quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Migalhas de Mim (20)


(Vieira falava difícil, e deixava fiéis estáticos.)

Se o que se propõe, como novidade,
pode se revelar mais facilitado,
por que, então, complicá-lo mais,
de modo a que se lhe dê sucesso
na ciência, com mais embaraço,
de modo a valorizar o autor e o ato,
do tecido acadêmico que se expõe?

Se a linguagem simples e natural
é mais acessível aos olhares neófitos,
complexificar o fácil, com mais ritual,
evitaria possível interesse da plateia,
pouco atenta, no geral, e até contida,
nas exposições de projetos com efeitos,
vestimenta de texto, ideias em contexto...

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Migalhas de Mim (19)


Matemática social:

Quanto mais se favorece,
ou mais se oferece, solícito,
menos se é agradecido,
com bons modos e preces,
falas ou propósitos explícitos.
Menos, ainda, se lhe compraz
com mínimos gestos de paz!

Quanto menos se empresta
favores ou dinheiro líquido,
com desculpa assaz ensaiada,
convincente e pouco loquaz,
o quanto e o tanto se for capaz,
mais os laços se estreitam,
mais os dissabores se afastam,
no diário exercício da paz!

domingo, 10 de novembro de 2019

Migalhas de mim (18)


Estive a pensar em silêncio,
e acabar por falar demais
e bem pouco escrevendo
o que, da obra, ainda me sobra,
para mais viver, ainda vivendo.

Às vezes, penso sem falar,
ou mesmo falar sem pensar.
Às vezes, em dias normais,
mais penso do que falo,
ou, até, mais falo do que penso,
e ficar, depois, a me perguntar,
se penso enquanto falo,
ou se, apenas,falo enquanto penso.

Assim é que me ponho a pensar
no já tantas vezes repensado,
para sempre voltar a quebrar silêncio
e a falar do resto amalgamado,  
a se compor nesse peito represado.

domingo, 3 de novembro de 2019

Migalhas de mim (17)


Meu banho de água morna,
quando o frio enrijece no rio;
meu sono leve e macio,
à espera do nascer do dia;
meu apetite do prato guarnido,
quente ou, até mesmo, frio;
meu carro de maior conforto,
a me levar ao mais seguro porto;
meu repouso sem transtornos,
meu bastante dinheiro no bolso
meu apurado prazer e gosto...

... meu cônscio sofrer latente
em saber dos que nem imaginam,
nem, parece, se importam
do tanto quanto se discriminam
os ignotos pobres seres humanos,
na fila infinda do desafino insano...!

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Migalhas de mim (16)

De nós dois, três ou mais
transeuntes, de passagem,
quem haverá de saber
de nossas viagens incertas?

Quem seguirá primeiro,
quem sucederá depois,  
sem um pouco previsto,
ou um tudo resoluto?

Alguns deixarão saudades,
outros, só esquecimentos,
do momento da partida,
do antes ou empós do luto.

Para onde iremos,
passageiros solitários,
sabedores do destino,
dos instantes peregrinos?

Quem decidirá do percurso,
incurso em rápidas passadas
de caminhadas flutuantes?
Ninguém, com precisão, garante.

Multiplicados os pontos
de reticências ou interrogações,
de cruezas próprias da natureza,
sem prorrogação e referências.

Em tão vastos firmamentos,
por vagas e eternas estradas,  
a mente é confusa, os pés no chão,
cada um a seguir vias de solidão.

domingo, 27 de outubro de 2019

Migalhas de mim (15)

Tempos atrás,
escritores escreviam
com a pena molhada
nas tintas do tempo,
que ora passava lento.

Viravam horas, dias, noites,
instantes, momentos,
viajavam manhãs,
fluxos das madrugadas,
asas dos pensamentos.

A criação galgava penedias,
tais as alturas das culturas,
as escrituras dos movimentos,
os tantos fervores dos amores,
os suores dos envolvimentos.

Corpo cansava, cabeça pendia,
braços moviam,
mãos e dedos doíam,
encolhidos de frio e ousadias,
as vontades ferviam.

Fossem, hoje, tais esforços,
com as máquinas do progresso
e da resultante tecnologia,
mais grandiosos os feitos, dest´Arte
mais monumentos se erigiriam.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Migalhas de mim (14)


O velho murcha,
em chão duro, a sol quente,
inelutavelmente,
como laranja chupada no pé,
bagaço, maracujá maduro.

A idade desfigura os dias,
carcome, impiedosamente
o corpo, há muito monumento,
a cabeça diminuída, esquecida,
as carnes do rosto macilento,
os olhos embaçados, fundos,
o nariz afilado, dependurado,
as orelhas de abas amareladas,
no vozerio do vento.

A boca fendida, de poucos dentes,
o queixo descaído, alongado,
o pescoço preso de barbelas e tiras,
o tórax arqueado de mirar o chão,
o peito seco, de fora e de dentro,
pernas, pés e mãos dominados,
braços sem ânimos e forças,
para apertos de esforços e abraços.

O centro de tudo desanima,
fica mudo.
Só o tempo permanece
intocado,
como sempre foi e será,
indiferente a tudo.

(Assim diz o velho,
demasiado lasso:
“quando não é uma coisa,
é outra” que rezo,
ladainhas de cansaços.)

sábado, 27 de julho de 2019

Migalhas de Mim (13)


Não acredito ter vivido
tudo o que já vivi.
Posso ter fingido,
e nem sei se consegui,
nem retribui, dos acertos,
tudo quanto não mereci.

Se pedaços de mim,  
em proporções, distribui,
se de meu suor, gotas doei,
se de todo o amor, amei,
se planos traçados cumpri,
nem bem sei!


Agora, o tempo passa e repassa,
pondo-me a ruminar passados
do que fiz ou de fazer deixei,  
por lugares onde dei de andar,
ou que, de tanto parar, me cansei,
em vagares que pouco mudei,
em observares a que me limitei.


quarta-feira, 24 de julho de 2019

Migalhas de mim (12)


Há momentos frequentes
em que nem se parece acreditar
no que a memória reserva,
ou obriga,
à procura de relembranças!

Passado não se fez sossegado,
nem presente terno, apaziguado,
ou futuro
já rumando a caminho findado,
com sentir pleno de relutâncias!

terça-feira, 9 de julho de 2019

Migalhas de mim (11)

Alguns realizam atos paredistas,
por melhores condições e salários,
dão caras a tapas e a balas,
sofrem na carne as dores,
de policiais milicos mercenários,
são mal vistos de pares oportunistas,
que escondem os corpos dos lanhos,
(como soem acontecer aos grevistas,
sempre mal quistos nos empenhos),
à espera dos resultados e ganhos
mesmo que ainda os considerem “tacanhos”

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Migalhas de Mim (10)

No Planeta XXYZ47727b+enesimos zeros,
o dia amanhece claro, assaz temperado,
sem que ninguém saiba ou indague
se já é janeiro ou dezembro,
segunda ou domingo, luas novas ou crescentes,
como em quase todos os planetas existentes,
nesses 707+mis zeros de distâncias em anos-luz,
que permeiam gases, matérias, astros e estrelas
de descomunais dimensões,
tais a ora imaginada hospedeira gigante,
XXYZ47727a+enésimos zeros, ad infinitum,
que aquece de calores conformes
a vida de seus enenúmeros habitantes,
que nada mais fazem de diferente,
senão viverem seus tantos fatores
de belezas e amores (sem feiuras),
de alegrias e deleites (sem tristezas),
de felicidades (sem agruras e doenças),
já preliminarmente programadas,
nas melhores hipóteses e fantasias,
assim na Terra nossa (sem carências),
como nos céus de todas as onipotências
e sinergias.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Migalhas de Mim (9)

O melhor da morte é,
(seria ou será?)
morrer, para viver
apenas uma vez?
Preciso é, 
(foi ou será?)
desocupar lugares,
onde espaços e tempos são
(foram ou serão?)
sempre mais infindos
e não apenas momentos
de se viver e morrer
a chorar, ou só rindo?

domingo, 9 de junho de 2019

Migalhas de Mim (8)


Riamos, um pouco,
do tempo,
que não nos perdoa
rugas,
lapsos de memória,
quedas e agruras,
inglórias,
para que admitamos
seu poder
de, sem tergiversar,
sempre nos vencer.

domingo, 26 de maio de 2019

Migalhas de mim (7)



Mimi

Le temps passe, eu passo, passamos
por onde nascemos, por onde andamos,
lá, onde tudo tinha que ser.
Mimi conosco passa, naturalmente,
como passam os passarinhos,
da segunda à terceira idade,
sans perdre la majesté.

O tempo tranquilo se mudou,
para o lado esquerdo do peito,
onde a saudade deixa devedores
le numéro 2, Place Edmond Rostand,
le Quartier Latin, la Sorbonne, le Boul´Miche,
les jardins du Luxembourg et alentours.
Não serão mais o que já foram
os tempos atrasados.

Do térreo às sobrelojas,
du premier au second étage,
às vezes, até, ao quinto andar,
(où la noblesse décadente
não encontrava guarida... e definhava),
tudo era vida, vaivéns de estudos,
vontades demais, naqueles lugares de paz.

Nos anos setenta, em Paris,
(toujours éblouissante),
a seiva subia e descia escadarias,
num repente, de correrias, afazeres,
du rez-de-chaussée aux cheminées,
des chambres de bonnes
aux temps passés.

Hoje, a se ver de longe, os olhos míopes,
a janela e seu balcon se quedam desertos,
parecem vazios, sem vida e juventudes,
cheios de lembranças, ferros e alvenarias.
(Mimi mudou-se, para longe dali
dos jardins e das inquietudes
de la Grande Ville.)

Pâtisseries,Terrasses et  Cafés
cercados, esperam reformas
de recém-chegados donos.
Ares se inspiram de novos rumos,
diferentes rostos, roupagens várias,
de la mode et des nouveautés.

A alma, talvez, já desgastada,
de energias passadas, se vê desanimada.
Os tempos são outros, também mudados.  
Cependant, a neta do saudoso visitante, 
pleine de viese prépare déjà: 
-Bonjour Mimi, ça va?

(à Madame Lajous – Mimi para os íntimos)

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Migalhas de mim (6)


Foram-se os parnasianos,
simbolistas, cubistas, outros istas,
amarrados a camisas de força,
em belas telas, esculturas,
estilistas de treliças.

Agora, nos vastos horizontes,
o ar puro, os livres ventos,
inúmeras aventuras, adventos,
por montes, relentos, alturas,
solturas pros artistas.

sábado, 27 de abril de 2019

Migalhas de mim (5)

A casa avoenga era movimentos,
quando dávamos de chegar,
sem cerimônias e pré-avisos.

No mais, no vagar dos dias,
silêncios, solidão-solidões,
relógio batendo horas em vão,
vaguidão, sem disparar o tempo,
no enorme tabuado do salão,
de não se poder esquecer
limites de estações, emoções,
acertos, enganos, sensações,
anos e anos de tardanças, 
no revigorar dos ânimos.

Foram-se os tempos,
restaram-se os ânimos,
a apascentar lembranças!

domingo, 14 de abril de 2019

Migalhas de mim (4)

Quantas cascas vou largando
por terrenos baldios, esparsos,
por onde passo,
ora agitado, ora sereno,
costeando existências várias,
eterno alieno?

Tantas quantas, talvez,
de minhas infinitas moradas
me permito paragens
mais ou menos curtas,
menos ou mais longas
discrepâncias tais.

Agrada-me pensar
em diferentes amanhãs
a que me conduz o tempo,
de quantos percalços e achados
que vou recolhendo,
no afã dessas viagens.

Esta agora, por exemplo,
mais uma nova experiência
de luta, de voragem, de vida,
nessa visão absoluta de referências,
de insistentes entradas,
vistos permanentes e saídas.

Não deverei ter sido, até aqui,
tão cordato, ou mesmo ingrato,
no deslizar-me de peles e ossos,
por esses vales e precipícios,
à procura de infinitos convívios,
largura de espaços!

Sempre peço que me retire
dos braços, essa insignificância,
que me soa como pena,
mas que me redime de fadigas,
de culpas, castigos determinados
por força total, sidérea ou terrena.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Migalhas de mim (3)


Avignon

Os papas comiam carne
no sábado e no domingo,
e na segunda e na terça,
e na quarta e na quinta.
Na sexta, como lenimento,
jejuavam do gordo
e do cruento farto sustento.

Sob as coifas da palaciana cozinha,
limpavam a consciência,
para olharem nos olhos baços
dos fiéis pobres, miserentos,
que não comiam carne
no sábado e no domingo,
e na segunda e na terça,
e na quarta e na quinta,
e jejuavam na sexta, 
contentando-se com pão bolorento.

Estes não podiam pecar por gula,
nem pelos outros pecados capitais,
que levavam os descrentes ao inferno,
em atendimento às bulas papais,
na dura conquista dos céus imortais.

Na quaresma e na semana santa,
os bois diários do churrasco sangrado
transmudavam-se em peixes,
animais de pouco sangue frio,
para não se lembrarem 
das santas chagas cruéis
de Jesus Cristo, crucificado
por querer acabar com a fome
e as dores dos homens necessitados.

Pobres seguidores, penitentes,
desassossegavam a consciência
dos ricos e nobres bem nascidos,
de almas dormentes, mãos lavadas,
que não jejuavam o suficiente,
a se espelhar nos pecados da carne,
sob púrpuras, bem escondidos,
mas ditavam restritas normas,  
às humildes mentes contritas.