos.

O iate decorado, a salários desconcertados?
Vale facilitado um milhão?
Tem-no por oitocentos mil,
de dinheiro em banco, facilitado,
catados a rodo, ou de aluvião.

A quantas andam a dívida da nação?
Um bilhão? Salda-se com rolagens,
e infinitos juros escorchados,
seguros e mais outros apuros
da desbastada população.

Deve-se pouco? Vai-se amargar a prisão.
Paga-se com perda da identidade,
da rala idade bebida com pouca comida,
com cama exígua, iniquamente dormida,
e tempo moldado de preocupação.

Deve-se milhões? Aguarda-se em liberdade,
assentado em fofas poltronas e vantagens:
responde-se, de cara deslavada,
a inquéritos de adestrados magistrados,
administrados na certeza das impunidades.

Os devedores se resguardam infiéis,
no silêncio estratégico das leis,
à sombra de bem remunerados bacharéis,
sem devolução de luxos desfrutados,
injustificados perante os céus.

II

Qual, então, o preço da consciência, do pecado,
dos ofícios perdidos, dos cultos manipulados,
dos desejos satisfeitos, do uso da contravenção,
do cônjuge infiel, das injustiças sociais, da omissão,
da conivência nas mortes indiretas de inocentes,
do desperdício de alimentos excedentes,
da complacência de dirigentes indecentes,
das vestimentas suntuosas, do ouro resguardado,
da ostentação de guardas engalanados,
das pedrarias valiosas nas confrarias de iguarias,
luzidias de tão caras, de tão finas, de cores frias?

Do pequeno, tira-se o muito,
do grande, quando se tira, tira-se o pouco.
Quanto mais alto o preço,
maior o valor do desconto.
Quanto maior a dívida (no posto),
maior a indulgência (no imposto).
Quanto maior o crime (resumido),
mais insignificante o castigo (infligido).
Quanto menor o valor do trabalho insano,
mais o mundo se mostra desumano.
Quanto maior o pecado, 
maior a clemência do prelado.

                        III

O mundo é bem irremediável e louco!
E Deus, como é que fica, em tudo isso?
Afastado, indeciso, omisso,
só avaliando intrincados compromissos
de irresponsáveis juízes?
Ou, talvez, sejamos tão somente aprendizes?

sábado, 5 de agosto de 2017

Ainda a consciência

(Relembrando tempos idos)

Deus me vê, me aclara,
não me censura, cuida,
nem lhe cabe condenar.
O olho de Deus
não conhece mau-olhado,
nunca foi triangular,
severo, oblíquo, raivoso,
dissimulado. 

Bondoso, sempre, foi,
com muita vontade
de ajudar, o pobre coitado.
Não me olhou, desde o sacrário,
no banheiro, ou sanitário,
para evitar
o vício solitário. 

Nem enxergou, malsim,
no escuro do confessionário,
pensamentos culpados,
resistentes,
noturnos, reincidentes,
como a consciência de Caim,
no sombroso refúgio carcerário. 

Penoso é julgar um condenado
dentro de vedada muralha,
assentado numa cadeira fria,
rígido, encolhido, inseguro
na sombra profunda,
como foragido verdugo,
em “ La Conscience”,
poema escuro de Victor Hugo.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Consciência - Victor Hugo

A consciência (Victor Hugo-1802-1885 ) 

Quando, seguido dos filhos vestidos de pele de animais,
Cabelo desgrenhado, lívido em meio às tempestades,
Caim fugiu da presença de Jeová,
A noite caía, e o homem sombrio chegava
Ao pé de uma montanha, em uma grande planície,
A mulher cansada e os filhos já ofegantes
Disseram-lhe: “Deitemo-nos no chão e durmamos”!

Sem poder dormir, Caim divagava ao sopé dos montes.
Ao erguer a cabeça, em direção aos céus profundos,
Ele viu um olho, bem grande, aberto nas trevas,
Que o olhava na sombra, fixamente.
“Estou muito perto”, disse ele, trêmulo.
E acordou seus filhos que dormiam, sua mulher fatigada,
E pôs-se a fugir sinistro diante de si, desorientado.

Ele andou trinta dias e trinta noites,
Mudo, pálido, e tremia a qualquer barulho,
Furtivo, sem olhar atrás de si, sem parar,
Sem repouso, sem sono. Assim, chegou a uma praia
Dos mares do país que, dali, veio a ser Assur.
“Paremos, disse ele, porque este lugar é seguro.
Fiquemos, por aqui. Nós já atingimos o fim do mundo.”

E, tão logo procurou assento, viu nos céus sem brilho,
O olho no mesmo lugar, no fundo do horizonte.
Então, ele estremeceu, tomado de negro arrepio.
“Escondam-me!”, gritou, e, com o dedo sobre a boca,
Todos os seus filhos assistiam tremer apavorado, ao avô.
Caim disse a Jabel, pai daqueles que moram
sob tendas de pele, no deserto imenso:
“Estenda, deste lado, a tela da tenda.”

E, assim, foi estendida a muralha flutuante.
Mas, tão logo fixada com pesos de chumbo,
“Vê, ainda, alguma coisa? pergunta Tsilla, jovem loura,
Filha de seus filhos, meiga como a aurora.
E Caim respondeu: “Eu, ainda, o vejo!”.
Jubal, pai daqueles que passam nas aldeias
Soprando trombetas e batendo tambores,
Gritou: “eu saberei construir uma barreira.”

E fez um muro de bronze e colocou Caim atrás.”
E Caim disse: “Aquele olho continua a me olhar!”
Enoc disse: “é preciso um cinturão de torres,
Tão temidas que nada possa se aproximar delas.
Construamos uma cidade com sua cidadela.
Construiremos uma cidade, e a fecharemos. ”
Então, Tubalcaim, pai dos ferreiros,
Construiu uma cidade enorme e sobre-humana.

Enquanto ele trabalhava, seus irmãos na planície,
Expulsavam os filhos de Enos e de Set,
Furavam os olhos de quem, por ali, passava.
E, à noite, lançavam flechas às estrelas.
O granito substituiu a tenda, murada de telas.
Amarrou-se cada bloco com nós de ferro,
E a cidade ficou parecendo cidade do inferno.

A sombra das torres fazia noite nos arredores.
Sobre a porta, gravou-se: “Proibido a Deus entrar.”
Quando eles terminaram de fechar e de amurar,
Colocou-se o avô no centro, em uma torre de pedra,
Que permaneceu lúgubre e desvairado. “Ó meu pai!
O olho desapareceu?“, perguntou, trêmula, Tsilla.
E Caim respondeu: “Não, ele ainda lá está.”

Então, ele disse:  “Eu quero morar debaixo do chão,
Como em seu sepulcro, o homem solitário.
Nada mais me haverá de ver, e eu não verei mais nada.”
Foi feito, então, um fosso, e Caim disse; “Assim mesmo!”
Depois, desceu sozinho embaixo dessa abóbada escura.
Quando se assentou em uma cadeira sombria
E foi fechada sobre sua fronte o subterrâneo,
O olho estava na tumba e fixava Caim.

Do livro “La Légende des siècles”
(Tradução de Joaquim Caixeta, 1/2/13)

Nota do tradutor:
Em Mendes-Rio, anos 60, pré-Concílio Ecumênico Vaticano II (que tirou a Igreja Católica da Idade Média), era-nos dado a ler este poema (em francês) como, presume-se, desestímulo a quaisquer possibilidades de caídas em tentações e pecado. Um triângulo, com o olho de Deus ao centro, era fixado em recintos fechados, banheiros, sobretudo. A ligação entre as duas imagens era clara, embora, à época, não se podia vislumbrar.


La conscience

Lorsque avec ses enfants vêtus de peaux de bêtes,
Echevelé, livide au milieu des tempêtes,
Caïn se fut enfui de devant Jéhovah,
Comme le soir tombait, l'homme sombre arriva
Au bas d'une montagne en une grande plaine ;
Sa femme fatiguée et ses fils hors d'haleine
Lui dirent : « Couchons-nous sur la terre, et dormons. »
Caïn, ne dormant pas, songeait au pied des monts.
Ayant levé la tête, au fond des cieux funèbres,
Il vit un oeil, tout grand ouvert dans les ténèbres,
Et qui le regardait dans l'ombre fixement.
« Je suis trop près », dit-il avec un tremblement.
Il réveilla ses fils dormant, sa femme lasse,
Et se remit à fuir sinistre dans l'espace.
Il marcha trente jours, il marcha trente nuits.
Il allait, muet, pâle et frémissant aux bruits,
Furtif, sans regarder derrière lui, sans trêve,
Sans repos, sans sommeil; il atteignit la grève
Des mers dans le pays qui fut depuis Assur.
« Arrêtons-nous, dit-il, car cet asile est sûr.
Restons-y. Nous avons du monde atteint les bornes. »
Et, comme il s'asseyait, il vit dans les cieux mornes
L'oeil à la même place au fond de l'horizon.
Alors il tressaillit en proie au noir frisson.
« Cachez-moi ! » cria-t-il; et, le doigt sur la bouche,
Tous ses fils regardaient trembler l'aïeul farouche.
Caïn dit à Jabel, père de ceux qui vont
Sous des tentes de poil dans le désert profond :
« Etends de ce côté la toile de la tente. »
Et l'on développa la muraille flottante ;
Et, quand on l'eut fixée avec des poids de plomb :
« Vous ne voyez plus rien ? » dit Tsilla, l'enfant blond,
La fille de ses Fils, douce comme l'aurore ;
Et Caïn répondit : « je vois cet oeil encore ! »
Jubal, père de ceux qui passent dans les bourgs
Soufflant dans des clairons et frappant des tambours,
Cria : « je saurai bien construire une barrière. »
Il fit un mur de bronze et mit Caïn derrière.
Et Caïn dit « Cet oeil me regarde toujours! »
Hénoch dit : « Il faut faire une enceinte de tours
Si terrible, que rien ne puisse approcher d'elle.
Bâtissons une ville avec sa citadelle,
Bâtissons une ville, et nous la fermerons. »
Alors Tubalcaïn, père des forgerons,
Construisit une ville énorme et surhumaine.
Pendant qu'il travaillait, ses frères, dans la plaine,
Chassaient les fils d'Enos et les enfants de Seth ;
Et l'on crevait les yeux à quiconque passait ;
Et, le soir, on lançait des flèches aux étoiles.
Le granit remplaça la tente aux murs de toiles,
On lia chaque bloc avec des noeuds de fer,
Et la ville semblait une ville d'enfer ;
L'ombre des tours faisait la nuit dans les campagnes ;
Ils donnèrent aux murs l'épaisseur des montagnes ;
Sur la porte on grava : « Défense à Dieu d'entrer. »
Quand ils eurent fini de clore et de murer,
On mit l'aïeul au centre en une tour de pierre ;
Et lui restait lugubre et hagard. « Ô mon père !
L'oeil a-t-il disparu ? » dit en tremblant Tsilla.
Et Caïn répondit : " Non, il est toujours là. »
Alors il dit: « je veux habiter sous la terre
Comme dans son sépulcre un homme solitaire ;
Rien ne me verra plus, je ne verrai plus rien. »
On fit donc une fosse, et Caïn dit « C'est bien ! »
Puis il descendit seul sous cette voûte sombre.
Quand il se fut assis sur sa chaise dans l'ombre
Et qu'on eut sur son front fermé le souterrain,
L'oeil était dans la tombe et regardait Caïn.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Nuvens esparsas (67)

Dinheiro não tem dono,
ele é que é dono de tudo,
de todos os mandantes ricos,  
e dos pobres, sobretudo.

De frieza sem tamanho,
ama o desigual e o desumano,
a ninguém presta contas
de mazelas deveras sem contas.

A miséria nada lhe causa de abalo,
dor na consciência, nem espanto,
porque nem de estalo toma ciência,
do sofrimento e mínima descência.

Pouco lhe importa e interessa
que o sangue escorra na terra,
que crianças morram às pencas,
de fome, em absurdas guerras.