domingo, 29 de janeiro de 2012

Pensares a conta-gotas (63)


Prefiro um não,
De coração emotivo,
A um sim sorridente,
Sem motivo aparente.



 (poema possessivo)

Tu me dás o dedo, quero a mão,
Me dás a mão, quero o braço,
Me dás o braço, quero abraços,
Me dás abraços, quero beijos,
Me dás beijos, exijo coração,
Que já não mais me contento
                   Só com envolvimento, sem emoção.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pensares a conta-gotas (62)

Na ampulheta do tempo,
A areia consome
As Idades do homem.

“Setenta anos é o total de nossa vida. Os mais fortes chegam aos oitenta. A maior parte deles, sofrimento e vaidade. Passam depressa e desaparecemos.” (salmo 89 - v.10)

De grão em grão de areia,
de hora em hora na bateia,
de dez em dez de vida
corrida e cheia
passam o homem e as idades.

De zero aos dez,
muita avidez no sustento;
dos dez aos vinte,
igual requinte, nos desejos;
dos vinte aos trinta,
o ímpeto pinta e repinta;
dos trinta aos quarenta,
mais o corpo se esquenta; 
dos quarenta aos cinqüenta,
a pressa, em fogo, aferventa;
dos cinqüenta aos sessenta,
o ânimo arrefece, mas enfrenta;
dos sessenta aos setenta,
a fragilidade se apresenta;
dos setenta aos oitenta,
a idade racha ou agüenta;
dos oitenta aos noventa, 
tudo se complementa;
dos noventa aos cem,
a vida vira desdém;
Além dos cem,
o homem é sequaz
do viver incapaz.
                   Para quê mais?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pensares a conta-gotas (61)

7

De manhã: um até !
De tarde: até lá!
De dia: até já!
De noite: até mais!
Da vida: jamais!


8


Em um dia:
Um agora, ora!
Em dois:
Um ontem.
Um amanhã.
Em três:
Um, ainda, ontem!
Um, quem sabe, hoje!
Um, talvez, depois!


9


Em razão de dias: revelias.
Um te vejo após.

Em semanas: uma fase.
Até breve!
Até logo!
Até sempre!
Até à vista!
Até mais ver!
Um até quase!
Um adeus, bem grave!


10


Em um mês: talvez!
Em um ano: engano!
Em um lustro: susto!
Em uma década: eureka!
Em um século: longe eco!

11


Em uma vida,
O tempo é infante,
lusco-fusco intermitente,
lampejo ardente,
algo mais adiante,
um adeus somente!

Pensares a conta-gotas (60)

Com o passar do tempo, tempo, tempo!
“... ao dela, o relâmpago seria um século” (...)
“para descrevê-la, seria preciso fixar o relâmpago.” (...)
“Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem.” (Brás Cubas, M.A.)

1

O tempo, sem tempo,
Sem volta, revolta.
Pra frente, vara,
Pra trás, não rola.
Os fatos, devora.

Não vive, não morre,
Não desce, não sobe,
Não vira, não soma,
Não tira.

Parece parado,
Mas corre e mais corre.
Como corre, desbragado,
Tão sôfrego, o danado!

2

O tempo é sem data,
Nunca foi, nunca é,
Nunca deixará de ser.
Mesmo sem parecer,
É eterno inimigo,
E não findará comigo.

3

“O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo tempo ou o seu saber ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada”. (Padre Antônio Vieira, História do Futuro, Ed,. UnB, p. 121)

O tempo que passa,
Não passa de invento,
Bem humano.

Deixa em desgraças,
Ou em desenganos,
Tantos anseios insanos.


4


Quisera ter, ao menos, o direito,
O mínimo ensejo manifesto,
De abstrair o tempo, afastá-lo,
Elidi-lo, em meu próprio proveito.


5


De ano em ano
Até os sessenta
Contei os anos.
De pra lá,
Contarei meus jás.
Por mais lassos,
Desandarei meus passos
Com o apagar
Dos traços e enganos.


6


O tempo corre,
Escorre a vida.
Morre o amor,
A gente finda,
E calado sofre,
Bem mais ainda.




sábado, 21 de janeiro de 2012

Pensares a conta-gotas (59)

O corpo
se forma
e se deforma na rotina
da lide.

Mas, quando colide,
se transforma na reforma,
e não segue
duradoura norma.




Vive de poucos alentos
Prossegue a modo do vento
Correndo montes e vales
Liberta os pensamentos
E os mais ralos intentos.





Não se apega às fórmulas
do natural ego-ismo.
Altruísta, se segura, sim, às formas
de não estar conforme
aos enormes outros ismos.

Contos contados de Minas (35)

             O canto da sabiá

            A sabiá cantou, e quando a sabiá começa a cantar, demora a parar. O bichinho tem fôlego comprido, o peito roxo de paixão demorada. Entretanto, o Vevê põe-se em tristeza, as lembranças começam a despertá-lo e o empurram para a bandeada vida. E, aí, não mais consegue ficar em casa, cumprindo saudade aprisionada por cima de cama em meio a lençóis e cobertores desfeitos. Comicha o coração, que parece querer lhe sair pela boca seca de tanto tentar esquecer não sabe bem o quê. Só sente um pinicar-lhe, por dentro, no peito.
            Umas voltas pelo largo do povoado aliviará seu desassossego e o levará, forçosamente, em direção à maldita venda, onde, sabe, com toda a certeza, não resistirá à tentação do convite de quem lá já terá chegado primeiro: “Vamo tomá uma?” E aí tomará uma, depois duas e depois umas, já esquecido da conta e do que lhe acontecerá depois.  Sabe-se fraco. “O bom é a tonteira. Da pinga, mesmo, nem gosto sinto”. Só sente no corpo as dores do dia seguinte, quando lhe começa a moer o corpo por tudo quanto é lado, e a cabeça mareia e a boca pede água de tão seca. O jeito é ficar na cama, olhar pro teto sem saber bem o lugar onde está.
            O dia custa a passar e lá vem a sabiá de novo com seu canto comprido e triste: “fia fino, fia grosso, ti´Antoio, fia fino, fia grosso, ti´Antoio”. O coração amolece diante de tanta beleza, com as tristezas misturadas pela vida. É saudade que chega não se sabe de onde, nem de quem. É o tempo que passa e demora a passar, para, quando chegar a perceber, já a barba cresceu, o cabelo pintou e a vaidade se foi sem poder voltar.
            No “Pinga-Fogo” é sempre assim. A venda enche nos finais de semana. Os homens vão chegando como que não querendo nada. Os que chegaram primeiro, já entornaram o copo e enxugaram a boca na manga da camisa. Ainda não soltaram as palavras, que ficam presas lá dentro, forçando passagem para sair. Depois do segundo gole vão ficando alegres, e começam a dizer coisas sem muito sentido, que eles mesmos acham graça.
            O vendeiro, pela força de servir os que vão chegando, de detrás do balcão, parece querer dar o exemplo de como enxugar, nos conformes, os copos de fundo grosso. E é um, e é dois, e é três que não tem indez, e faz como os que pedem mais uma, sem mencionar a qualidade da cachaça. No final, também ele se sentirá perdido, como seus clientes, caído sem ser na rua, mas no sofá da própria casa. Aí, entra a mulher para continuar o ramerrão da lida da venda, sustento da família. ”Êta, vida marvada”!
            O tempo, sempre o tempo, devagar, por demais, nos finais de semana! O Vevê não para de beber e já não pensa em comer. A fome não vem, e ele vai enfraquecendo, a cabeça e as pernas. Vem a magreza, e as veias vermelhas começam a marcar-lhe o rosto, riscar-lhe de azul, bem por sobre o nariz.
            E a sabiá canta, que canta, sem nem limpar a garganta. Agora é um casal que escolheu justo o seu quintal para arrumar um lugar de criar a família, numerosa. Serão mais sabiás para cantar, convidando a alma do Vevê a perambular e a passar diante da venda, à espera do convite, que a solidão há anos lhe vem fazendo. Quando a sabiá não canta, o silêncio é que, certamente, o levará ao passeio solitário e premente. “Fia fino, fia grosso... ti´Antoio”!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (34)

Cochilos na rodovia 

A rodovia veio bem mais tarde, asfaltada e de muito movimento, como não poderia deixar de ser, nesses tempos de velocidades e progressos. O betume só costuma chegar depois de muita insistência, ou quando a poeira começa a arder os olhos de algum político que por ali trafega, em busca de sufrágios para pretensões de vida longa, junto aos poderes centrais. É sempre assim, cozinha-se o galo até que peles e carne se soltem dos ossos. Depois, vem o sujeito, para comer o guisado, às pressas, quente ou frio, e jogar fora o resto. Não se pode é deixá-lo comer de barriga cheia, já que, embora provindo do povo, do dinheiro sempre sobra um tiquinho para algumas boas causas, como estradas e transportes, mesmo em lugares deserdados. A civilização avança e deixa, também, muita lambança. Convenhamos..., até quando?
Entrementes, lá vinha o Seu José no seu cavalinho esperto, melhor do que qualquer carro a gasolina do trânsito recente. Com o balanço do Roxinho, rebento da égua castanha, mansa e boa de sela, quase nascida na fazenda, a delícia do percurso era completa. Podia sentir o tempo passar, os minutos virarem horas e as horas comerem o dia, a saúde suprir o almoço, e a paisagem fazer-se saborosa sobremesa de um viver em paz. Aquele transcurso era rotineiro. Seu José, passado dos cinqüenta, vinha à cidade para matar saudade da mulher e dos filhos, já quase adultos, indagar se não faltava alguma coisa em casa, arrumar algum “negocinho” e montar no Roxinho para o retorno à fazendinha que possuía, ali, nas imediações de Mateus Leme, lá nas Minas Gerais.
Êta cavalinho de andar gostoso! Quando ganhava a estrada, então, podia-se soltar as rédeas que ele rompia ligeirinho, rebolando-se todo. Conhecia o caminho e o dono, e sabia bem o motivo de fazer o tempo encurtar mais na volta do que na ida. O Roxinho parecia encontrar mais fôlego, como é fácil de compreender. Tudo na vida se guia pelos interesses, também chamados de motivações. O capim, a água fresca e a sombra dos mangueirais não podiam ser mais do que recompensa. Também, o bom trato e o carinho que Seu José lhe dedicava.
Mas, o que se conta, aqui, não é o ânimo do cavalinho, e, sim, o sentido prazer do seu dono. Seu José, o tinha como meio preferencial de locomoção e deleite de cavalgá-lo.
Antes da arrumação do asfalto, a estrada tinha menos movimento. Depois, compreensivelmente, foi ficando mais trafegada, os tufos de poeira desapareceram com as pressões aos políticos para o calçamento. O tempo, também, foi passando na proporção que engrossavam as pernas do Roxo, esquecidas dos calcanhares de Seu José. Somente as vindas e idas, da fazenda à cidade e da cidade à fazenda, nos passos cadenciados do Roxo, não mudavam. A travessia da estrada, também, se dava sempre no mesmo lugar e nos dias rotineiros.
Entretanto, como tudo na vida, o tempo corre mais ou menos conforme os meios de transportes usados, se pernas, se cavalos, se carros, se caminhões ou aviões. Ali, no caso, eram as pernas do cavalo e do cavaleiro que entravam nos compassos da dança. Tudo no seu tempo de pouca pressa, que a vida devia esperar, para passar devagar.
Assim, cavalo e cavaleiro foram se acostumando com a rotina dos dias e do ritmo das andanças e travessias. Seu José ia ficando mais cansado e o Roxo mais vagaroso, sem, contudo, descuidar da vida de ambos, cada vez mais perigosa, por causa do movimento no asfalto. Caminhões era o que mais se via por aquelas bandas. Mais ralos, porém mais velozes, os carros de passeio. No lugar da poeira e do rumorejar do vento de antigamente, gazes e fuligem dos canos de descarga a cozinhavam-lhes os olhos e ensurdeciam-lhes os ouvidos. O cavaleiro parecia desconhecer tais perigos, e o sono já lhe pesava as pálpebras. Desde a saída da cidade, o balanço do tempo insistia em minguar-lhe os anos. Mas pregava as mãos nas rédeas do animal, quase que só para não se desequilibrar da sela, e deixava o cochilo vir tão certo como a chegada do Roxo à fazenda, o desarrear do animal, que, já de longe, sonhava com suco do meloso ou do remanescente jaraguá.
Um dia, Seu José chegou à casa, na cidade, contando vantagens do já, agora, cavalo. Atravessara a rodovia, sem que se desse conta do acontecido. A mulher danou e os filhos se zangaram, falando que chegara a hora de o pai parar com aquele costume de ir e vir à cidade, a cavalo. Mas ele resistia com a mesma convicção que o sono lhe apertava as pálpebras, nas travessias da rodovia. Ele relatava e gabava a astúcia do Roxo, cada dia mais passado para Roxão, com as vitaminas do meloso e do jaraguá trabalhando-lhe os músculos e as adiposidades do corpo, preguiçosamente.
Outro dia, contou o pai, quando acordou da sonolência, o Roxão, mal tirara a pata traseira do acostamento da estrada, um vento açodado de caminhão lhe fizera voar o chapéu para bem longe, na macega do mato próximo. Desta vez, mulher e filhos bateram com o martelo. Acabou-se a festa, Seu Zé. De agora em diante, se o pai quisesse ir e vir no conforto do balanço teria que ser acompanhado, e, assim mesmo, em transporte movido a petróleo. Esquecesse o cavalo, que a ele seria dado o prêmio merecido pelas boas travessias, sem qualquer acidente nas empreitadas. Melhor acabar com o amor ao animal, do que dele cair, ou ser atropelado, para tristeza de todos. O Roxão recebeu aposentadoria, remoeu capim gostoso, e Seu José poltrona macia, com travesseiro de boas lembranças.
           Parece que, com cavalo, é assim: quanto mais velho, mais sabido, apesar das forças das pernas minguadas. O que se perde de vigor, ganha-se em velhacaria, que tem etimologia correta, de experiência da vida. Disso é avalista outra animália sonolenta, pintada no pelo de “sementinhas escuras em rama rala e encardida”, propriedade de um renomado e fabulista João Fabuloso.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (33)

            Cine-grátis


A criançada ficava alvoroçada, quando o carro de som passava pelas ruas da cidade, anunciando, para aquela tarde, na praça da cidade, a projeção de mais filmes, grátis. Nem ao menos conhecíamos o que significava aquele “grátis”, mas corríamos para a praça dos boiadeiros, soltos como a imaginação.
Assentávamos no chão, diante de uma tela fixada a um poste, e assistíamos a filmes do Mazzaropi, de Charles Chaplin, do Gordo e o Magro, dos Três Patetas ou, sabe-se lá, de quem ou sobre o quê mais. Quaisquer imagens projetadas na tela nos divertiam. Depois, voltávamos para casa, de alma leve e a cabeça ao vento, desconhecendo distâncias e cansaço. As idéias fervilhavam e iriam trabalhar nossas mentes para o resto da vida. Por algum tempo, permanecíamos, assim, no aguardo de novas passagens do carro de som, ou de algum menino que viesse propagar antecipadamente: “hoje tem cine-grátis”.
Importante, também, era a magia que o próprio nome “cine-grátis” exercia, que os filmes e seriados da matinê dos domingos, nas salas de cinema da cidade, nada tinham de tão atraente. E não era todo mundo que podia freqüentar aqueles recintos confortáveis. Muito menino teve no “cine-grátis” sua iniciação nas artes do cinema mudo e, até, de vez em quando, falado.
O operador devia ser um amante do cinema, de cujas preferências e intenções quase ninguém podia estar ciente, naqueles lugares distantes dos centros urbanos mais civilizados. se sabia que um carro velho com alto-falante, de quando em quando, passava pelas ruas anunciando “cine-grátis” para a meninada. Do responsável pela iniciativa, pouco se sabia ou se procurava saber.
Muitos anos, mais tarde, se soube, que ele, o ilustre e incógnito distribuidor de cultura gratuita, quando não tinha filmes para fazer o de que mais gostava, espalhar o prazer da arte cinematográfica, emendava pedaços de filmes, que acontecia ter que cortar, e os projetava para não privar de alegrias o seu público, sem deixá-lo na mão, mesmo desconhecendo suas artes e manhas no cumprimento despojado de um dever seu.
Para aquelas crianças, o enredo, a trama, não era o que mais interessava. O bom consistia em sair alvoroçados para a praça e aguardar impacientes a exibição dos filmes, mesmo que fossem simples imagens desconexas projetadas na tela. A ligação comCinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, faz-se de imediato, que o célebre filme italiano surgiu tempos bem depois daqueles idos dos anos 50.
           A criatividade daquele artista, anônimo e distante, que, consciente ou  inconscientemente, tanto despertou o nosso imaginário e fantasias, que, provavelmente, antecipavam de alguns anos o prazer das artes das imagens em movimento, deve ser reverenciada. Talvez, agora, ao colocarmos um DVD em nossos, cada vez mais modernos aparelhos de projeção, e ao nos instalarmos, confortavelmente, em salas particulares de cinema, nem mais nos lembremos de um homem abnegado, de saudável e saudosa memória, que nos levava a sonhar, quando o sonho ainda privilegiava poucos felizardos da sorte e do dinheiro. O “Cine-grátis” da praça era uma sala ao ar livre do cinema Paradiso, lá da distante Sicília.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (32)

Surra de caba e picadas de abelhas 

Minha mãe ouvira dizer que picadas de abelha curavam reumatismo. experimentara quase todos os remédios que as pessoas em geral lhe prescreviam, mas as dores nas juntas persistiam. provara de um pouco, o tudo: banha de cobra cascavel, sebo de carneiro, manteiga de capivara, carne de tamanduá bandeira, e não deixava de fomentar as articulações com o de perdiz embebido em álcool ou cachaça alcanforada. Esses e tantos mais remediozinhos caseiros, rezas e ungüentos, ela dizia terem sido os responsáveis por continuar existindo até aqueles mais de oitenta anos. Mas se algum alívio sentia, de pouco adiantava, embora continuasse a dizer que acreditava mais nos seus remédios, de folhas ou raízes, do que nos de farmácia, receitados por doutor que pouco entendia de dores, sobretudo em caso de necessidade primeira.
Um dia, enquanto secava ao sol o polvilho no jirau, observara as abelhas vibrantes, na procura do amido para seu fabrico de mel ou resina. Veio-lhe à idéia, então, o tal remédio, ensinado por alguém, de quem não mais se lembrava, como lenitivo de suas dores de reumatismo: as ferroadas de abelha ou de marimbondo. Foi aí que começou a irritar-lhes a paciência, para ver se  reagiam e lhe aplicavam as receitadas picadas. Mas as abelhas estavam distraídas no seu que-fazer e não correspondiam à provocação. O que ela não sabia é que elas não tinham nenhum motivo de ferroar alguém, gratuitamente, uma vez que se condenariam à morte por nada, coisa só faziam para o bem da comunidade, e ali não era o caso.
, minha mãe exagerou na dose dos desaforos e começou a espremer algumas delas que não tiveram outra escolha senão aplicar-lhe umas quatro ou cinco boas aguilhoadas na pela fina das extremidades superiores. Ela sentiu o quão caro saiu-lhe o remédio. Suas mãos ficaram em fogo e o inchaço demorou dias a desaparecer. O reumatismo nem tanto, ou, talvez, um pouco mais de tempo.
Essa lembrança faz-me contar, também, outra experiência com picadas de abelhas, mas desta vez com vespas, ou marimbondos, que em alguns lugares dessa vastidão de terras e línguas, são também conhecidos como abelhas, sem quaisquer simpatias.
Isso foi no Acre, nos idos de setenta e oito. Mostrávamos, orgulhosos, os arredores de Rio Branco a um professor que viera ministrar um curso de lingüística. Como o clima exigia, naqueles recantos amazônicos, vesti-me com bermuda e camiseta para o passeio de descontração. pelas tantas, passamos diante de uma propriedade rural que ostentava um belo exemplar de pé de manga. Quase ao alcance da mão, uma manga madurinha, e.... única, como que dizendo “apanha-me, por favor!”. Resolvi colhê-la, logo, para demonstrar ao visitante que a natureza, por ali, também, era pródiga.
Assim, pulei e dei um tapa na tentação, naquela ostentação de desafio, não sem razão. De fato, ela ocultava uma caixa de marimbondos, que ao se sentirem atacados, não tiveram outra reação senão a de agredirem o agressor, e descerem como numa nuvem negra sobre sua cabeça e onde mais encontrassem espaços desprotegidos de pano. Saí rolando ladeira abaixo, dando-me, desta vez, tapas por onde alcançavam as mãos, na esperança de espantar os tais venenosos insetos.
Felizmente os marimbondos não eram dos mais perigosos, e, eu, não alérgico. Também, pouparam-me o rosto, embora nuca, costas, tronco, pernas tenham ficado como em fogo. Umas duzentas picadas pareceram razoáveis ao funcionário da farmácia, onde comprei um caladril que me aliviou um pouco o efeito do veneno daqueles insetos. Um termo e uma expressão lingüística foram-me acrescentados ao vocabulário acreano, dos quais, dificilmente, vou me esquecer: “levar uma surra de caba”.
Voltando, ainda, ao assunto de picadas de abelha, uma dessas simpáticas criaturinhas apareceu-me, um dia, em visita na biblioteca, enquanto viajava por entre livros. Parecia perdida, atrás de um cheiro açucarado qualquer. Não trazia sinais de irritação, nem vontades agressivas. Propus-me, então, a desviar a atenção do que estava fazendo, e, sem outra inspiração para o momento, resolvi oferecer-me uma injeção de veneno de abelha. que não sabia como fazer e onde aplicar o tal remédio, tampouco, o lugar do corpo em que doesse menos. Como não me encontrasse, desta vez, de bermuda, levantei a perna da calça além do joelho, por julgar que a pele que cobre a rótula, seria o lugar mais infenso à dor. Além de tudo, a barra da calça, àquela altura, poderia enforcar a circulação, e diminuir a dor que, já sabia, viria, de algum modo, intensa.
Peguei a pobre abelhinha, que estava por ali ainda perdida no seu zumbir inofensivo, e obriguei-a a desferir o seu dardo, que a natureza tão bem soube confeccionar, para que, ao entrar na pele do agressor, não saísse, a não ser trazendo consigo parte do intestino do animalzinho. E, assim, foi. Passada a dor inicial, uma vermelhidão foi se formando ao redor da picada, Não inchou muito, porque o local não era de muita adiposidade, mas, nos dias seguintes, fiquei que não podia andar direito, tamanha a dor na articulação.
Se veneno de inseto, abelha ou caba, for mesmo bom para reumatismo, posso estar seguro de que este não me atingirá tão cedo. Valha-me Deus e Nossa Senhora da Ajuda, que passei a respeitar esses bichinhos tão temidos, até por animais de grande porte. Benfeitores na Natureza, como muitos outros.
           Anos depois, mais de oitocentos quilômetros do caminho de Santiago de Compostela parecem ter ilustrado os benefícios de tais remédios doloridos. Também, os biscoitos de minha mãe continuam sendo confeccionados com o polvilho que ela própria fabrica, horas e mais horas, em pé, secando-o ao sol. Só não me lembro mais de ouvir contar que abelhas continuam sendo sacrificadas pelos tais remédios poderosos. Quanto a mim, se me ocorre receber alguma abelha em casa, abro-lhe, gentilmente, a janela e desejo-lhe boa sorte entre as flores da Natureza.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (31)

A Mulher de pau

A vida nos reserva fatos que mais nos fazem relembrar do que esquecer. Por isso mesmo difíceis de se calar ou de não se escrever. Um desses foi o ocorrido, há tempos, em um recanto mineiro, que, não fossem os preconceitos sociais de colorações diversas, nenhuma repercussão teria merecido. Mas vamos ao caso, que tardar seria menos falta de complacência que de clemência.
A notícia correu a cidade: um homem tinha sido preso, e o crime caracterizava atentado ao pudor e aos bons costumes. O acusado, morador na roça, sozinho, desgraçado da sorte, vivia isolado dos demais seus congêneres. Seus hábitos arredios pareciam excêntricos, e acabaram por chamar a atenção dos vizinhos. Algum moleque, à surdina, foi inspecionar o que o ermitão fazia em casa, naquela solidão de casebre de telha colonial e janela de tábua frestada, o mais das vezes fechada. E o olhar do curioso pôde divisar o que dentro se passava. O esquisitão confeccionara uma mulher de pau, de tamanho natural, tosca, que expunha na altura da genitália, um avantajado óstio. Por ali, satisfazia as necessidades, quando carecia de carinhos.
Mas, se isso, por si , poderia dar o que falar, o que chamou mais a atenção das pessoas, que passaram a comentar maliciosamente a descoberta, foi o artifício que o solitário inventara, para aproximar-se mais da realidade fisiológica e aumentar-lhe o prazer do ato. Ele esquentava na panela de ferro, na trempe da fornalha, um preparado de mamão ralado e o colocava no orifício apropriado, para dar àquele corpo de madeira, inerte e frio, o calor que lhe fazia lembrar o de corpo humano, que ele, talvez, nunca pudera, ou nem mais pudesse, ter a seu lado. Somente a fantasia poderia se encarregar de atribuir vida a objeto tão mal esculpido, e completar-lhe as formas, para o que se prestava.
Enquanto isso, insatisfeitos com a pouca divulgação de tão inusitado fato, nascido de um tão bem resguardado segredo, os moradores do lugarejo deram com a língua nos dentes em lugares mais adensados. Foi como espalhar ao vento as penas de um pato gordo. Corrida a notícia, a polícia foi instada a prender o ardiloso acusado. Seu crime merecia a execração pública, já que satisfazia suas naturais carências de prazer, com os tais engenhosos artifícios, no lugar de procurá-los, como todo mundo, nas bênçãos dos altares, cartórios ou lupanares.
Agora, o acontecido nada mais servia do que proporcionar prazeres às imaginações de pessoas de cabeças tão ocas quanto o buraco cavoucado no tal manequim de madeira. Naquela altura dos acontecimentos, nem as divindades seriam capazes de recolher as plumagens esvoaçantes da difamação. Talvez um Freud fosse capaz de explicar o quanto o ser humano carece de satisfazer as humanas necessidades, e ser o sexo, assim, tão indispensável, para regular o equilíbrio humano, tanto para os que o tem em profusão, quanto para os que dele carecem em perdição. Os sex-shops e a filmografia correlata, com tão grandes presenças e inovações nos dias correntes, poderiam ilustrar melhor esta busca de respostas para tais indagações.
Do fim que deram ao desequilibrado homem não se tem notícias. Presume-se que o coitado tenha sido solto, regressado ao seu abrigo, para gáudio das malícias e maledicências de quantos desconheceram as saudáveis regras da convivência dos contrários e dos carentes.
            Quem sabe, também, sua mulher de pau não tenha vindo servir de consolo para alguns daqueles piedosos detratores que o condenaram com tanta veemência e presteza. Ou, então, para aqueles que o assistiram detrás das grades, carentes de carinhos, que a liberdade do ir e vir pode conceder. Ou, até mesmo, tenha servido de inspiração a fabricantes de objetos infláveis, ou siliconizados, para um comércio cada vez mais delirante, à procura de sanar disfunções de mentes despossuídas de aconchego e consolo! A complexidade das almas comunga com sua intolerância inata