terça-feira, 20 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (14)

Outra história de cachorro 

O arraial do Pântano, ou do Pantano, ou, mesmo, do Panta, de pronúncia mais cômoda, ficava nas cercanias do lugar onde moravam, questão de umas três léguas a cavalo, quando muito, ou de hora e meia de estrada puxada, aproveitando o ar da manhã que, ainda, não se deixara aquecer pelos primeiros raios do sol. O horário da missa não costumava passar das oito horas, e os padres, naquele tempo, não perdoavam desculpas de atrasos por causa das distâncias do povoado.
 De vez em quando ia um padre para celebrar a missa, atender as confissões, fazer alguns batizados e casamentos apressados. Extrema-unção e encomendações de defuntos eram casos mais esporádicos, mas também davam de acontecer. Bastava correr pelas redondezas a notícia de missa no Panta que para rumavam os tementes a Deus, para se desobrigarem e aliviarem as almas do que pensavam ser pecados e empecilhos a uma vida mais cristã. Dívidas são dívidas, e com as de Deus, sempre presente e atento aos mínimos gestos, mesmo os do escuro dos quartos, abençoados no altar, não se brinca. Carregar culpa é coisa muito ruim. Para se comungar era preciso, primeiro, se desvencilhar delas, as quais, por mais mínimas fossem, não deviam ser poucas, dados os muitos cansaços que o trabalho da roça provocavam, e a premência do sono exigia. Segundo, pelos ensinamentos dos padres e da Santa Madre Igreja, da época, que não economizavam queimaduras no inferno, valha-nos Deus, Nosso Senhor!.
Naquele dia, o casal e o filho, ainda carregado na cabeceira do arreio, saíram cedo, acompanhados pelo cachorro da casa que, não havia muito, adotaram, a pedido de um amigo, morador de cidade, que julgava o animal sofrendo com a falta do que fazer. Na roça, teria mais serventia. O bicho se afeiçoara aos novos donos e não os largava nem para se irmanar com os demais representantes da raça que, naquelas ocasiões de festa no arraial, aproveitavam para medir força e rosnarem seus ciúmes naturais.
Durante a missa o Peri ficara do lado de fora da igreja, a cabeça apoiada nas patas dianteiras e o olhar observador sobre quem entrava ou saía. Ninguém o importunou e por lá ficou, até quando o padre deu as últimas recomendações de temor a Deus. Encerrada a cerimônia, o cão esperou até que seus donos passassem diante de seus olhares submissos, para acompanhá-los aonde dirigissem seus passos. Dizem que cachorro entra na igreja por encontrá-la aberta, mas com o Peri, esse não foi o caso. Tinha brios e sabia o seu lugar na porta da capela, afastado o suficiente para não ser incomodado com possíveis “sai pra lá”, nem incomodar os fiéis com algum eventual rosnado de agravo, ou ganido de dor nas costelas.
Ali por perto ficava a casa de uma sobrinha do Silvestrão, a Doralinda, conhecida do casal, mas não do cachorro. Aproveitaram para fazer-lhe uma visita. A Doralinda era muito popular no arraial, e sua casa era grande, mas costumava abrigar mais gente do que permitia. Se em igreja cachorro entra por apanhar a porta aberta, desta vez, o Peri não teve outra escolha senão entrar, também, na casa, e se postar aos pés da dona, sempre de cabeça por sobre as mãos e o olhar de expectativa e piedade.

Ocorre que o Silvestrão, tio da anfitriã, veio vindo, entrando da banda da rua. Sem se dar pela presença do animal, tropeçou-se nele. Dando-lhe um pontapé nas traseiras, enxotou-o dali pra fora, enquanto esbravejava: ”Quem é o dono dessa assombração?” Minha mãe, que nunca deixava o mingau esfriar na beirada do prato, nem a língua pregar-lhe no céu da boca, respondeu de rompante e o olhar fuzilante: “Essa assombração é minha! Se quiser passar, passe por cima!” Diante do acontecido e da sem-gracesa geral, o jeito foi se retirar, em busca do marido e do caminho de casa.
A amizade com a Doralinda arrefeceu, e com o Silvestrão esfriou de vez. Em casa, quando o assunto girava sobre história de cachorro, sobretudo lá pelos arruados do Panta, minha mãe acrescentava que lugar de cachorro de roça é na porta da igreja, ou do lado de fora das casas, talvez arrependida da língua solta que, por natureza, não podia deixar de ter.

Nenhum comentário: