quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Contos Contados de Minas (9)


Avós paternos do autor, pais da 1ª tia

Um polaco, na madrugada do meu avô
(In memoriam de Isordina Caixeta, 1ª de sua geração de Caixetas, finada em 20/8/2011)

Meu avô agonizava, em um quarto escuro, à luz de lamparina, as largas e altas janelas fechadas para não deixarem entrar a aragem fresca da escuridão de uma madrugada triste. O cavalo-madrinha da tropa batia, num continuum, o polaco, no curral, ao lado da casa grande. Não se sabe se de tristeza, ou se apenas para acostumar os ouvidos dos outros animais, na maioria burros e mulas, com o som daquele instrumento pouco sonoro e mais parecido com o silêncio estranho de outros mundos. Quem quiser tirar disso uma prova basta-lhe andar pelas estradas de Galícia e Portugal, conferindo aquela sonoridade, que parece vir do fundo dos tempos e de páramos etéreos.
 Contrariamente aos hábitos daquelas regiões, meu avô gostava de tocar umas modas de viola, instrumento que ganhara de um tio da mulher. (Quando pego na viola / pra tocar umas modinhas / lembro-me bem de você / minha doce Sinhazinha. Ou,  então: Peguei na viola / comecei a cantar / ela assentou-se ao meu lado /  pra melhor me ajudar). Pouco se sabe de suas alegrias ou tristezas, uma vez que morreu cedo, com apenas 36 anos de idade. O som do polaco, no pescoço do cavalo-madrinha, deu ao moribundo, naquela noite, a nota final para o mote da viagem que acabou fazendo, antes de uma outra que ainda estava nos preparativos para os dias próximos.
Guimarães Rosa, em seu "Cara de Bronze", soube traduzir aquela cena lúgubre, que trago comigo das lembranças que me contou uma tia, filha mais velha de meu avô, que, à época, contava apenas 10 anos de idade. Meu pai, o segundo de uma nova geração de Caixetas, ficara com 8, além da responsabilidade de conduzir os negócios do pai e da mãe, viúva aos 27 anos de idade.
O moribundo havia realizado outras viagens a Formosa dos Couros, na longínqua Goiás, para comprar gado. Aguardavam-no a tropa reunida, as selas revistas, as mulas de carga escolhidas, os burros e animais de sela repassados, os apetrechos de cozinha, os peões, os acompanhantes, o cozinheiro, e, sobretudo, o cavalo-madrinha, que, mais experiente, devia fazer o ponto de união da tropa, nas passagens difíceis dos gerais, sem cercas nem beiras, e muita poeira nas longas marchas estradeiras.
Meu avô pouco se importava com alguns problemas de saúde que a sorte o fizera carregar. Um deles provinha de acidente com uma roda de carro de boi desgarrada do eixo, que passara sobre seu quadril, amassando-lhe os rins. Devido a esta fatalidade, nunca “prestara”, e havia mesmo ocasião em que precisava pedir ajuda a uma bacia de água, postada ao lado da cama, para estimular-lhe a premência de urinar. O ruído do líquido, certamente, lhe facilitava o fluxo. Outro incidente, este de fogo vindo do céu, sob forma de raio em dia de tempestade, lhe queimara o peito, vitimando o burro que montava. O choque deve ser sido, mesmo, fulminante para alguns de seus debitados órgãos urinários, pelo que se contou e pelo tempo que ainda durou. E, naquela noite de 2 de fevereiro, já no segundo casamento, 6 filhos, enquanto o cavalo-madrinha fazia soar o soturno polaco no curral, meu avô morria.
            Fazendeiro de largas datas, dinheiro e respeito, Seu Antônio Pereira já o havia desaconselhado a enfrentar dias compridos no lombo de burro até a famosa cidade goiana, para a compra do gado. “Deixa de lado essa viagem tão desconfortável e vamos de automóvel, que é mais rápido. compramos a boiada, e os peões, gente mais moça, a vêm tangendo por esses caminhos desconcertados.” Meu avô, porém, ainda acreditava na pouca idade e forças, que outros sabiam minguadas. Declinou do convite. Estava convencido de que, apesar das limitações de que tinha consciência, ainda podia durar mais uns pares de anos. A mulher nova e os filhos pequenos, um dos quais ainda por nascer, lhe inspiravam sobrevida. A viagem estava de pé, e a peonada, reunida na fazenda, escolhia os animais da comitiva. O madrinha da troca impunha respeito e fazia soar seu cincerro para acostumar os companheiros com o som do instrumento agregador.
O pagamento, em dinheiro vivo, ficaria na confiança que sempre depositava no Geromo Bina, depois do gado comprado e transladado. Os assentamentos, em letra caligrafada, sempre bem guardados na gaveta do armário de bálsamo, que dividia a sala dos espaços do vasto salão, atestava a seriedade com que trazia os negócios. Na primeira página do caderno, uma nota confirmava: “hoje, 2 de fevereiro de 1910, eu, Anicésio Vieira Machado, completo 20 anos de idade”. Um pouco mais abaixo, alguns apontamentos: “comprei do fulano de tal tantas cabeças de gado, por tanto, com pagamento para a data tal”.
Meu avô era, assim, homem organizado, de posses, dono de fazenda com nome peculiar de “Fulminante”, terra desacreditada e, depois de seu passamento, objeto, até, de gracejo, como mais apropriada para se criar tamanduá-bandeira. Entretanto, a ironia não viria pela vertente dos bens terrenos, mas por  ter sido o próprio dono, em parte, morto, fulminado por um raio que lhe diminuiu a vida ainda na flor dos anos.

3 comentários:

Luciana Caixeta disse...

Nossa pai, o nome fulminante veio depois do fato ocorrido com seu avô? Não sabia dessa história! Que triste! Como seu avô sofreu! Uma roda de boi passou em cima do seu quadril e depois foi atingido por um raio? Faleceu tão novo! Apesar de triste, bonita história!

antcaix disse...

Que história fascinante!!!

antcaix disse...

Pesquiso a Família Caixeta há 30 anos! Quais os nomes completos de seus pais e avós?