quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (34)

Cochilos na rodovia 

A rodovia veio bem mais tarde, asfaltada e de muito movimento, como não poderia deixar de ser, nesses tempos de velocidades e progressos. O betume só costuma chegar depois de muita insistência, ou quando a poeira começa a arder os olhos de algum político que por ali trafega, em busca de sufrágios para pretensões de vida longa, junto aos poderes centrais. É sempre assim, cozinha-se o galo até que peles e carne se soltem dos ossos. Depois, vem o sujeito, para comer o guisado, às pressas, quente ou frio, e jogar fora o resto. Não se pode é deixá-lo comer de barriga cheia, já que, embora provindo do povo, do dinheiro sempre sobra um tiquinho para algumas boas causas, como estradas e transportes, mesmo em lugares deserdados. A civilização avança e deixa, também, muita lambança. Convenhamos..., até quando?
Entrementes, lá vinha o Seu José no seu cavalinho esperto, melhor do que qualquer carro a gasolina do trânsito recente. Com o balanço do Roxinho, rebento da égua castanha, mansa e boa de sela, quase nascida na fazenda, a delícia do percurso era completa. Podia sentir o tempo passar, os minutos virarem horas e as horas comerem o dia, a saúde suprir o almoço, e a paisagem fazer-se saborosa sobremesa de um viver em paz. Aquele transcurso era rotineiro. Seu José, passado dos cinqüenta, vinha à cidade para matar saudade da mulher e dos filhos, já quase adultos, indagar se não faltava alguma coisa em casa, arrumar algum “negocinho” e montar no Roxinho para o retorno à fazendinha que possuía, ali, nas imediações de Mateus Leme, lá nas Minas Gerais.
Êta cavalinho de andar gostoso! Quando ganhava a estrada, então, podia-se soltar as rédeas que ele rompia ligeirinho, rebolando-se todo. Conhecia o caminho e o dono, e sabia bem o motivo de fazer o tempo encurtar mais na volta do que na ida. O Roxinho parecia encontrar mais fôlego, como é fácil de compreender. Tudo na vida se guia pelos interesses, também chamados de motivações. O capim, a água fresca e a sombra dos mangueirais não podiam ser mais do que recompensa. Também, o bom trato e o carinho que Seu José lhe dedicava.
Mas, o que se conta, aqui, não é o ânimo do cavalinho, e, sim, o sentido prazer do seu dono. Seu José, o tinha como meio preferencial de locomoção e deleite de cavalgá-lo.
Antes da arrumação do asfalto, a estrada tinha menos movimento. Depois, compreensivelmente, foi ficando mais trafegada, os tufos de poeira desapareceram com as pressões aos políticos para o calçamento. O tempo, também, foi passando na proporção que engrossavam as pernas do Roxo, esquecidas dos calcanhares de Seu José. Somente as vindas e idas, da fazenda à cidade e da cidade à fazenda, nos passos cadenciados do Roxo, não mudavam. A travessia da estrada, também, se dava sempre no mesmo lugar e nos dias rotineiros.
Entretanto, como tudo na vida, o tempo corre mais ou menos conforme os meios de transportes usados, se pernas, se cavalos, se carros, se caminhões ou aviões. Ali, no caso, eram as pernas do cavalo e do cavaleiro que entravam nos compassos da dança. Tudo no seu tempo de pouca pressa, que a vida devia esperar, para passar devagar.
Assim, cavalo e cavaleiro foram se acostumando com a rotina dos dias e do ritmo das andanças e travessias. Seu José ia ficando mais cansado e o Roxo mais vagaroso, sem, contudo, descuidar da vida de ambos, cada vez mais perigosa, por causa do movimento no asfalto. Caminhões era o que mais se via por aquelas bandas. Mais ralos, porém mais velozes, os carros de passeio. No lugar da poeira e do rumorejar do vento de antigamente, gazes e fuligem dos canos de descarga a cozinhavam-lhes os olhos e ensurdeciam-lhes os ouvidos. O cavaleiro parecia desconhecer tais perigos, e o sono já lhe pesava as pálpebras. Desde a saída da cidade, o balanço do tempo insistia em minguar-lhe os anos. Mas pregava as mãos nas rédeas do animal, quase que só para não se desequilibrar da sela, e deixava o cochilo vir tão certo como a chegada do Roxo à fazenda, o desarrear do animal, que, já de longe, sonhava com suco do meloso ou do remanescente jaraguá.
Um dia, Seu José chegou à casa, na cidade, contando vantagens do já, agora, cavalo. Atravessara a rodovia, sem que se desse conta do acontecido. A mulher danou e os filhos se zangaram, falando que chegara a hora de o pai parar com aquele costume de ir e vir à cidade, a cavalo. Mas ele resistia com a mesma convicção que o sono lhe apertava as pálpebras, nas travessias da rodovia. Ele relatava e gabava a astúcia do Roxo, cada dia mais passado para Roxão, com as vitaminas do meloso e do jaraguá trabalhando-lhe os músculos e as adiposidades do corpo, preguiçosamente.
Outro dia, contou o pai, quando acordou da sonolência, o Roxão, mal tirara a pata traseira do acostamento da estrada, um vento açodado de caminhão lhe fizera voar o chapéu para bem longe, na macega do mato próximo. Desta vez, mulher e filhos bateram com o martelo. Acabou-se a festa, Seu Zé. De agora em diante, se o pai quisesse ir e vir no conforto do balanço teria que ser acompanhado, e, assim mesmo, em transporte movido a petróleo. Esquecesse o cavalo, que a ele seria dado o prêmio merecido pelas boas travessias, sem qualquer acidente nas empreitadas. Melhor acabar com o amor ao animal, do que dele cair, ou ser atropelado, para tristeza de todos. O Roxão recebeu aposentadoria, remoeu capim gostoso, e Seu José poltrona macia, com travesseiro de boas lembranças.
           Parece que, com cavalo, é assim: quanto mais velho, mais sabido, apesar das forças das pernas minguadas. O que se perde de vigor, ganha-se em velhacaria, que tem etimologia correta, de experiência da vida. Disso é avalista outra animália sonolenta, pintada no pelo de “sementinhas escuras em rama rala e encardida”, propriedade de um renomado e fabulista João Fabuloso.

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