segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Contos contados de Minas (32)

Surra de caba e picadas de abelhas 

Minha mãe ouvira dizer que picadas de abelha curavam reumatismo. experimentara quase todos os remédios que as pessoas em geral lhe prescreviam, mas as dores nas juntas persistiam. provara de um pouco, o tudo: banha de cobra cascavel, sebo de carneiro, manteiga de capivara, carne de tamanduá bandeira, e não deixava de fomentar as articulações com o de perdiz embebido em álcool ou cachaça alcanforada. Esses e tantos mais remediozinhos caseiros, rezas e ungüentos, ela dizia terem sido os responsáveis por continuar existindo até aqueles mais de oitenta anos. Mas se algum alívio sentia, de pouco adiantava, embora continuasse a dizer que acreditava mais nos seus remédios, de folhas ou raízes, do que nos de farmácia, receitados por doutor que pouco entendia de dores, sobretudo em caso de necessidade primeira.
Um dia, enquanto secava ao sol o polvilho no jirau, observara as abelhas vibrantes, na procura do amido para seu fabrico de mel ou resina. Veio-lhe à idéia, então, o tal remédio, ensinado por alguém, de quem não mais se lembrava, como lenitivo de suas dores de reumatismo: as ferroadas de abelha ou de marimbondo. Foi aí que começou a irritar-lhes a paciência, para ver se  reagiam e lhe aplicavam as receitadas picadas. Mas as abelhas estavam distraídas no seu que-fazer e não correspondiam à provocação. O que ela não sabia é que elas não tinham nenhum motivo de ferroar alguém, gratuitamente, uma vez que se condenariam à morte por nada, coisa só faziam para o bem da comunidade, e ali não era o caso.
, minha mãe exagerou na dose dos desaforos e começou a espremer algumas delas que não tiveram outra escolha senão aplicar-lhe umas quatro ou cinco boas aguilhoadas na pela fina das extremidades superiores. Ela sentiu o quão caro saiu-lhe o remédio. Suas mãos ficaram em fogo e o inchaço demorou dias a desaparecer. O reumatismo nem tanto, ou, talvez, um pouco mais de tempo.
Essa lembrança faz-me contar, também, outra experiência com picadas de abelhas, mas desta vez com vespas, ou marimbondos, que em alguns lugares dessa vastidão de terras e línguas, são também conhecidos como abelhas, sem quaisquer simpatias.
Isso foi no Acre, nos idos de setenta e oito. Mostrávamos, orgulhosos, os arredores de Rio Branco a um professor que viera ministrar um curso de lingüística. Como o clima exigia, naqueles recantos amazônicos, vesti-me com bermuda e camiseta para o passeio de descontração. pelas tantas, passamos diante de uma propriedade rural que ostentava um belo exemplar de pé de manga. Quase ao alcance da mão, uma manga madurinha, e.... única, como que dizendo “apanha-me, por favor!”. Resolvi colhê-la, logo, para demonstrar ao visitante que a natureza, por ali, também, era pródiga.
Assim, pulei e dei um tapa na tentação, naquela ostentação de desafio, não sem razão. De fato, ela ocultava uma caixa de marimbondos, que ao se sentirem atacados, não tiveram outra reação senão a de agredirem o agressor, e descerem como numa nuvem negra sobre sua cabeça e onde mais encontrassem espaços desprotegidos de pano. Saí rolando ladeira abaixo, dando-me, desta vez, tapas por onde alcançavam as mãos, na esperança de espantar os tais venenosos insetos.
Felizmente os marimbondos não eram dos mais perigosos, e, eu, não alérgico. Também, pouparam-me o rosto, embora nuca, costas, tronco, pernas tenham ficado como em fogo. Umas duzentas picadas pareceram razoáveis ao funcionário da farmácia, onde comprei um caladril que me aliviou um pouco o efeito do veneno daqueles insetos. Um termo e uma expressão lingüística foram-me acrescentados ao vocabulário acreano, dos quais, dificilmente, vou me esquecer: “levar uma surra de caba”.
Voltando, ainda, ao assunto de picadas de abelha, uma dessas simpáticas criaturinhas apareceu-me, um dia, em visita na biblioteca, enquanto viajava por entre livros. Parecia perdida, atrás de um cheiro açucarado qualquer. Não trazia sinais de irritação, nem vontades agressivas. Propus-me, então, a desviar a atenção do que estava fazendo, e, sem outra inspiração para o momento, resolvi oferecer-me uma injeção de veneno de abelha. que não sabia como fazer e onde aplicar o tal remédio, tampouco, o lugar do corpo em que doesse menos. Como não me encontrasse, desta vez, de bermuda, levantei a perna da calça além do joelho, por julgar que a pele que cobre a rótula, seria o lugar mais infenso à dor. Além de tudo, a barra da calça, àquela altura, poderia enforcar a circulação, e diminuir a dor que, já sabia, viria, de algum modo, intensa.
Peguei a pobre abelhinha, que estava por ali ainda perdida no seu zumbir inofensivo, e obriguei-a a desferir o seu dardo, que a natureza tão bem soube confeccionar, para que, ao entrar na pele do agressor, não saísse, a não ser trazendo consigo parte do intestino do animalzinho. E, assim, foi. Passada a dor inicial, uma vermelhidão foi se formando ao redor da picada, Não inchou muito, porque o local não era de muita adiposidade, mas, nos dias seguintes, fiquei que não podia andar direito, tamanha a dor na articulação.
Se veneno de inseto, abelha ou caba, for mesmo bom para reumatismo, posso estar seguro de que este não me atingirá tão cedo. Valha-me Deus e Nossa Senhora da Ajuda, que passei a respeitar esses bichinhos tão temidos, até por animais de grande porte. Benfeitores na Natureza, como muitos outros.
           Anos depois, mais de oitocentos quilômetros do caminho de Santiago de Compostela parecem ter ilustrado os benefícios de tais remédios doloridos. Também, os biscoitos de minha mãe continuam sendo confeccionados com o polvilho que ela própria fabrica, horas e mais horas, em pé, secando-o ao sol. Só não me lembro mais de ouvir contar que abelhas continuam sendo sacrificadas pelos tais remédios poderosos. Quanto a mim, se me ocorre receber alguma abelha em casa, abro-lhe, gentilmente, a janela e desejo-lhe boa sorte entre as flores da Natureza.

Um comentário:

Mercia Justum disse...

Joaquim, esses episódios contados de maneira primorosa me lembram passagens da infância em que alguém da família, já atormentada pelas dores do reumatismo, teve que aguentar picadas de abelhas em nome das receitas milagrosas.Seu choro e seus ais estão ainda em meus ouvidos.