O cavalo branco
A tal animália em preparo de sela, era o Pampa , recém amansado, forte , bom de porte , vistoso , mas , pelas referências do Geraldinho, não tinha jeito de ser mais ruim de montaria. Ninguém conseguiria, como , por sinal , não conseguiu, utilizá-lo como animal de cavalgadura . Parecia trepidação de carro de pneu em estrada de chão batido, cheia de costelas de vaca , destas de dar aos motoristas com os cocurutos no teto do veículo. Talvez uma carroça lhe teria sido de boa monta , porque muita força ele tinha . Isso , depois de vencida a magreza , é claro , dos dias de doma . Acabou sendo vendido por muito pouco dinheiro, para deixar de só amolar as éguas e passar aos descendentes os gens de trotão, já que não era de todo privado de seus dotes os mais naturais. Não teve história , nem sequer deixou rebentos. Foi vendido não se sabe como, e deve ter findado seus dias no esquecimento ou em alguma lataria de embutidos.
Como dizia, no cavalo branco , pouco andei, uma vez que , nas poucas vezes que fui à Fulminante , não o encontrei à minha disposição , por estar em outros campos , no Brejo Comprido , por exemplo, com os demais cavalos de lá , não se sabe por quê ! Ou se sabe, para não dizer!
No começo , cheguei até a me acostumar com a idéia da posse , pois , afinal , eu também era filho de minha mãe , que dele jamais fizera uso. Entretanto , fui perdendo a crença por ser um cavalo de andar duro , e por quase nunca ficar sob minha custódia e serventia . Cavalo não pode estar à mercê de modos diferentes de lida . Normalmente , se afeiçoa à pessoa que o maneia, e passa a compartilhar um pouco de sua personalidade, diferentemente, de um muar que , no dizer geral, é animal do sereno , de temperamento híbrido, de sangue misturado. Se aquele não entende duas linguagens, este não compartilha língua nenhuma. O Branco passou a só entender os modos do Gê, e a obedecer a ralhados, além de tapas nas ancas e outros menores sustos.
Poucas vezes , tentei conquistá-lo, demonstrar-lhe boas intenções , fazê-lo gostar de mim . Colocava-o em curral separado, fixava o olhar no seu, e ia conversando com ele , a mão cheia do agrado de que mais gostava: sal mineral . De longe ele percebia o que lhe estava sendo oferecido em troca de amistosa aproximação . Esticava as orelhas , adocicava o olhar , distendia as orelhas , demonstrando todo o interesse em lamber o petisco . Naquele querendo sem querer , ele vinha , eu ia. Ele cedia um passo de lá , eu outro de cá , até ele cheirar o mimo irresistível . Antes , porém , tinha que me deixar acariciar-lhe o focinho , o que só consentia depois de muito relutar .
Conseguimos grandes progressos , que , infelizmente , se revelavam pouco producentes , devido às minhas longas ausências e às suas fatais recaídas, e conseqüentes rebeldias.
A dúvida persistiu até que o Gui, um vizinho, que não saía de cima de cavalo , contrastando seus antepassados, inconfundíveis pedestres, apareceu lá na beira do curral, e, com o olhar furão, perguntou: “Uai , sô, o que aconteceu com o pé daquele cavalo , inchado daquele jeito ?” Era só o modo de falar , pois o Gui já conhecia o cavalo branco , de outra feita, quando o desvencilhou de uma maçaroca de arame farpado, que só faltou-lhe rotular uma das patas traseiras , por sinal , aquela onde o inchaço ora se evidenciava.
Foi aí que eu dei fé do propalado “defeito ” do Branco, e fui logo decretando que em cavalo machucado não se andaria mais . Mas ordem de quem apenas se faz de dono não pega no pano . Além do mais , os interessados na possível serventia do animal vieram a dizer que ele sempre apresentara aquela ”ova ” no tornozelo traseiro , e que isso não era empecilho para o trabalho. Com ova ou sem ova , o certo é que eu falei: “daqui pra frente o correto é deixá-lo sem sofrer . Afinal , dor é dor e, em qualquer vivente dói, para avisar que onde dói há algo a se curar. O tempo o fará livrar-se da claudicância”.
Mas, acharam que o melhor seria vendê-lo, coniventes com a provável falta de escrúpulos dos futuros donos em deixar aumentar-lhe o sofrimento . Esse foi o desenlace para o que ainda não encontrara solução. Vale dizer, no caso, o dito: "o que não está remediado, remediado está".
A soma de duzentos reais, só pela sua estampa, nas fotos que deixou, sobejamente , pagaria. Foi-se o cavalo branco , para não ser mais lembrado, mas ficou a frustração do desafio da conquista de mútua confiança.
Um comentário:
Oi Joaquim, a Fulminante tem história! E eu que pensava que o cavalo branco fosse de Napoleão! Beijinhos, sucesso na literatura.
Postar um comentário