terça-feira, 13 de novembro de 2012

Contos contados de Minas (57)


In/Certezas

 
Os primeiros dias de Rio Branco foram de incertezas, de não se saber para onde ir, onde morar. Tinha mais alguns dias, um mês, no máximo, para procurar um lugar que o abrigasse pelo tempo que se dispusesse a permanecer naqueles ares amazônicos. Tudo eram novidades, além da forte  umidade e do mofo brotando de todos os recantos do quarto do hotel, para onde o levaram até encontrar moradia definitiva.

No Departamento de Letras, da Universidade Federal do Acre, os colegas vivenciavam os problemas dos quantos ali chegavam, como se fossem retirantes de lugares mais confortáveis. Todos procuravam ajudar, divulgar entre os colegas que avisassem, caso soubessem de casa, apartamento ou quartos para solteiros ou casados. Até os próprios alunos já estavam cientes do problema e procuravam soluções de moradias e aconchegos. Eram professores. que se dispunham a vir do sul até ali, recrutados, o que não constituía tarefa fácil para o reitor da Instituição. Os primeiros dias estavam garantidos. O restaurante do hotel os alimentava após as aulas. As noites os enrolavam no calor viscoso do respirar da floresta, do rio e dos inúmeros igarapés das proximidades.

Um colega, entretanto, professor de uma outra língua estrangeira que a dele, sabedor desde o início da procura por alojamento, chamou-o de lado e disse que, caso quisesse, poderia morar com ele.. Recebera uma casa popular, em um bairro novo, não muito distante do Pálácio da Cultura, onde funcionava, provisoriamente, todos os cursos da UFAC, e decidira assumi-la. Até ali, havia já algum tempo, morava com um colega, também em quarto alugado. A nova residência contava com dois quartos, sala e cozinha, e um quintal com dois pés de coco-anão. De quebra, a casa ainda fora contemplada com uma castanhola, de folhas largas, e muita sombra para amenizar o calor daqueles lugares caniculares.. O telhado de folhas de zinco não era o mais apropriado para a região, mas o mais econômico para a população de baixa renda. As frutas da árvore copada, que mais tarde ele chamou de castanhas, se encarregavam de assustá-lo, quando se desprendiam por sobre o telhado, em tamborilar de repente.

Na mudança do colega houve móveis que preencheriam os espaços da casa. A dele se resumiu a uma mala de roupas e objetos de toalete. Alguns livros, quando muito. Em poucos dias tudo encontraria seu devido lugar. Entretanto, algo ainda estava por vir. A secretária do Departamento sentiu-se no dever de revelar-lhe a verdadeira identidade do colega com que se dispunha a morar. Tratava de um homossexual. Isso, pensara ela, poderia ser de grande valia para evitar-lhe possíveis aborrecimentos, com disse-me-disses desagradáveis. Ainda, segundo ela, aquele convívio sob o mesmo teto poderia provocar ciúmes no ex-companheiro, com quem dividira espaços, até ali. Amigos outros, com a mesma tendência sexual, também poderiam prejudicar a convivência tranqüila entre ambos.

Ele agradeceu a preocupação em torno de sua pessoa, mas disse-lhe que nada o afetaria, caso sentisse sua liberdade respeitada, e que não acreditava poder acontecer o contrário do que estava pensando, por se tratar de alguém que tão gentilmente o convidara, em momento de necessidade. De sua parte, sempre estaria, também, disposto a respeitar-lhe os espaços, que eram dele e de que poderia dispor como bem lhe aprouvesse. E, assim, se concebeu e, assim, se deu.

As visitas ao amigo nunca o perturbaram, nem as sussurrantes conversas que poderiam tirar-lhe a concentração das leituras que a profissão exigia. Quando a ocasião se apresentava, os dois se assentavam em torno da mesa da sala ou no sofá, para conversarem sobre assuntos acadêmicos. Acontecia irem a festas juntos, acompanhados dos tais amigos, homossexuais, sempre discretos e respeitosos de sua individualidade. O que era, no início, simples coleguismo e deferência, foi sei tornando base de grande amizade. Um era professor de língua e literaturas de língua inglesa e o outro, professor de língua e literaturas de língua francesa. Falavam das duas culturas, de seus valores e autores. Entre eles, lembra-se bem, Edgar Alan Poe freqüentava as discussões com seus textos de realismo mágico. O mundo latino, incluído o brasileiro, também encontrava o lugar naquelas tertúlias.

O tempo passou e levou o colega ao Rio de Janeiro para curso de mestrado. Ele continuou morando em sua casa, debaixo da mesma árvore que, em noites de lua cheia, naquelas solidões amazônicas, filtrava a luz e espalhava manchas escuras sobre a areia branca da área que dava para a esquina da rua. Ali, durante o dia, uma senhora vinha, diariamente, espalhar seus utensílios, para satisfazer os apreciadores do tacacá. Naquelas noites-acres, o latido de cães e o barulho de vacas passeando seus bezerros pelas ruas desertas, davam-lhe a sensação de lugares fantasmagóricos e ermos estelares. Por algum tempo, morou sozinho, até que dois novos professores chegaram para os cursos de Letras e dividiram com ele os mesmos espaços e despesas da casa.

O colega, do Rio, escreveu-lhe, propondo disposições a tomar com relação à ocupação da casa e o que fazer com os móveis e demais papéis que deixara para trás. Parece que não tinha intenção de voltar ao Acre, tão breve. Ele poderia permanecer na casa pelo tempo que quisesse, pelo preço que julgasse justo e apropriado ao interesse mútuo. O acordo era-lhe, em tudo, favorável, e assim foi feito a contento de ambos. Ao final da carta, uma frase não só chamou-lhe a atenção, como lhe calou fundo no coração. Ela dizia: “Você foi a melhor coisa que me aconteceu no Acre”.

A sua experiência durou pelo tempo que deveria durar. De lá voltou à cidade de onde chegara, levando sempre no peito as melhores lembranças daquele povo acolhedor, com quem muito se enriqueceu e em quem espera ter deixado alguma coisa de proveito. Algum tempo depois, soube que o amigo morrera de AIDS, ainda enquanto estava no Rio, e sem mais voltar a ocupar as acomodações daquela casa, que compartilharam juntos.
 
           Dizem os entendidos que é melhor arrepender-se do feito do que do não feito.. Quem padece de tais momentos nunca pode negar o que deixou de fazer e o que poderia ter feito. A vida é mesmo um conflito entre contentamentos e descontentamentos. Mesmo para quem garante conseguir se esquecer, facilmente, do passado, sempre haverá de sobrar uma ponta de insatisfação sobre algo não realizado, pouco ou nada compartilhado. A amizade sempre poderia ter sido maior e melhor correspondida, sobretudo, quando não mais se pode aumentá-la, nem melhorá-la nestes pedaços de tempo e recantos de mundos.

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