quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (18)

O andarilho errante e o dono da funerária

Seu “O” é gente de grande valor. Trabalhador, bom amigo, bom de prosa e um coração a todo vapor, como seu carro vetusto, que cruza os poeirentos caminhos, quase que diariamente, em direção de umas terras, há pouco compradas, longe das cidades. O seu ramo de negócio não é ou, pelo menos, foi dos mais procurados e invejados pelas gentes, de um modo geral. Mas fazer o quê? Morte também tem que render algum dinheiro, e algumas vezes, dependendo das circunstâncias, de tempo e de lugar, pode-se até fazer fortuna com a dita, nem sempre maldita. Não foi o caso do nosso personagem, mas, parece, que, quanto a isso, Seu “O” não tem muito o de que reclamar, nem o de que duvidar, porque a única coisa certa na vida é mesmo a morte. Miserável ou faustosa ela não perde a hora, nem o lugar de chegar.
De cama feita, ele comprou as terras, foi mexer com a natureza viva e deixou o negócio das funerárias para os filhos tomarem conta. Mas fez diferente dos seus conterrâneos e vizinhos, fundiários conservadores das tradições. Em vez de ceder os bens aos filhos e guardar o uso-fruto até que a morte o leve, conservou os bens e os cedeu aos filhos para que estes conheçam primeiro o suor do trabalho, antes de gozarem dos privilégios que o pai suou para ganhar.
Sua pequena propriedade rural é modelo de limpeza e de inovações, que vai ideando para facilitar a sua vida e a dos animais com que lida no dia-a- dia. Além disso, costuma observar como a natureza faz seu tanto, sem os atrapalhos que os homens vão lhe arranjando com o chamado progresso da civilização e da tecnologia. Plásticos, por exemplo, não admite em suas terras, jogados daqui-prali, ao deus-dará. Enriquecer não está em seus planos, pelo menos é o que se observa pelo andar de sua carruagem, de marca e lataria bastante envelhecidas. Talvez procure, com sua saúde de ferro, envergar e não quebrar, para adiar um pouco mais o encontro com aquela que, por muito tempo, lhe serviu de sócia nos negócios.
Entre tantos assuntos de boa prosa, um dia, Seu “O” fez-me uma confidência sobre o tratamento que costuma dar a uma categoria de gente com quem, comumente, ninguém se preocupa: os andarilhos, caminhantes erradios, sem teto, sem destino certo, maltrapilhos molambentos sem lugar para tomarem um banho, comerem um pão dormido ou repousarem decentemente. Judeus errantes, como se dizia, antigamente, carregando saco às costas, enegrecidos pela fuligem dos carburadores de carros, cada vez mais velozes e desalmados.
Seu “O” gosta de pensar diferente dos outros, não por orgulho, para ser meramente diferente, mas por desafio, por procurar novas soluções para os problemas. E, nisso, tem inteira razão, que missão de gente inteligente é descobrir o que ninguém ainda descobriu ou viu. 
Segundo ele, depois de acurada observação dos andarilhos, no seu vagar a esmo deles, limpam as estradas e rodovias de pedaços de pneus, desgarrados de caminhões carregados acima de legal tonelagem, de lixo jogado, de pedras pontiagudas, de pregos enferrujados e de outros objetos que o dito progresso vem desovando ao longo das vias, motivando acidentes e tantas mortes. De recompensa, mesmo, esses tais vagamundos só encontram a satisfação de poder apresentar a São Pedro as boas ações, com o adiamento de mais tantas cruéis fatalidades, apesar de o santo chaveiro estar pouco ligando com a turma que chega, a cada dia mais numerosa, à sua porta!
Paradoxalmente, Seu “O”, dono de funerárias, comerciante por profissão e parceiro do obituário me disse, um dia: “Todo e qualquer andarilho que morrer perto de onde possuo meu comércio não se enterra como indigente comum. Garanto-lhe caixão distinto e serviço de gente decente, pelo que fazem em favor dos outros transeuntes”
           Pensei: Seu “O” tem, mesmo, um pacto com a morte, sobretudo quando ela se faz próxima da indigência. Mas a pobreza pode bem ser pactuada com a decência, e o mais mínimo benefício, que a ela se pode fazer, enaltece a condição humana para um viver condignamente.

Nenhum comentário: