quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Contos contados de Minas (27)


O cavalo branco

Sem nome, velhaco, assustado, o cavalo branco não entrava no curral, a não ser na base do grito ou nas ameaças de pedradas no lombo. Abaixar e simular a cata de algo para acertar-lhe as costas já o fazia correr para as beiras do curral. Coitado! Já devia ter levado, anteriormente, umas boas pedradas nos costados. Era ruim de cela, trotão e servia mesmo para a lida mais severa, nas proximidades do terreiro. E olhe , que o chão é, quase em toda a parte, demasiado duro!
Quem andava nele mesmo era o Gê, que ainda tinha o desplante de dizer que eu, embora vivendo longe, é que costumava cavalgá-lo, mais do que ele próprio. É certo que fiz, em seu dorso, uma viagem um pouco mais longa, lá pelos lados das nascentes do Espírito Santo. Fui em companhia do próprio Gê, à busca de um outro animal que se encontrava com o Geraldinho, amansador de cavalos, muito respeitado pelo pessoal da redondeza.
A tal animália em preparo de sela, era o Pampa, recém amansado, forte, bom de porte, vistoso, mas, pelas referências do Geraldinho,  não tinha jeito de ser mais ruim de montaria. Ninguém conseguiria, como, por sinal, não conseguiu, utilizá-lo como animal de cavalgadura. Parecia trepidação de carro de pneu em estrada de chão batido, cheia de costelas de vaca, destas de dar aos motoristas com os cocurutos no teto do veículo. Talvez uma carroça lhe teria sido de boa monta, porque muita força ele tinha. Isso, depois de vencida a magreza, é claro, dos dias de doma. Acabou sendo vendido por muito pouco dinheiro, para deixar de só amolar as éguas e passar aos descendentes os gens de trotão, que não era de todo privado de seus dotes os mais naturais. Não teve história, nem sequer deixou rebentos. Foi vendido não se sabe como, e deve ter findado seus dias no esquecimento ou em alguma lataria de embutidos.
Como dizia, no cavalo branco, pouco andei, uma vez que, nas poucas vezes que fui à Fulminante, não o encontrei à minha disposição, por estar em outros campos, no Brejo Comprido, por exemplo, com os demais cavalos de , não se sabe por quê! Ou se sabe, para não dizer!
Desde quando o vi, gostei de seu porte, de seu jeito de trotar, a cabeça e o rabo levantados, corpulento, as pernas firmes e fortes, cheio de vitalidade, aspectos pouco presentes em um animal já desprovido de suas capacidades reprodutivas. Talvez por admirá-lo, assim, passaram a dizer que o cavalo era meu, por doação de minha mãe, que desde a morte de meu pai, veio ser também a dona dos animais machos. Antes só era das éguas, à época, de valor somente para dar crias, preferencialmente, a potrinhos másculos.
No começo, cheguei até a me acostumar com a idéia da posse, pois, afinal, eu também era filho de minha mãe, que dele jamais fizera uso. Entretanto, fui perdendo a crença por ser um cavalo de andar duro, e por quase nunca ficar sob minha custódia e serventia. Cavalo não pode estar à mercê de modos diferentes de lida. Normalmente, se afeiçoa à pessoa que o maneia, e passa a compartilhar um pouco de sua personalidade, diferentemente, de um muar que, no dizer geral, é animal do sereno, de temperamento híbrido, de sangue misturado. Se aquele não entende duas linguagens, este não compartilha língua nenhuma. O Branco passou a entender os modos do Gê, e a obedecer a ralhados, além de tapas nas ancas e outros menores sustos.
Além de matreiro e espantado, fungava. Olhava de lado na hora de encilhá-lo e emitia aquele barulho esquisito com as ventas, parecendo dizer para o desavisado: “cuidado comigo, que não sou de dar trelas a confiança, e bem posso aprontar uma com você, que nem sabe jogar a sela com a devida desenvoltura!” Mas passava de mera impressão. No fundo, era bom animal, até dócil, uma vez encima dele. , ali, se podia sentir firmeza e segurança. Aliás, este estranho proceder se explicava pelos tratos que sempre tivera, desde quando viera do amansador. O tinha um pensar, de que a solução para animal velhaco era taca. E como o Branco nunca pôde distinguir outras maneiras de ser tratado, se com carinho, se com ralhado, ameaças de tapa nas ancas, o jeito de impor algum respeito era fungar, tremer o couro do lombo, parecendo insinuar a que se procurasse outro cavalo qualquer em seu lugar, para o que fosse preciso.
Poucas vezes, tentei conquistá-lo, demonstrar-lhe boas intenções, fazê-lo gostar de mim. Colocava-o em curral separado, fixava o olhar no seu, e ia conversando com ele, a mão cheia do agrado de que mais gostava: sal mineral. De longe ele percebia o que lhe estava sendo oferecido em troca de amistosa aproximação. Esticava as orelhas, adocicava o olhar, distendia as orelhas, demonstrando todo o interesse em lamber o petisco. Naquele querendo sem querer, ele vinha, eu ia. Ele cedia um passo de , eu outro de , até ele cheirar o mimo irresistível. Antes, porém, tinha que me deixar acariciar-lhe o focinho, o que consentia depois de muito relutar.
Conseguimos grandes progressos, que, infelizmente, se revelavam pouco producentes, devido às minhas longas ausências e às suas fatais recaídas, e conseqüentes rebeldias.
Em uma de minhas raras saídas no cavalo branco, o senti mancar. Parecia que tinha algo no casco. Uma pedra, talvez, poderia ter-se enfiado em uma das fendas da unha, causando-lhe desconforto. Cavaleiro mais perspicaz costuma retirá-la com um canivetão, desses que se guarda em bainha presa à cintura. Mas a providência, ali, não foi tomada, até porque o Branco não daria a pata ofendida, assim, facilmente, para quem temia o barulho de suas fungações desaprovadoras. O melhor mesmo era deixá-lo inativo, a um canto, para ver se a manqueira desaparecia, ou, mesmo, que a pedra caísse, por si só, nos desvãos dos caminhos pedregosos daquelas alturas.
A dúvida persistiu até que o Gui, um vizinho, que não saía de cima de cavalo, contrastando seus antepassados, inconfundíveis pedestres, apareceu lá na beira do curral, e, com o olhar furão, perguntou: “Uai, sô, o que aconteceu com o daquele cavalo, inchado daquele jeito?” Era o modo de falar, pois o Gui conhecia o cavalo branco, de outra feita, quando o desvencilhou de uma maçaroca de arame farpado, que só faltou-lhe rotular uma das patas traseiras, por sinal, aquela onde o inchaço ora se evidenciava.
Foi que eu dei do propalado “defeito” do Branco, e fui logo decretando que em cavalo machucado não se andaria mais. Mas ordem de quem apenas se faz de dono não pega no pano. Além do mais, os interessados na possível serventia do animal vieram a dizer que ele sempre apresentara aquela ”ova” no tornozelo traseiro, e que isso não era empecilho para o trabalho. Com ova ou sem ova, o certo é que eu falei: “daqui pra frente o correto é deixá-lo sem sofrer. Afinal, dor é dor e, em qualquer vivente dói, para avisar que onde dói há algo a se curar. O tempo o fará livrar-se da claudicância”.
Mas, acharam que o melhor seria vendê-lo, coniventes com a provável falta de escrúpulos dos futuros donos em deixar aumentar-lhe o sofrimento. Esse foi o desenlace para o que ainda não encontrara solução. Vale dizer, no caso, o dito: "o que não está remediado, remediado está".
Hoje, penso, com saibo de omissão: melhor teria sido, para o cavalo branco, ficar sob meus olhares, enquanto sua avançada idade fosse permitindo, sem se entregar a maus tratos, de quem não tem sensibilidade com as dores alheias. Preferível vê-lo rodear a casa, de olhar malicioso, e pescoço encurvado, para melhor julgar da intenção de quem lá vinha. Pelo menos, assim, deveria impressionar os visitantes com aquele porte majestoso, altivo, como se garanhão ainda fosse.
           A soma de duzentos reais, pela sua estampa, nas fotos que deixou, sobejamente, pagaria. Foi-se o cavalo branco, para não ser mais lembrado, mas ficou a frustração do desafio da conquista de mútua confiança.

Um comentário:

Rosa disse...

Oi Joaquim, a Fulminante tem história! E eu que pensava que o cavalo branco fosse de Napoleão! Beijinhos, sucesso na literatura.