Vovô Preto
O pai , Gerônimo Bina, detinha, entre outras submissões, a de homem de confiança de meu avô . Quando este ia comprar boi “lá pelos longes do Goiás”, costumava negociar primeiro e pagar depois , na base da palavra dada , do fio da barba, da confiança. De volta com a boiada comprada, providenciava o dinheiro e colocava o “Geromo Bina” na estrada , sobre um cavalo mal arreado, com um saco de notas graúdas, a caminho da Formosa dos Couros , para fazer o pagamento . Os antigos diziam que o “nego Bina” mais parecia um esmoler, pedinte , para não despertar nenhuma suspeitosa atenção e dar conta da empreitada. Da mulher não se tem notícia . Alguns de seus filhos foram o Seu Jacinto , da comadre Justina, o Virgilino, o Juvêncio, que também carregaram o peso e a sina do preconceito , e o Francelino, que mereceria bem mais do que estas relembranças .
Procuraram o Lázaro Antônio, que o pobre negro lembrava ter se casado no mesmo dia que ele, na mesma igreja do Pântano . Como afirmasse, também , ter , na ocasião , uns dezoito anos , fácil foi descobrir-lhe a idade provável , mês e dia. E, pelo fato de ter sido um serviçal de quantos da família precisaram de sua serventia , meu pai foi designado como patrono de sua aposentadoria .
O que mais Seu Francelino sabia fazer era amansar cavalos e, já, quando fraquejado pela idade, vigiar casas . As pernas longas e finas, além de natural paciência e docilidade, o habilitavam, como quase ninguém, a colocar um cavalo no ponto de boa sela . Animal que passasse pelas rédeas de um igual amansador aprendia a chegar do lado certo das porteiras , na hora de abrir a taramela . Sem cisma, e um mínimo soslaio, na hora de o cavaleiro colocar o pé no estribo da sela e jogar o corpo para cima dele. Confiava no cavaleiro como confiara no amansador, que lhe ensinara bons modos e a ter confiança nos homens, sem receber ralhados, e relhadas nas pá ou anca desmobiliadas. Cavalos passarinheiros , refugadores contumazes perdiam logo a mania, a ponto de nem se importar quando um coxonilho desprendia da sela, ou um cupinzeiro de terra branca brilhava ao clarão da lua cheia. Se ocorria a venda da alimária, a informação sobre “quem foi o amansador” facilitava o negócio. “Então, eu levo, sem susto”!
E, por falar em tapar os pés e deixar à descoberta a cabeça, sua estatura avantajada quase chegava, na juventude, a um metro e noventa. Parecia não esfriar as extremidades, a ponto de algumas pessoas, de línguas compridas, poderem dizer de sua calma atávica e ancestral que “no rastro do Francelino, assava-se uma broa ”. Mas isso dizia mais respeito aos resquícios dos tempos de cativeiro em que as maldades de senhores de escravos não mereciam aval.
As duas panelinhas de ferro já estavam sobre a trempe da fornalha e o feijão fritava no alho e banha , deixando o cheiro exalar bem longe, e remexer com o estômago de quem lá vinha . Não sei se meu pai escolhia a hora da chegada e a freqüência das visitas por causa, também, daquele cheiro , já que apreciava por demais a “bóia gorda do Francelino”.
O tempo passou, e ele , depois de sentir fraquejar ainda mais as pernas finas, de amansador de cavalo brabo , passou a só morar na sua casinha popular da cidade . A Amélia não lhe dava muita atenção , e dizia-se, até , que dormiam em camas e quartos separados. Os olhos de vista cansada, já leitosa e tomada pela catarata , ficavam olhando para o tempo , à espera da morte . Minha irmã caçula o levava ao banco para a retirada do minguado dinheirinho da aposentadoria e à compra de algumas calças , camisas e botinas . O resto bastava para a Amélia ou as duas filhas munirem-se do alimento diário.
Quando ainda criança, de braços, minha irmã jamais recusava os carinhos do Francelino, como se pensava, à época, pudesse acontecer com crianças brancas. O preconceito se subentendia até naquela aparente demonstração de afeto, em chamá-lo de Vovô Preto . Minha mãe se lembrava bem de quando meu pai passou a chamá-lo por essa alcunha familiar. Meus ouvidos foram os primeiros a vibrarem com aquele som carinhoso. Meu pai jogava truco com amigos, lá na casa da, agora , Fazenda Mata dos Angicos, e sem poder pegar-me no colo , por causa da atenção e pressa no carteado, disse à minha mãe, apontando para o morador da casa: “Deixe-o com o Vovô Preto ”. E, assim foram o dito e o efeito.
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