Bois de coice , bois de guia
“Arruma, Chitão ! Vamos lá, Pavão !” Conserta, Faceiro! Rompe, Mineiro! E o canto monocórdio, continuado e tristonho do carro de bois ia dando vida àqueles silêncios imensos dos altos e planos, segundo o orquestravam bois e carreiro em sintonia de saudades.
Junta de bois era a de coice , mais pesados para sustentarem no pescoço o peso do cabeçalho do carro carregado de madeira ou de milho, para o desviarem, se preciso fosse, a poder do ferrão, dos moirões das porteiras, ou o rabearem, na hora de o descarregar frente ao paiol. Bois da junta de guia, que obedeciam ao comando do candeeiro, que lhes indicava o caminho. Só de ida, que na volta, podia-se largar a dianteira, que eles já decoraram a estrada. Estes faziam mais força, esticavam mais o pescoço, resfolegando para buscarem mais ar, sob a pressão da brocha e dos canzis. Quando, na descida de morro , esfolavam os cascos das mãos para segurarem, com a aguilhada em riste, afrontando-lhes os chifres , o impulso do peso do carro. Já , as outras juntas , as de pé de guia , de chaveia, por exemplo , tinham menor poder de responsabilidade na lida do carro. Era ali a escola, que as amansava e as fazia aprender a obediência ao carreiro e as disciplinas do ofício.
Dois bois fizeram nomes no carro de meu pai : o Mineiro , curraleiro azulegado, de pescoço curto e grosso, sem corcova , chifres de agulha, pernas e mãos de músculos endurecidos e fortes , e o Japão, branco, barbelado, cupim proeminente, que o remontava a um passado de marruá reprodutor , depois castrado para esta outra serventia. Os dois eram em tudo diferentes, nas formas como na cor , nas feições como nas intenções, igualados, porém, na força , porque , na canga, um boi não podia fazer mais força do que o outro, sob pena de deixar o companheiro nos chifres daquele que lhe vinha logo atrás , resfolegante e maldoso.
O Mineiro tinha fama de brigão e desafiava qualquer oponente , às turras , para a briga . Havia que se cuidar para não deixá-lo medir força com boi marruco, enciumado, para este não sair em desvantagem . Boi reprodutor que não agüenta o tranco numa disputa com boi castrado, sem poder defender seu terno de fêmeas, fica humilhado e se acovarda até na hora de cumprir com a obrigação . O Japão, não se sabe ao certo , se pelo seu passado de procriador frustrado, ou pelo peso que se lhe ia suplantando as forças , não durou muito tempo na boiada carreira de meu pai . Enquanto o primeiro ficou com a fama de forte e bom de briga, quando livre da aguilhada do carreiro, o segundo fadou-se ao esquecimento.
Mais juntas havia. Carro de bois com somente duas parelhas por aqueles lugares de morros e ladeiras era imagem rara, para não dizer impossível. O correto, mesmo, e bonito, consistia em ver atreladas, de cangas e ajoujo, pelo menos cinco, reservando as posições do meio da formação aos bois menos pesados e ainda neófitos na lida com o carro, como já dito.
O carreiro tinha que ser experiente, com maturidade e astúcia suficientes para mandar bois e carro em caminhos os mais desconcertados. Carreiro bom por aquelas bandas do Santo Antônio das Minas Vermelhas tinha nome: Nego do Jacinto. Os olhos atentos , apesar da atávica timidez, que mantinha afastados do interlocutor, não o afastavam, paradoxalmente, da imprescindível ascendência com os bois. Nunca boi amuador, diante do esforço, na subida de morro, podia deitar e deixar o companheiro sufocado na brocha dos canzis pela desatenção de sua vara alongada.
O candeeiro, quase menino, de aguilhada nos ombros ou em riste , batia na canga dos bois de guia , para os chamar na direção certa. Quantas vezes, eu-menino tinha que equilibrar em minhas botinas de sola de couro lisa, melada e escorregadia por sobre o meloso seco , para não me deixar apanhar nos chifres daquela dupla de bois, que , no aprumo do morro , vinha bufando de cabeças baixas, sob o peso do carro chiante, carregado de estacas de madeira recém tiradas do mato da Perobinha, sob os mandos prementes dos carreiros , que o ladeavam de varas de ferrão em punho , para não deixá-lo parar no esconso do morro, até que , no momento certo , um “Ôoooa” dava um fôlego aos bois , sufocados na brocha para depois recomeçarem um novo e enorme esforço de ganharem o alto da estrada carreira, onde podiam ritmar o tom do canto do carro ao atrito dos corações, apaziguados no vital oxigênio. Naquele momento, o menino candeeiro podia largar, de zás, seu posto, à frente da boiada, para vir descansar as pernas curtas, assentado no recavém do pesado veículo.
O carro de bois, aos poucos, foi se emudecendo, minguando o canto, originário de eixo e coc ões, e apagando o cheiro embalsamado do chumaço. Eu-menino me arrebanhei para outros cantos e fatos de largas vidências. Só, agora, revivo as lembranças e os calos das longes andanças.
“Vem, Florão! Afasta,
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