Caso de onça
Finjo que tudo aconteceu como o fato se deu, mas não é bem assim . Quem conta um conto aumenta um ponto , uma vírgula , um tanto , para tentar dar ao relato uma veracidade que já não mais existe, a não ser na mente do próprio contista . Como disse Fernando Pessoa , “o poeta é um fingidor / que finge tão completamente que é dor / a dor que deveras sente”. A cada instante , o fato narrado muda de figura e tom, na cabeça do autor-contador. Ele inventa , e procura se reaproximar do real . O ficcionista faz da verdade uma mentira, que atrai mais pelo como se conta, do que pelo como se deu o acontecido. Da verdade doída e, até, raivosa, cria-se a mentira sã e dadivosa . Do real, faz-se a ficção, para o prazer da leitura, ou da audição.
Intercalando as pausas de silêncio, para o suspense necessário , ele contou que , um dia , o animal veio fazer uma visita ao acampamento , mas ficou a uma certa distância , do outro lado da grota , onde os roceiros se abasteciam de água , observando e estudando para ver o melhor jeito de agir para conseguir seu tanto , de prândio e água . Foi aí , que ele , o da beirada, se deu conta de seus dois olhos alumiando no escuridéu, e resolveu a enfrentar a desavergonhada .
Levantou, devagarzinho, com a garrucha na mão . Caminhou para a banda do bicho e atirou no meio das duas brasas acesas. Um tiro só e tão certeiro, sabia, que jogou a garrucha de lado, para apanhá-la depois, como iagual ao gesto que fazia, ali, com as mãos desimpedidas. Não precisava de outro tiro , que para isso não existia ninguém como ele , no lugar. Ouviu, ainda, um barulho de corpo escorregando por sobre gravetos e capim seco, e voltou para dormir , que no breu não era mesmo possível constatar se o bicho era, mesmo, grande, fêmea ou macho. Macho, devia de ser, pelo peso no desabar.
No dia seguinte , pela manhã , é que pode avaliar com precisão o acontecido. Era mesmo o que tinha pensado. A onça era das grandes , “a cabeça , ó, era isso”, e abria os braços recôncavos, o mais que podia, para causar maior espanto . Os ouvintes guardavam o silêncio à espera do resultado do relato. O corpo ao escorregar pelo barranco foi fazendo aquela “massada”, o sangue regando o trilheiro até o ponto da aguada. No meio da testa , o buraco escuro da bala, o sangue pisado. “Essa foi a maior das onças que matei, mas tem mais .” E seus olhos brilhavam de encontro àqueles dos presentes, hirtos e calados , se nem tanto por medo , pelo menos pelo ato do ouvir e do contar .
Mentiras? Balelas? Isso é que não! Contador de Histórias não mente! O que mente é a mente doente, que pensa ser mentira o que o mentiroso deveras sente.
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