terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Contos contados de Brasília (4)

Restaurante universitário 

Salada de repolho roxo, cortado grosseiramente, misturado a muitos galhos de agrião (gostava de triturar, com os dentes anteriores, os talos, escutando o barulho, como bem sabem fazer os roedores), molho de cenoura, vinagre e cheiro verde, tomate em largas fatias, condimentado, grossos pedaços de mamão, como sobremesa, arroz branco, bem soltinho, feijão amarelo, amassado, bifes de carne acebolados, cozidos ao molho, suco, farinha, molho apimentado a gosto. Tudo muito abundante, com acompanhamento nutricional. Filas de estudantes aguardando a sua vez de se servir, diante de cartazes advertindo para não se servirem de porções em excesso, pois que seriam jogadas posteriormente no lixo do refeitório.
Fez, mentalmente, as contas. Há quarenta e dois anos, comera pela primeira vez em um protótipo daquele restaurante universitário, sem nunca ter revirado o nariz para dizer, como já ouvira de outros ex-alunos, que aquela comida era ruim. Sempre gostara dela, fosse o que fosse servido. Com o passar do tempo, tudo se modificara, do prédio aos cardápios e maneiras de servir. Mas, pelo que sabia, nenhum dos milhares de estudantes que por ali passaram, tivera que ser socorrido por descuido de higiene ou alimento deteriorado.
Depois das refeições, durante aquele seu primeiro semestre de 1968, costumava aproveitar a sombra das árvores do campus universitário para fazer a sesta, com um cochilo rápido em aguardo às aulas do período vespertino. Agora, quando podia, aproveitava para voltar aos velhos tempos e se infiltrar em meio aos estudantes, compartilhar com eles de um espaço à mesa e se sentir mais jovem, mesmo sabendo que sua cabeça, em quase tudo, se distanciava da de seus companheiros comensais, a começar pelos cabelos brancos, que ele fingia desconhecer.
Enquanto degustava momentos de saudade, ia observando aquelas fisionomias de jovens que bem poderiam ser seus netos. Alunos, talvez não houvesse nenhum mais, freqüentando aquele recinto, uma vez que já fazia doze anos que se aposentara, um tanto intempestivamente, sem muito refletir, diante dessas intermitências políticas, ora fazendo, ora desfazendo decisões tomadas. A sua aposentadoria, pois, nascera de uma dessas incertezas administrativas, políticas do faz-se hoje para se voltar atrás amanhã. “Se não me aposentar agora, quem sabe depois não vou poder desfrutar de uma vida mais satisfatória!” E, assim, se fez, e, assim, ficou feito.
O certo é que se arrependera, ficando, ainda com toda a capacidade de trabalho, em casa, sem compartilhar com outras pessoas toda uma bagagem de conhecimento que julgava ainda válida. Se lia algo que poderia desdobrar com os alunos, lamentava o fato. As sociedades mais primitivas valorizavam seus anciãos pelo conhecimento, fruto da experiência, que os anos ia lhes acrescentando. Hoje, com a tecnologia, não se pensa assim. O que se ganha em progresso rápido, perde-se em contatos humanos, olhares nos olhos, debates e trocas de idéias, aprendizado coletivo. O que se ganha em informação, perde-se em educação e comunicação. As pessoas se distanciam cada vez mais umas das outras, se isolam no egoísmo das telas de seus moni-tores e computadores. A auto-suficiência tem o gosto insosso do isolamento, da solidão, da sensação de inutilidade.
Mesmo que se elimine cada vez mais o papel, os talões de cheques, o papel moeda, e valoriza-se demasiadamente os títulos, conseguidos cada vez mais facilmente e abundantes, a experiência tem que ser provada e não comprovada. O velho professor, depois de anos de trabalho e dedicação não somente em sala de aula, receptivo aos alunos que o procuravam para discutirem e aprofundar um assunto, mesmo que adverso, em sua sala de estudos, já não mereceu mais de seus colegas, ao deixar suas atividades, por aposentadoria  precipitada, uma sequer palavra de agradecimento. O que parece contar são os resultados imediatos e evanescentes, e não os permanentes e indeléveis. Enquanto isso vai a sociedade do progresso perdendo a cultura humanística e a civilização. Ensino peripatético, foram-se os tempos!
No restaurante universitário, os jovens estudantes iam se escasseando, deixando lugares para as reminiscências e as saudades do retardatário. A comida, uma vez mais, foi bem digerida e trouxe o gostoso sabor da simplicidade e da eficiência. Ainda se come bem por lá, naqueles, talvez, poucos momentos de contatos humanos que, certamente, deixarão mais lembranças, daqui a quarenta anos. Daí, essa vontade de desencavar guardados:

Gostaria de sonhar com a uni-vers(al)idade,
onde se reúnam pesquisadores do bem,
e se priorize, também, mais conteúdos,
conhecimentos, como reais valores,
experiências e empenho de educadores,
mais do que doutores, como penhores,
mais do que títulos e tais aparências,
sem transparências, docências e louvores,
como ora se supõe garantam o engenho
e o renome dos verdadeiros professores.

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