segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Contos Contados de Minas (20)

Vovô Preto

Seu Francelino Bina era binário, talvez por ter, em vida, valido por dois. Era o Vovô Preto, de idade provável. Nunca teve registro civil, a não ser a partir de quando acharam que ele também tinha o direito de requerer aposentadoria por idade. Os pais, filhos de cativos, convictos da insignificância de sua gente naquela sociedade de senhores, nem se preocuparam em registrar a chegada dos filhos, como era comum naqueles tempos de recém abolida escravidão.
O pai, Gerônimo Bina, detinha, entre outras submissões, a de homem de confiança de meu avô. Quando este ia comprar boi “lá pelos longes do Goiás”, costumava negociar primeiro e pagar depois, na base da palavra dada, do fio da barba, da confiança. De volta com a boiada comprada, providenciava o dinheiro e colocava o “Geromo Bina” na estrada, sobre um cavalo mal arreado, com um saco de notas graúdas, a caminho da Formosa dos Couros, para fazer o pagamento. Os antigos diziam que o “nego Bina” mais parecia um esmoler, pedinte, para não despertar nenhuma suspeitosa atenção e dar conta da empreitada. Da mulher não se tem notícia. Alguns de seus filhos foram o Seu Jacinto, da comadre Justina, o Virgilino, o Juvêncio, que também carregaram o peso e a sina do preconceito, e o Francelino, que mereceria bem mais do que estas relembranças.
Seu Francelino, como nós, os de menor idade, o chamávamos, casou-se no religioso com a Amélia, por obra e graça de padres missionários que, de tempos em tempos, passavam por aqueles lugares menos assistidos pelas bençãos de Deus. Os pobres, e, sobretudo, os negros, não pareciam ser, assim, tão filhos de Deus, como os seus ex-donos e, agora, patrões. A cerimônia na igreja foi ao lado de brancos influentes, como o Lázaro Antônio, morador de casa grande e dono de terras vastas. O fato tem grande importância, pois, muitos anos mais tarde, quando quiseram arranjar uma identidade ao pobre do Francelino, ele nem sabia o que aquilo podia representar. Mas, como aposentá-lo, se não fora registrado? Inventar idade? Foi mais ou menos o que fizeram.
Procuraram o Lázaro Antônio, que o pobre negro lembrava ter se casado no mesmo dia que ele, na mesma igreja do Pântano. Como afirmasse, também, ter, na ocasião, uns dezoito anos, fácil foi descobrir-lhe a idade provável, mês e dia. E, pelo fato de ter sido um serviçal de quantos da família precisaram de sua serventia, meu pai foi designado como patrono de sua aposentadoria.
O que mais Seu Francelino sabia fazer era amansar cavalos e, já, quando fraquejado pela idade, vigiar casas. As pernas longas e finas, além de natural paciência e docilidade, o habilitavam, como quase ninguém, a colocar um cavalo no ponto de boa sela. Animal que passasse pelas rédeas de um igual amansador aprendia a chegar do lado certo das porteiras, na hora de abrir a taramela. Sem cisma, e um mínimo soslaio, na hora de o cavaleiro colocar o no estribo da sela e jogar o corpo para cima dele. Confiava no cavaleiro como confiara no amansador, que lhe ensinara bons modos e a ter confiança nos homens, sem receber ralhados, e relhadas nas pá ou anca desmobiliadas. Cavalos passarinheiros, refugadores contumazes perdiam logo a mania, a ponto de nem se importar quando um coxonilho desprendia da sela, ou um cupinzeiro de terra branca brilhava ao clarão da lua cheia. Se ocorria a venda da alimária, a informação sobre “quem foi o amansador” facilitava o negócio. “Então, eu levo, sem susto”!
Quando alguém tinha que se ausentar por um prazo de tempo mais dilatado, corria atrás do Francelino, para zelar-lhe a casa. Sabia que, quando chegasse, tudo estaria como deixara. E, depois, ele nem era de cobrar. Pagava-se o que se quisesse ou pensasse merecer, sem reclamação ou cara feia dos que comem primeiro para acertar depois. E, no tocante a comida, ele comia pouco e sua tralha era minguada e rudimentar. Duas panelinhas de ferro, dois pratos esmaltados, descascados, dois garfos tortos, enferrujados, mantimentos essenciais, feijão, arroz, lingüiça ou carne de lata, conservada na banha de porco, quando tinha, um vidro com sal, que este era indispensável para dar sabor ao resto, além do alho e cebola, quando coincidia ser o dono da casa mais farturento, ou mão-aberta. Lugar para dormir podia ser um canto qualquer de cômodo vazio, onde espalhava uns feixes de sapé, que cercava com pedras ou pedaços de tijolos. Um trapo de pano de saco servia-lhe de lençol. Se fizesse frio, um poento cobertor “enrola negrinho”, como ditava o preconceito, tapava-lhe os pés, descobrindo-lhe a cabeça, ou vice-versa.
 E, por falar em tapar os pés e deixar à descoberta a cabeça, sua estatura avantajada quase chegava, na juventude, a um metro e noventa. Parecia não esfriar as extremidades, a ponto de algumas pessoas, de línguas compridas, poderem dizer de sua calma atávica e ancestral que “no rastro do Francelino, assava-se uma broa”. Mas isso dizia mais respeito aos resquícios dos tempos de cativeiro em que as maldades de senhores de escravos não mereciam aval.
bem velho, no final da vida e morador de casa popular na cidade, “Vovô Preto” ainda pedia permissão a meu pai para passar algum tempo em uma casinhola abandonada e bem judiada pelo tempo, pelos fundões da Serra Feia. Por ficava alguns meses, pelos tempos das águas. Plantava feijão, arroz, milho e abóbora, que eram de colheita mais rápida e podia servir-lhe de alimento, sem precisar buscá-lo na cidade.
Não sei se preocupado com os destinos do antigo camarada, ou somente para trocar com ele uns dedos de prosa, meu pai, com freqüência, costumava pegar um cavalo e ir visitá-lo. Pretextava ter medo de que lhe ocorresse algum acidente, deixando-se morrer sozinho naqueles socavões de entre morros. Era as únicas visitas que recebia em meses, que a Amélia e os filhos pouco caso pareciam fazer dele. Em uma dessas ocasiões, eu também quis irver a quantas andava a sua já velha figura.
As duas panelinhas de ferro estavam sobre a trempe da fornalha e o feijão fritava no alho e banha, deixando o cheiro exalar bem longe, e remexer com o estômago de quem vinha. Não sei se meu pai escolhia a hora da chegada e a freqüência das  visitas por causa, também, daquele cheiro, que apreciava por demais a “bóia gorda do Francelino”.
O tempo passou, e ele, depois de sentir fraquejar ainda mais as pernas finas, de amansador de cavalo brabo, passou a morar na sua casinha popular da cidade. A Amélia não lhe dava muita atenção, e dizia-se, até, que dormiam em camas e quartos separados. Os olhos de vista cansada, leitosa e tomada pela catarata, ficavam olhando para o tempo, à espera da morte. Minha irmã caçula o levava ao banco para a retirada do minguado dinheirinho da aposentadoria e à compra de algumas calças, camisas e botinas. O resto bastava para a Amélia ou as duas filhas munirem-se do alimento diário.
Quando ainda criança, de braços, minha irmã jamais recusava os carinhos do Francelino, como se pensava, à época, pudesse acontecer com crianças brancas. O preconceito se subentendia até naquela aparente demonstração de afeto, em chamá-lo de Vovô Preto. Minha mãe se lembrava bem de quando meu pai passou a chamá-lo por essa alcunha familiar. Meus ouvidos foram os primeiros a vibrarem com aquele som carinhoso. Meu pai jogava truco com amigos, na casa da, agora, Fazenda Mata dos Angicos, e sem poder pegar-me no colo, por causa da atenção e pressa no carteado, disse à minha mãe, apontando para o morador da casa: “Deixe-o com o Vovô Preto”. E, assim foram o dito e o efeito.
Por estes derradeiros tempos, eu guardava com estima e reconhecimento uma das suas duas relíquias de ferro, que, de tão fina pelo uso dos anos, trazia um rachado nas bordas. Uma solda amarela tornou-a de utilidade novamente, uma vez que, para se fritar um ovo não há igual. Batata frita e feijão gorduroso, então, é um convite a se voltar o pensamento para o ex-dono, rodeado da trempe rústica. A outra panelinha de ferro, como não podia deixar de ser, já tinha herdeira, como prova do reconhecimento que seu ex-dono sempre depositou nos filhos de meu pai, o qual, de bom grado, se fez, dele, patrão, para que pudesse receber o dinheiro da aposentadoria, e, ainda, trazer-lhe um pouco mais de dignidade e alívio ao viver anônimo.

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