sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Contos contados de Minas (51)

Gerci

Trabalho de menino vale pouco, bobo de quem não aproveita. Menino sem o que fazer? Arranja-se-lhe, rápido, um serviço qualquer. “Busca um copo de água pra mim; alcança um tição para eu acender o pito; pega o cavalo; traz as vacas, que já é hora; traz a enxada e limpa aquele canto de cerca; corta aquele ramo que está entrando pela varanda; ajuda sua mãe a fazer os queijos; pega, no cabide da parede da sala, o meu chapéu; procura as botinas, debaixo da cama; cata os picões das pernas da calça; dê um pulo, num pé lá outro cá, à casa do compadre Chico, e pergunta se a comadre melhorou da gripe; leva isso para o compadre Joãozinho e pergunta se a Maria sarou das dores nas costas; corre lá no quintal e conta quantos ovos as galinhas já botaram, hoje; limpa minhas botas, que é pr´a eu não sujar o assoalho da sala; desarreia e solta o pampa na porteira do pastinho, porque, amanhã cedinho, pode dar trabalho de trazê-lo ao curral; ajunta o esterco das vacas!” E, assim, mais muitas e muitas outras contas faltantes, no rosário das comandas e serventias.
Raros eram os donos de terra, por aqueles lados, que não tinham um menino ajustado para ajudá-los na lida rural, na arrumação do terreiro, na tiração do leite, na cura do gado. Desses tais, o Geraldo, vulgo Lelesso, o Tiãozinho, seu irmão, filhos da Margaridinha do Zequinha, o Belchior, vulgo Brechó, mais tarde, Compadre Brechó, de vozeirão cavernoso, revólver à cintura, bem à mostra, para impor respeito aos mais ousados do arraial, o João Norato, de quem se herdou uma mesa enegrecida na gordura e fumaça de fornalha, se empretejando na cor da pele dos “cativos”, de quem veio a origem, esse tal, último, era também, compadre, pelo batismo da Clélia, vulgo Quileca, sabe-se lá, do que foi feito dela, coitadinha! O não menos compadre Nazário Martinho, filho da Maria Izídio, vulgo Marizídia, este, até, quem sabe, um meio-irmão de meu pai, já que, dessas coisas só se falava no pé do ouvido, por aqueles fundões recônditos da Serra Feia, ou do Serrote, Morro Feio, ou, até mesmo, do vasto Paraíso.
Mas, dentre todos os ajustados, um me vem à lembrança, o Gerci, por ter repartido comigo alguns prazos de dias e de vida infantil. Devia, na época, contar uns doze ou treze anos, e eu, ainda, nem alcançara os sete, a justificada idade da razão, com possibilidades, até, de cometer pecados, carecer de confissão, e fazer a primeira comunhão, segundo as prescrições da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, como se decorava no catecismo. Na minha solidão de, até ali, caçula ou com irmão ainda gugunando ao sugar os seios fartos da mãe, carente de companhia para brincar, um rapazote, como o Gerci, era de grande serventia, além de servir para ser mandado, como já se disse.
Um dia, segundo minha mãe, já que, daquele tempo, pouco me lembro, a não ser pelas cascas dos acontecidos, o Gerci deu de rodear a casa, desenxabido, olhando para o chão, como se procurasse alguma coisa perdida, querendo e não querendo fazer o que parecia querer e não queria. Ela, então, foi saber dele o que estava acontecendo, desconfiada de algum malfeito. “Não é nada, não, Dona Maria”! “É,.sim,.e pode ir desembuchando, que eu sei que aí tem coisa escondida”!  Nisso, ela reparou que o menino tinha, na mão, um canivetinho, que ela sabia ser meu. “E esse canivetinho, o que está fazendo nas suas mãos?” “É meu, que comprei no arraial!” “Comprou nada, que eu reconheço bem!” Apertou, apertou, até ele confessar que tinha “tirado” de minhas coisas. “Não faça mais isso, que conto para sua irmã!”
O Gerci era menino sem família. Largado, como se dizia. A tal irmã, já moça, bonita, como ainda me lembro dos olhares infantis que lhe reservei, morava na casa de uma tia de meu pai. Andou me dando uns banhos em situações vexatórias, para a pouca idade que tinha, por ocasião de uma dor de barriga, em dia de festa, com muita gente por perto. Dela, que eu sabia ser irmã do meu companheiro, só me recordo da bondade e da beleza. Não sei do resto de sua vida, nem que fim levou, certamente, nos braços de algum instinto mais sôfrego e apessoado, carregando-a de filhos e de cuidados.
Outra lembrança que desencavo do fundo do tempo, foi a história de retirada de esterco do curral das vacas. Essa já não vem do Brejo Comprido, mas dos socavões da Serra Feia, para uns, ou da Picada, para outros, lugar onde meu pai tinha umas terras mais frescas, para descanso dos descampados, Na inclemência do sol, do Chapadão só retirava o sustento das vacas, quando ateava fogo nos campos, para o aproveito das queimadas. O broto verdinho do capim macega, suculento, misturado às cinzas, parecia deleitar sobremaneira as criações. A delícia daquelas primícias, misturadas com o potássio, dava-lhes peso, anca arredonda e pelagem lustrosa, mesmo se (como nada vem, assim, gratuitamente), algumas delas exagerassem na dosagem da ruminação e lambuzassem as redondezas do rabo, ao espalharem os restantes moles do capim recém-digerido. Mas é, assim, que os bichos crescem e alimentam de diversos modos os seres humanos.
A ordem de serviço para o Gerci, muitas vezes, era ajuntar o esterco seco das vacas que ia se acumulando no curral, e transportá-lo, sobre um couro velho de vaca, até o quintal, onde, por si só, se espalhava para o saciar das plantas úteis e inúteis. O processo era rudimentar, pois não se dispunha de carroças ou carrocinhas, de espécie alguma. Agarrávamos na aba mais saliente do couro, e, de costas, íamos arrastando continente e o conteúdo até o destino, cada vez mais afastado, já que comecávamos pelo caminho mais curto.  O Gerci, em garantia de poder brincar comigo, depois das tarefas cumpridas, impunha condição de ajudá-lo na empreitada. Naquela idade, com muita certeza, minha ajuda devia ser pouca, mas, como já se disse, trabalho de menino, por menor que seja, nem bobo enjeita.
O esterco seco, em tempos de vento, próprios do período da estiagem, fazia redemoinhos e entrava pelos buracos mais expostos do corpo, olhos, ouvidos, narinas, boca, garganta, e endurecia cabelos, cílios e supercílios. Minha mãe vivia repetindo que não vencia tirar poeira de esterco de sobre os móveis, camas e utensílios de cozinha. Também, do chão batido do rancho de pau-a-pique, esburacado, com o destorrôo natural da terra, por ação da  vassoura, durante as várias varridas da casa. A poeira levantava, apesar das borrifadas de água, para irritar-nos os olhos. O pó de capim moído, na mó dos dentes bovinos, entrava por todos os buracos do rancho, deixados pela queda do reboco de barro cru. Intervalos de telhas, portas e janelas deixavam passar canudos de luz misturados  a pó de estrume.
A bem da verdade, o rancho só tinha quadro cômodos: sala, cozinha, despensa e quarto. Da sala para a cozinha, um meio corredor, terminado em degrau levava à cozinha. Ali, bem ao canto, ficava o pote e o copo de alumínio, para a retirada da água, ainda fresquinha da bica. Os ventos da estiagem faziam com que se devesse lavar, frequentemente, pote e copo, por causa do pó de esterco acumulado. Só não se lavava as almas, porque meus pais eram jovens, e o colchão de palha sossegava rápido as canseiras do diário.
Quando o estrume das rezes se avolumava no recanto das vacas, costumávamos fazer, ao entardecer, como brincadeiras infantis, caminhos tortuosos com a enxada. Os trilhos longos pareciam desenhos labirínticos, rios amazônicos, cujas águas vão escolhendo o caminho, à procura de terreno plano, sem se importarem com distâncias, que o importante é chegarem ao mar, às nuvens, para depois regressarem ao começo das viagens. Assim, também, os meninos de roça, com os ziguezagueados traçados no chão dos currais, tomados pelo esterco, para depois percorrê-los, incansavelmente, como se quisessem desafiar o tempo e as distâncias, naquele exíguo quadrilátero, até que a noite e o sono nos levassem para sonharmos com tombos e escorregos de barrancos, sinais de que o corpo espichava, enquanto a mente descansava, sem que, ao menos, suspeitássemos.
O Gerci era menino e procurava aliviar os serviços, e eu, criança, queria fugir do tédio de sentir o tempo passar mais devagar, naqueles fundões de morros, onde o dia se encurtava e a noite se espichava, com o sol entrando mais cedo e a noite chegando mais depressa, para um eterno recomeçar.
Em uma ocasião, o Gerci procurou um pretexto para ganhar um dia de folga. Ficara sabendo da reza de um terço de santa Luzia. Sem coragem de pedir à minha mãe que o liberasse para a oração,  perguntou se minha mãe não era devota da santa, e não guardava o dia. No local, sempre se reuniam muitas pessoas dos arredores, das mais diferentes idades, e meninas-moças, que conseguiam se furtar das vistas das mães para trocarem olhares dissimulados com os rapazotes presentes. Mas, minha mãe o decepcionou ao dizer-lhe que não, sem pensar que a santa era a protetora dos olhos, e, com toda a certeza, ajudaria a todos e a si própria, na coceira dos olhos, originada na poeira do esterco. Ficaram os olhares das meninas e os suspiros do Gerci sem o auxílio da santa, hoje ressequida em um relicário de igreja, sob sua proteção, na cidade de Veneza.
           Meu companheiro, Gerci, desapareceu das minhas lembranças infantis, apagou-se no escuridéu do tempo, sem deixar rastro, como, de resto, costuma acontecer à maioria dos mortais, cada vez mais amiúde, com o  desenraizamento das terras onde nasceram, para voarem como poeira de esterco a outros cantos de mundo desconhecido.

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