quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (30)

História de Amor Guardado

Até, então, sabia-se que ela tivera muitos pretendentes. Entre eles um tal que chegou a lhe formalizar pedido de casamento, como, aliás, outros também, indiretamente, o fizeram. Nada há de inusitado nisso, maneira mais natural de se formar uma vida a dois. Os pais não faziam gosto, sem parecerem autoritários. Não deixaram, contudo, de o ser em dose atenuada, em se tratando dos enlaces matrimoniais das duas únicas filhas, como o comumente aceito, na época e no lugar. As uniões deveriam ser duradouras, e uma oportunidade a mais de se buscar uma vida economicamente mais cômoda. Era preciso olhar, com atenção, de que lugar e de que família provinham genros e noras.
Os filhos viajavam pouco e raros saíam para estudos mais longe. Os que saíam tinham a possibilidade de conhecerem outras pessoas, de culturas diferentes, mas que quase nada mudavam o costume de um casamento aristocrático. Ao chegarem à idade adulta, rapazes e moças se acercavam de uma das quatro divisórias da propriedade paterna e escolhiam qual prima ou primo seria seu futuro cônjuge. Entretanto, na maioria das vezes, sem que soubessem, seus parceiros para toda a vida já vinham escolhidos desde crianças, naquela conversinha em família do fazer “gosto”, se com tal primo ou prima, se com a filha de fulano ou com o filho de sicrana. Menos contava o desassossego do corpo e da natureza, que na idade do viço não costuma escolher parceiros, demoradamente. Quando acordavam das fantasias, rapaz ou moça já estavam enlaçados pela sociedade, que, diga-se de passagem, era bem mais matriarcal do que patriarcal. (O feminino jamais perdeu seu poder, no tocante a família e a continuação das espécies. Os homens só servem, mesmo, para garantir as aparências de que, no terreiro, é o galo que canta mais alto que a galinha. Seu canto é bem rápido).
Aquela sociedade aristocrática rural tinha, também, seus arraigados preconceitos. Pobres, negros e bastardos não possuíam quase nenhuma oportunidade de ascensão social. E, para isso, a Santa Madre Igreja contribuía enormemente com seu manto azulado e a fala mansa de seus representantes.
Ora, então! Assim, ela provinha de uma família aristocrática, embora de poucas posses e escassas terras. Por parte do pai não houve qualquer herança, diluída, por descuido, nos leilões da “praça”, como se dizia. A mãe recebera um quinhãozinho de campo limpo, terra fraca, perto da casa dos pais, já que estes também perderam, em negócios mal feitos, seus cerrados, sem cercas e currais, nos chapadões dos gerais, como se denominavam as vastas porções de terras de frágeis documentos. Os valores morais, entretanto, se mantinham, dos antepassados portugueses, ex-senhores escravocratas, com o controle das uniões dos filhos, rígido e velado. A boa reputação era imprescindível, antes de qualquer outra virtude, para que o nome da família não se manchasse pelos disse-que-disses das conversas e dos subentendidos de cochichos, nos dias de festas santificadas, nos arraiais. Ali, as famílias recebiam o apoio dos padres em suas admoestações do púlpito, sem desagradarem os sustentáculos da religião oficial.
Assim era que, nesse vai-e-vem de valores, a casa dos pais vivia cheia, principalmente aos domingos, dia em que se visitava vizinhos, tios, tias e avós, para menos se inquirir da saúde das pessoas, do que obter a aprovação dos namoros, nos olhares trocados à socapa, e demais artimanhas que pudessem redundar em futuros relacionamentos de vida. “até que a morte os separasse”.
O pai era de boa prosa, sabedor das artes do bem receber, do fazer sala às visitas, embora muito cioso em manter ilibada a reputação das duas filhas, sobretudo da mais velha, que ainda não decidira com quem se casar. Aquele seu jeito civilizado e cerimonioso, não tão comum no meio rural, ele o trouxera de sua origem citadina e da leitura. Às filhas e netos dava a mão a beijar antes do abraço de acolhida. Gostava que lhe fossem servidos o almoço e o jantar à mesa, sobre toalha branca, e em travessas que se iam trazendo da cozinha ao amplo salão de ensolaradas janelas.
A mãe em nada lhe ficava devendo daquela boa conversa, e gostava, sobremaneira, de descobrir laços de parentesco e consangüinidades nos visitantes. Nela, a origem aristocrática rural e seus antepassados tinham pés e almas fincados no esterco dos currais e no pó dos terrenos plantados para a economia familiar. Era mais rude nos carinhos e olhava com cara feia e desaprovava carícias. Ela sabia, também, que a tal proximidade dos sangues não deixava de trazer seus perigos e dissabores, e não desconhecia a existência de deficiências mentais e, até, más formações físicas em membros da grande família.
Todavia, tais casamentos com parentes tinham, lá, seu lado prático. Era só uma questão de mudanças de cercas nas extensas propriedades e a construção de casas secundárias nas cercanias da casa grande, e levar os primos para brincarem juntos. Além das terras, os jovens poderiam ajuntar, também, suas sementes por debaixo dos lençóis e cobertas de algodão e lã que as mães tão bem mandavam fiar e tecer para o enxoval das filhas. Aos filhos, cabia aprender a multiplicar as propriedades e os braços, até mesmo adulterinos, para a continuação da espécie e do poder do dinheiro. Com a prole numerosa os pais garantiam uma vida tranqüila e menos dolorosa no final da vida, com quase sempre uma das filhas solteira para deles cuidar. A última, em geral, que, na eventualidade de contrariar o costume, em se casando, devia permanecer na casa principal que herdaria depois deles mortos.
No capítulo de que se trata, a família minguou a duas filhas, com a morte de outras três que a difteria levara, ainda na primeira infância. Escaparam, por sorte, as duas primeiras, e a primogênita foi ficando para tia dos filhos da caçula, que não tardou a encher de netos o balaio, ou os catres da casa dos avós. 
O trabalho de casa, com os pais cada vez mais decadentes, necessitados de cuidados específicos, foi fazendo com que os anos passassem céleres e se escasseassem as visitas de possíveis pretendentes. Além do mais, era comum pensar que aquela que adentrasse a casa dos trinta, já incorria na perigosa possibilidade de se tornar definitivamente uma “titia”, com vocação igrejeira e distribuidora de bênçãos a sobrinhos e parentes mais jovens. E foi o que o tempo lhe reservou, com a morte dos pais e a dispersão dos sobrinhos da única irmã prolífera. Ela foi sobrevivendo, a olhar pela janela o passado e seus guardados, que, na sua já avançada idade, julgava proibidos aos olhares da família resumida e da casa reduzida.
Quando a morte também lhe veio ceifar as energias escassas, uma dessas lembranças foi uma carta bem guardada em um bolso qualquer de roupa antiga, trazendo uma declaração de amor. Bem caligrafada, testemunhava uma proposta velada de casamento. Do autor somente se sabia, até então, “que quis muito se casar com ela”. Desconhecia-se, porém, a existência e o teor da missiva, datada de lugar designado. O missivista era bem conhecido, de boa aparência, moço trabalhador, mas carregado de estigmas, pois trazia o “mulato” no codinome e era filho bastardo de parente próximo, sem reconhecimento civil, e, além de tudo, pobre, como não poderia deixar de ser. A assinatura não era a de M. J. Mulato, como era conhecido, mas a de M. J. do Sila, por derivação imprópria de Silva, e o texto, que se duvida tenha todo ele saído do punho e cálamo do pretendente, traduzia, em papel timbrado com buquê de rosas vermelhas, o calor do amor que já, de antemão, se sabia proibido.
Com a mínima indiscrição, que costuma não fazer qualquer concessão a compreensíveis desvios ortográficos e sintáticos, assim rezava o conteúdo da carta que fora tão cuidadosamente guardado, até que a morte viesse separá-lo da destinatária:
“A., 20-4-43
Graciosa Beatriz,
Mil saudades. Cumprimento-lhe respeitosamente, desejando a você toda a felicidade, inclusive aos teus pais. Eu vou indo felizmente bem, graças ao nosso Redentor. Beatriz, já há tempos que eu tenho palpite de falar um pouquinho com você sobre aventuras de amor, mas, como a oportunidade para nós é muito difícil, eu resolvi escrever-lhe estas linhas, a fim de dar provas do quanto eu sinto o meu espírito impressionado por tua causa.
Embora eu reconheça a minha situação, sei que não te mereço, mas assim o destino quis. E tanto que, se algum dia você se interessar por mim, será a minha maior riqueza do mundo, alívio para o meu coração.
Beatriz, quando eu me lembro da distância que nos separa, eu me sinto entristecido, não só pela distância, mas também por pensar que sou menos merecedor.
Sem mais o que dizer, peço perdoar meus erros, e, também, queira aceitar, juntos aos teus, as minhas recomendações e um saudoso adeus de teu amoroso admirador.
Eme Jota do Sila

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