domingo, 19 de fevereiro de 2012

Contos contados de Minas (38)

            Três colegas, três caminhos 

Foi um aluno mediano, nem mais nem menos inteligente ou aplicado do que os demais, do Grupo Escolar e do curso ginasial de sua época. Embora de origem rural e viesse a ter contato com as primeiras letras e números com quase oito anos, alcançou os colegas urbanos, e, até, sem falsa modéstia, superou alguns deles, mais privilegiados da sorte. O pai era, como se dizia, morador da “roça”, de poucas letras. Conhecia, entretanto, a dificuldade de quem não experimentara as facilidades da instrução. Era semi-alfabeto, mas sabia que se não tivera condições de estudar, os filhos teriam sorte diferente. Por isso enviara as duas primeiras filhas à escola, que pouco distava da casa dos sogros, com a professora Maria Guimarães.
Ali, entretanto, se ensinava até os três primeiros anos do chamado “curso primário”, nível no qual a maior parte dos meninos e meninas do lugar não arredaria o pé pelo resto da vida. Quanto a ele, o terceiro da irmandade, aguardaria, solitário, junto à saia da mãe, a vez de, também, buscar os ensinamentos da eficiente professora. Para tanto, passaria, também, a morar com os avós maternos, enquanto, certamente, as duas irmãs voltariam para a casa dos país, para aprenderem o ofício de “futuras donas de casa”, como acontecera com a mãe.
Afortunadamente, o pai avançou adiante da maioria dos parentes. Mudou-se para a cidade, com o propósito de arranjar escola mais adiantada, para as filhas continuarem os estudos, e ele entrar no primeiro ano primário. Foram matriculados, os três, no Grupo Escolar Professor Modesto, em Patos de Minas, próximo à residência que alugara no largo do Rosário. Três meses depois, mudaram para outra casa, que o pai comprara, no centro da cidade, que não lhe passava pela cabeça morar em imóvel de outros, e muito mesmo de aluguel.
O menino terminou o primeiro ano, com aprovação, e procurou um estabelecimento escolar que ficasse mais perto da casa. Dirigiu-se ao Grupo Escolar Marcolino de Barros, edifício imponente e de grande reputação, sem que antes cuidasse de providenciar os resultados da escola anterior. A nova direção quis, então, averiguar, novamente, o nível de escolaridade do novato e fez com que passasse um teste, ali mesmo, na hora, à queima-bucha. Julgou que deveria continuar no primeiro ano, em uma turma mais avançada, porém. Para consolá-lo do retrocesso, disseram que fora promovido do primeiro ano atrasado para o primeiro adiantado, desprestigiando, sem constrangimento, o ensino da instituição anterior. Para ele, entretanto, aquelas sutilezas de sentido se revelavam desnecessárias. O aparente atraso fez dele um dos melhores alunos nos quatro anos primários que se seguiram, até “tirar o diploma”.
Um de seus colegas, dessa época, chamava-se Marcelo. Com ele dividiu, no final do ano letivo, o primeiro lugar da turma. Os dois foram companheiros, novamente, no segundo ano. O Marcelo continuou a ser o primeiro aluno. Ele recuou para o segundo. No terceiro ano, o colega manteve a liderança da turma, e ele tornou a secundá-lo. No quarto ano, foram colocados, por acaso, em turmas diferentes.
Alguns dias antes do término daquele último ano do curso primário, algo inusitado aconteceu na cidade. Ele ouviu, pela primeira vez na vida, os sons da palavra greve, embora, bem mais tarde, apreendesse todo o seu significado de movimento paredista de assalariados que se tinha o costume de se reunir na praia (grève, em francês), para melhor e com mais espaço reivindicar direitos. As professoras estavam, pois, em greve, e não davam mais aula. Ficavam agrupadas em frente ao prédio da prefeitura, ou em passeatas pela avenida principal que, coincidentemente, se situava defronte ao Grupo. Enquanto isso, os alunos as observavam, sem compreenderem o que estava acontecendo.
 Naquele ano, não houve provas finais e, conseqüentemente, também a classificação usual, com festa e palavras bonitas da diretora. Ele não pôde saber, então, qual a sua classificação, nem a de seu imbatível rival, dessa vez, em outra sala de aula. Acredita, porém, sem medo de engano, que teria obtido, sem sombra de dúvida, a melhor nota de sua turma. Nunca mais o viu, cada um deles seguindo rumos que o destino poderia traçar-lhes. Assim, o autor destas lembranças foi estudar em outro estado e se afastou do convívio dos antigos colegas do grupo escolar. na universidade, voltava com freqüência para respirar os ares da infância e a presença dos parentes mais próximos.
Um dia, do terraço de um bar da cidade, viu encostar um desses caminhões que transportam engradados de cerveja e os vai entregando de bar em bar. Dele desceu o Marcelo, arqueado sob o peso dos caixotes, a transportá-los às costas até o interior do bar. Dali continuaria com as paradas, as descidas e os carregamentos. Enquanto isso, ele o observava e bebia goles de cerveja misturada a reminiscências, cada um mais amargo do que o outro.
Assim, revira e volta a vida, e o destino o guiou ao Juvenato Marista, de Mendes, logo depois de concluídos os estudos primários. Teve, também, ali, outro colega, de nome Célio, o mais aplicado da turma de primeira série ginasial, na velha terminologia educacional. O Célio tinha mais idade que os demais alunos. Não era isso, entretanto, que o fazia mais estudioso do que os outros, ou mais inteligente, quem sabe. Na classificação mensal, sempre obtinha o lugar de primeiro aluno da classe, quando ainda se adotava o sistema de emulação, logo eliminado. Foram colegas da primeira até a quarta série ginasial.
Algum tempo depois, quis, novamente, o destino que os caminhos de ambos seguissem rumos diferentes. Ele foi estudar em Brasília e o Célio, por muito tempo não soube por onde andou. Pareceu-lhe que voltara a Belo Horizonte, de onde viera para o colégio interno marista de Mendes.
Aquele tempo passou como não podia deixar de passar. Ele veio a recuperá-lo, um pouco, quando quis freqüentar o grupo que, de vez em quando, volta ao local onde outrora funcionou o tal internato e que, hoje, se converteu em bucólico e pitoresco parque ecológico, com a preservação de parte da mata atlântica. , os antigos alunos buscam recuperar o passado, para dividi-lo entre si, em animadas conversas .
           Em uma dessas ocasiões, ele encontrou-se com um ex-colega, o J.  Arciso, com quem buscou lembrar o tempo de sala de aula, naquele ambiente de verdes e frescor. E vieram-lhes as inevitáveis perguntas: o que foi feito do Fulano, e do Sicrano, e do Beltrano? E do Célio, o que foi feito dele? Então, o J. .Arciso, atualmente, advogado em sua cidade, Colatina, no Espírito Santo, disse ter-se encontrado, casualmente, com o Célio, havia algum tempo. E detalhou: “Logo que deixou o internato, teve que abandonar os estudos para trabalhar e prover a subsistência da família. Deixou os estudos de lado”.
            Tristes notícias, amargas lembranças! Quantos mais, não tiveram a sua sorte! A vida tem, mesmo, razões que a própria razão não compreende, ou não pode compreender. Nem, por isso, deixa de ser a vida, de incógnitas, sortes e desditas. A quem cabe julgar de suas idas e voltas? A felicidade, no pensamento de Machado de Assis, pode estar no contemplar de um par de botinas rangedeiras. Quem sabe, ainda, no transportar de caixotes de cerveja, ou no amparo da família, ou, até mesmo, na aparente incógnita do destino!

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