In/Certezas
No Departamento de Letras, da
Universidade Federal do Acre, os colegas vivenciavam os problemas dos quantos
ali chegavam, como se fossem retirantes de lugares mais confortáveis. Todos
procuravam ajudar, divulgar entre os colegas que avisassem, caso soubessem de
casa, apartamento ou quartos para solteiros ou casados. Até os próprios alunos
já estavam cientes do problema e procuravam soluções de moradias e aconchegos.
Eram professores. que se dispunham a vir do sul até ali, recrutados, o que não
constituía tarefa fácil para o reitor da Instituição. Os primeiros dias estavam
garantidos. O restaurante do hotel os alimentava após as aulas. As noites os
enrolavam no calor viscoso do respirar da floresta, do rio e dos inúmeros
igarapés das proximidades.
Um colega, entretanto, professor de
uma outra língua estrangeira que a dele, sabedor desde o início da procura por
alojamento, chamou-o de lado e disse que, caso quisesse, poderia morar com ele..
Recebera uma casa popular, em um bairro novo, não muito distante do Pálácio da
Cultura, onde funcionava, provisoriamente, todos os cursos da UFAC, e decidira
assumi-la. Até ali, havia já algum tempo, morava com um colega, também em
quarto alugado. A nova residência contava com dois quartos, sala e cozinha, e
um quintal com dois pés de coco-anão. De quebra, a casa ainda fora contemplada com
uma castanhola, de folhas largas, e muita sombra para amenizar o calor daqueles
lugares caniculares.. O telhado de folhas de zinco não era o mais apropriado
para a região, mas o mais econômico para a população de baixa renda. As frutas
da árvore copada, que mais tarde ele chamou de castanhas, se encarregavam de assustá-lo,
quando se desprendiam por sobre o telhado, em tamborilar de repente.
Na mudança do colega houve móveis que
preencheriam os espaços da casa. A dele se resumiu a uma mala de roupas e
objetos de toalete. Alguns livros, quando muito. Em poucos dias tudo
encontraria seu devido lugar. Entretanto, algo ainda estava por vir. A
secretária do Departamento sentiu-se no dever de revelar-lhe a verdadeira
identidade do colega com que se dispunha a morar. Tratava de um homossexual.
Isso, pensara ela, poderia ser de grande valia para evitar-lhe possíveis aborrecimentos,
com disse-me-disses desagradáveis. Ainda, segundo ela, aquele convívio sob o
mesmo teto poderia provocar ciúmes no ex-companheiro, com quem dividira espaços,
até ali. Amigos outros, com a mesma tendência sexual, também poderiam prejudicar
a convivência tranqüila entre ambos.
Ele agradeceu a preocupação em torno
de sua pessoa, mas disse-lhe que nada o afetaria, caso sentisse sua liberdade
respeitada, e que não acreditava poder acontecer o contrário do que estava
pensando, por se tratar de alguém que tão gentilmente o convidara, em momento de
necessidade. De sua parte, sempre estaria, também, disposto a respeitar-lhe os
espaços, que eram dele e de que poderia dispor como bem lhe aprouvesse. E,
assim, se concebeu e, assim, se deu.
As visitas ao amigo nunca o
perturbaram, nem as sussurrantes conversas que poderiam tirar-lhe a
concentração das leituras que a profissão exigia. Quando a ocasião se
apresentava, os dois se assentavam em torno da mesa da sala ou no sofá, para
conversarem sobre assuntos acadêmicos. Acontecia irem a festas juntos, acompanhados
dos tais amigos, homossexuais, sempre discretos e respeitosos de sua
individualidade. O que era, no início, simples coleguismo e deferência, foi sei
tornando base de grande amizade. Um era professor de língua e literaturas de
língua inglesa e o outro, professor de língua e literaturas de língua francesa.
Falavam das duas culturas, de seus valores e autores. Entre eles, lembra-se
bem, Edgar Alan Poe freqüentava as discussões com seus textos de realismo
mágico. O mundo latino, incluído o brasileiro, também encontrava o lugar
naquelas tertúlias.
O tempo passou e levou o colega ao Rio
de Janeiro para curso de mestrado. Ele continuou morando em sua casa, debaixo
da mesma árvore que, em noites de lua cheia, naquelas solidões amazônicas,
filtrava a luz e espalhava manchas escuras sobre a areia branca da área que
dava para a esquina da rua. Ali, durante o dia, uma senhora vinha, diariamente,
espalhar seus utensílios, para satisfazer os apreciadores do tacacá. Naquelas
noites-acres, o latido de cães e o barulho de vacas passeando seus bezerros
pelas ruas desertas, davam-lhe a sensação de lugares fantasmagóricos e ermos
estelares. Por algum tempo, morou sozinho, até que dois novos professores
chegaram para os cursos de Letras e dividiram com ele os mesmos espaços e
despesas da casa.
O colega, do Rio, escreveu-lhe, propondo
disposições a tomar com relação à ocupação da casa e o que fazer com os móveis
e demais papéis que deixara para trás. Parece que não tinha intenção de voltar
ao Acre, tão breve. Ele poderia permanecer na casa pelo tempo que quisesse, pelo
preço que julgasse justo e apropriado ao interesse mútuo. O acordo era-lhe, em
tudo, favorável, e assim foi feito a contento de ambos. Ao final da carta, uma
frase não só chamou-lhe a atenção, como lhe calou fundo no coração. Ela dizia:
“Você foi a melhor coisa que me aconteceu no Acre”.
A sua experiência durou pelo tempo que
deveria durar. De lá voltou à cidade de onde chegara, levando sempre no peito
as melhores lembranças daquele povo acolhedor, com quem muito se enriqueceu e
em quem espera ter deixado alguma coisa de proveito. Algum tempo depois, soube
que o amigo morrera de AIDS, ainda enquanto estava no Rio, e sem mais voltar a
ocupar as acomodações daquela casa, que compartilharam juntos.
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