terça-feira, 18 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (17)

Caso de onça

Finjo que tudo aconteceu como o fato se deu, mas não é bem assim. Quem conta um conto aumenta um ponto, uma vírgula, um tanto, para tentar dar ao relato uma veracidade que não mais existe, a não ser na mente do  próprio contista.  Como disse Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor / que finge tão completamente que é dor / a dor que deveras sente”. A cada instante, o fato narrado muda de figura e tom, na cabeça do autor-contador. Ele inventa, e procura se reaproximar do real. O ficcionista faz da verdade uma mentira, que atrai mais pelo como se conta, do que pelo como se deu o acontecido. Da verdade doída e, até, raivosa, cria-se a mentira sã e dadivosa. Do real, faz-se a ficção, para o prazer da leitura, ou da audição.
Destarte, o contador não tinha nenhuma dúvida, e garantia: “era mesmo onça e das “bitelas”. Assim, ó”, e fazia o gesto com os braços em curva, que mesmo não sendo compridos, devido à sua pouca envergadura, ao se encontrarem nas pontas dos dedos, davam bem a dimensão avantajada da cabeça do animal... E repetia de novo o gesto, enquanto interrompia o relato, os olhos bem acesos, arregalados, para se assegurar da estupefação que seus modos causavam nos ouvintes. “Da ponta do rabo, até a extremidade das orelhas, a bicha tinha mais de dois metros. Isso mesmo, mais de dois metros, e, ainda por cima, era preta, a mais perigosa das onças”. Para ele, onça pintada era a fêmea, e, onça preta, o macho. Por conseguinte, mais forte e de porte maior. Ele sabia, onça é bicho que se encontra para acasalamento, como gato, jaguatirica, e que a fêmea é mais perigosa quando está de filhote. Em outras situações, na ora de onça beber água, no comum, no socavão dos matos, o macho pode ser mais perigoso. Ali era o caso, onça preta, na beira d´água, solitária em noite sem lua, escura que nem breu, topado.
Mas ele, Etelvino Cassiano, nunca teve medo de onça, até porque andava no mato com uma garrucha de dois canos presa à cinta, sempre carregada. E, depois, ele sabia, notícia de onça corre ligeiro, que uma onça andava fazendo estragos nas redondezas. Na ocasião, ele estava trabalhando com mais alguns companheiros na capina de uma roça e dormiam em um rancho de sapé, improvisado, coberto por cima com folhas de coqueiro e aberto dos lados. De noite, era aquela disputa para ver quem é que ia dormir no meio ou na beirada. Se a danada viesse, o da beirada sumiria primeiro, assim como em fila, o último é atacado por primeiro pela onça traiçoeira. Diz-se, até, que os índios costumavam camuflar de folhas verdes o último da fila para enganar o felino. “Andava, até, de fasta". Assim, ele explicou, naquela noite de relatos, com demorados olhares de cantos de olhos.
Intercalando as pausas de silêncio, para o suspense necessário, ele contou que, um dia, o animal veio fazer uma visita ao acampamento, mas ficou a uma certa distância, do outro lado da grota, onde os roceiros se abasteciam de água, observando e estudando para ver o melhor jeito de agir para conseguir seu tanto, de prândio e água. Foi , que ele, o da beirada, se deu conta de seus dois olhos alumiando no escuridéu, e resolveu a enfrentar a desavergonhada.
Levantou, devagarzinho, com a garrucha na mão. Caminhou para a banda do bicho e atirou no meio das duas brasas acesas. Um tiro e tão certeiro, sabia, que jogou a garrucha de lado, para apanhá-la depois, como iagual ao gesto que fazia, ali, com as mãos desimpedidas. Não precisava de outro tiro, que para isso não existia ninguém como ele, no lugar. Ouviu, ainda, um barulho de corpo escorregando por sobre gravetos e capim seco, e voltou para dormir, que no breu não era mesmo possível constatar se o bicho era, mesmo, grande, fêmea ou macho. Macho, devia de ser, pelo peso no desabar.
No dia seguinte, pela manhã, é que pode avaliar com precisão o acontecido. Era mesmo o que tinha pensado. A onça era das grandes, “a cabeça, ó, era isso”, e abria os braços recôncavos, o mais que podia, para causar maior espanto. Os ouvintes guardavam o silêncio à espera do resultado do relato. O corpo ao escorregar pelo barranco foi fazendo aquela “massada”, o sangue regando o trilheiro até o ponto da aguada. No meio da testa, o buraco escuro da bala, o sangue pisado. “Essa foi a maior das onças que matei, mas tem mais.” E seus olhos brilhavam de encontro àqueles dos presentes, hirtos e calados, se nem tanto por medo, pelo menos pelo ato do ouvir e do contar.
          Mentiras? Balelas? Isso é que não! Contador de Histórias não mente! O que mente é a mente doente, que pensa ser mentira o que o mentiroso deveras sente.

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