O caso da seriema .
O tempo , um pouco mais demorado do que se esperara, revelou um penado estranho , que foi alimentado com o que se julgou mais adequado para ave , ou pássaro de maior porte , por intuição natural . Com isso, os dias foram passando e o estranho animalzinho também foi se alongando. Um bico enorme , pernas de arrepiar , que além de finas e compridas tinha coloração avermelhada. As ralas plumagens , então , era esperar para ver no que daria aquilo! A comida foi se transmudando, conforme seus donos julgassem maior a voracidade do desconjuntado penígero. Mais dias , mais meses e o bicho se fez reconhecer em sua verdadeira identidade . Tratava-se, disse um entendido , de uma seriema , que viria a ser , como se verá, um exemplar de apartamento , ou melhor , segundo alguns mais espirituosos , de campos apertados.
E o animal crescia e crescia, em tamanho e lepidez. Comida não era o que lhe faltava naquela comunidade ecologicamente correta . Empenou-se todo , firmou as alongadas pernas que cresceram o tanto que a natureza previra, para animal que deveria vagar por campos de capim duro e pontiagudos , terrenos rochosos à procura de algum réptil surdo e distraído , cobras a se esquentarem ao sol . Um penacho veio coroá-lo de rei ou rainha (ainda não se sabia) dos campos gerais , ou , no caso , daquelas áreas pouco conformes .
E pulava, como pulava o esbelto plumado, que não tinha , geneticamente, nenhuma propensão a acumular adiposidades! Simplesmente abria as asas e num átimo alcançava um ponto qualquer mais alto que a agudez de seus olhos podia divisar . Tudo isso sob os olhares maravilhados dos anfitriões , um casal de idosos que se comprazia em ter em casa um membro da família em substituição aos filhos que já havia muito alçaram vôos mais longos . Como disse alguém : “a natureza é assim , mãe perdiz solta nos descampados os filhotes para nunca mais tornar a vê-los”. Ali , era o caso (ou o acaso ): no lugar da perdiz perdida no descampado , uma seriema alvoroçada.
De seus modos voláteis nada a reclamar. Era, até, uma atração a mais, para a satisfação contemplativa do casal , tanto suas graças e trejeitos, no voejar, no abrir de asas, no aguçar do olhar. Mas uma coisa podia ser desagradável, não fosse a tolerância dos donos: os naturais hábitos campeiros da ave que não escolhia lugares para seus dejetos abundantes, mau cheirosos , corrosivos e freqüentes . Mas isso , também , ficava pela conta do ônus que se pagava pela beleza de seu porte esbelto de manequim em passarela particular .
A moça ou moço , nunca se soube nem se precisava saber , começou, um belo dia , a ensaiar uns sons estranhos , como que de saudade de alguma coisa ou lugar longínquo . Tentou e parou, para dias depois alcançar mais algum progresso em seu intento de comunicação . Ele ou ela , meses mais tarde , já afinara a voz e gritava a plenos pulmões , abaixando e levantando o pescoço para maior performance , para prazeres ou pesares , próprios a possíveis ouvintes circunvizinhos . Faltava-lhe, evidentemente , como mais tarde se veio a conhecer, um parceiro que lhe secundasse em duo musical.
O argumento pareceu forte . O abaixo-assinado não vingou. Os proprietários , sabedores de tão consistentes convicções ecológicas, vieram conhecer o autor e agradecê-lo pelo desinteressado apoio , sem que se alardeasse aos fiscais do IBAMA, que costumam requisitar aves apartadas de seu habitat natural , mesmo que tragam felicidade aos seus donos , apaziguando um pouco de sua solidão , tão presente no quotidiano desse paradoxal planalto central .
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