sábado, 10 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (12)

Bois de coice, bois de guia

Carros de bois que despertaram variadas emoções, e ainda despertam vivas lembranças em quantos nasceram e pisaram o chão desse sertão mineiro! Não havia carapina qualquer a trabalhar a madeira de um carro com capricho e arte, ou um qualquer oficial ferrador a ferrá-lo com tal esmero, para não bambear os cravos nos altos e baixos dos mais variados terrenos e sulcadas estradas carreiras das antigas fazendas. E os bois, então, que juntos puxaram o sustento de quantos ainda carregam, no corpo e na alma, o vigor dos alimentos saudáveis, que a natureza prodigaliza àqueles que a respeitam!?.
“Arruma, Chitão! Vamos lá, Pavão!” Conserta, Faceiro! Rompe, Mineiro! E o canto monocórdio, continuado e tristonho do carro de bois ia dando vida àqueles silêncios imensos dos altos e planos, segundo o orquestravam bois e carreiro em sintonia de saudades.
Junta de bois era a de coice, mais pesados para sustentarem no pescoço o peso do cabeçalho do carro carregado de madeira ou de milho, para o desviarem, se preciso fosse, a poder do ferrão, dos moirões das porteiras, ou o rabearem, na hora de o descarregar frente ao paiol. Bois da junta de guia, que obedeciam ao comando do candeeiro, que lhes indicava o caminho. Só de ida, que na volta, podia-se largar a dianteira, que eles já decoraram a estrada. Estes faziam mais força, esticavam mais o pescoço, resfolegando para buscarem mais ar, sob a pressão da brocha e dos canzis. Quando, na descida de morro, esfolavam os cascos das mãos para segurarem, com a aguilhada em riste, afrontando-lhes os chifres, o impulso do peso do carro. , as outras juntas, as de de guia, de chaveia, por exemplo, tinham menor poder de responsabilidade na lida do carro. Era ali a escola, que as amansava e as fazia aprender a obediência ao carreiro e as disciplinas do ofício.
Dois bois fizeram nomes no carro de meu pai: o Mineiro, curraleiro azulegado, de pescoço curto e grosso, sem corcova, chifres de agulha, pernas e mãos de músculos endurecidos e fortes, e o Japão, branco, barbelado, cupim proeminente, que o remontava a um passado de marruá reprodutor, depois castrado para esta outra serventia. Os dois eram em tudo diferentes, nas formas como na cor, nas feições como nas intenções, igualados, porém, na força, porque, na canga, um boi não podia fazer mais força do que o outro, sob pena de deixar o companheiro nos chifres daquele que lhe vinha logo atrás, resfolegante e maldoso.
O Mineiro tinha fama de brigão e desafiava qualquer oponente, às turras, para a briga. Havia que se cuidar para não deixá-lo medir força com boi marruco, enciumado, para este não sair em desvantagem. Boi reprodutor que não agüenta o tranco numa disputa com boi castrado, sem poder defender seu terno de fêmeas, fica humilhado e se acovarda até na hora de cumprir com a obrigação. O Japão, não se sabe ao certo, se pelo seu passado de procriador frustrado, ou pelo peso que se lhe ia suplantando as forças, não durou muito tempo na boiada carreira de meu pai. Enquanto o primeiro ficou com a fama de forte e bom de briga, quando livre da aguilhada do carreiro, o segundo fadou-se ao esquecimento.
Mais juntas havia. Carro de bois com somente duas parelhas por aqueles lugares de morros e ladeiras era imagem rara, para não dizer impossível. O correto, mesmo, e bonito, consistia em ver atreladas, de cangas e ajoujo, pelo menos cinco, reservando as posições do meio da formação aos bois menos pesados e ainda neófitos na lida com o carro, como já dito.
O carreiro tinha que ser experiente, com maturidade e astúcia suficientes para mandar bois e carro em caminhos os mais desconcertados. Carreiro bom por aquelas bandas do Santo Antônio das Minas Vermelhas tinha nome: Nego do Jacinto. Os olhos atentos, apesar da atávica timidez, que mantinha afastados do interlocutor, não o afastavam, paradoxalmente, da imprescindível ascendência com os bois. Nunca boi amuador, diante do esforço, na subida de morro, podia deitar e deixar o companheiro sufocado na brocha dos canzis pela desatenção de sua vara alongada. 
O candeeiro, quase menino, de aguilhada nos ombros ou em riste, batia na canga dos bois de guia, para os chamar na direção certa. Quantas vezes, eu-menino tinha que equilibrar em minhas botinas de sola de couro lisa, melada e escorregadia por sobre o meloso seco, para não me deixar apanhar nos chifres daquela dupla de bois, que, no aprumo do morro, vinha bufando de cabeças baixas, sob o peso do carro chiante, carregado de estacas de madeira recém tiradas do mato da Perobinha, sob os mandos prementes dos carreiros, que o ladeavam de varas de ferrão em punho, para não deixá-lo parar no esconso do morro, até que, no momento certo, um “Ôoooa” dava um fôlego aos bois, sufocados na brocha para depois recomeçarem um novo e enorme esforço de ganharem o alto da estrada carreira, onde podiam ritmar o tom do canto do carro ao atrito dos corações, apaziguados no vital oxigênio. Naquele momento, o menino candeeiro podia largar, de zás, seu posto, à frente da boiada, para vir descansar as pernas curtas, assentado no recavém do pesado veículo.
O carro de bois, aos poucos, foi se emudecendo, minguando o canto, originário de eixo e cocões, e apagando o cheiro embalsamado do chumaço.  Eu-menino me arrebanhei para outros cantos e fatos de largas vidências. Só, agora, revivo as lembranças e os calos das longes andanças.
          “Vem, Florão! Afasta, Mineiro! Conserta, Pavão! Arruma, Faceiro, que a vida segue seu tanto!

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