Dia dos Pais
Depois da
morte do pai, um dos filhos disse: “Nosso pai, quando começou a ficar bom,
morreu.” Não que o progenitor tenha sido mau, muito pelo contrário, ninguém
como ele foi tão cordial, tão alegre, piadista, risonho, amante de uma boa
gargalhada, amigo dos amigos, tolerante com os adversários (que todo mundo
acaba por ter, sem querer), distante das malquerências. Entretanto, tinha que
ser ator fiel de um papel já traçado, que o próprio meio social lhe reservara
por herança.
Desde as
mais remotas gerações de antepassados portugueses, colonizadores e remanescentes
de patriarcas bíblicos, o riscado era o de o pai manter com os filhos
relacionamento mais distante, como recurso velado de garantia de respeito, que
mais parecia malvadeza silenciosa, já que conversar mais do que o necessário,
rir, sorrir, gargalhar poderiam abrir possibilidades a fraquezas, e a perda de
poderes, o que, perante os demais patriarcas da grande família, constituiria,
na certa, fatal handicap.
No
entanto, uma vez a família criada, os filhos casados, já, por sua vez, a exercerem o papel também herdado de chefes de família, senhores da casa, mesmo se com prole
bem mais reduzida, sobrar-lhe-ia a doce missão de avô, a bondosa presença junto
aos netos, remissão de carinho sonegado aos filhos.
Assim foi
que o pai começava a se permitir algumas brincadeiras, algum sorriso maroto,
ao passar a contar causos mais engraçados, como que a querer aproximar-se de filhos
e netos. É certo que os filhos notavam aqueles ensaios, sem se permitirem,
entretanto, aceitar o fato de que aquela atitude era a mesma que ele
adotara, anteriormente, com amigos, tios, irmãos e sobrinhos, ao deixá-los de lado a só observarem de longe tais atitudes, com o rabo dos olhos.
Muitas
vezes, tais aproximações tardias eram mal recompensadas pelos, já agora, filhos
adultos, os quais, por sua vez, talvez inconscientemente, também, as sonegavam
ao pai, como prova da inversão de papéis, na mesma peça de teatro, levada de
geração em geração. Era a vez de o pai ter de abaixar a cabeça diante de
respeitosa repreensão, como era a obediência dos filhos nos tempos da menor idade, agora relacionada,
por exemplo, aos cuidados com a saúde, tão fraquejada. "Pai, é preciso ir ao médico! Por que não faz assim-assim, para ir-se livrando de responsabilidades, dividindo-as com os filhos? Por que não vai dar um passeio mais longe, para conhecer lugares diferentes, conversar com pessoas de outros pensamentos?" Etc, etc...
Entretanto,
como não poderia deixar de ser, sempre havia pequeno progresso, um avanço de
boa vontade, nos entendimentos de novas formas de relação. A sociedade já não
era a mesma, assim como não eram as circunstâncias e as oportunidades de
relacionamentos entre as pessoas. O filho mais velho, por exemplo, tal o
bíblico primogênito, cujo papel e treinamento foram transmitidos, a duras penas,
de pai a filho, considerava-se, em caso de eventuais necessidades, o detentor
de poder exercer uma autoridade legada.
Ele, que
não conhecera o estudo formal, tivera o grande discernimento de dar à numerosa prole a oportunidade de conquistar o saber sem a imposição do meio. Com a educação, vieram as análises e a tomada
de consciência sobre os verdadeiros motivos daquelas já distantes atitudes, que
os "antigos" foram obrigados a praticar. Embora, ainda, com as dificuldades arraigadas
nas consciências, alguma coisa mudava naquela convivência conservadora.
Os tempos
e os costumes que, outrora, demoravam gerações para sofrerem pequenas mudanças,
agora, já não demandam quase nenhum lapso de intervalo para se efetivarem. Netos
e filhos já não tratam pais e avós por “senhor”, “sim, senhor”, “não senhor”,
e, eles, disso, nem conta fazem. Os filhos começam a sentir as vantagens de
um contato mais próximo e menos formal, sem que o respeito e o reconhecimento
venham a sofrer descontinuidade.
No caso, sentiam, ali, a falta do companheiro, e lamentavam que
o tempo não o tivesse poupado por mais alguns anos de agradável convivência. O
pai partira, como quase todos os progenitores, antes do esperado.