sábado, 24 de março de 2012

Contos contados de Minas (42)

            O filho mais velho

O pai mal sabia ler, soletrava com dificuldade, mas demonstrava rara percepção da importância da leitura. Muito aprendeu na escola da vida, como era costume dizer. Uma fotografia, em álbum perdido por gavetas empoeiradas, ainda o mostra com um jornal aberto diante dos olhos, como prova da vontade que sempre teve de ler como os filhos. Neles apostou em dar a escola que ele próprio não pudera ter quando jovem.
A mãe ainda costuma dizer que ela e o marido perderam tempo em não terem seguido o exemplo de outros casais, conhecidos seus, que foram à escola, em adultos. Eles haviam deixado a zona rural e vieram morar na cidade, para educarem os filhos, e encontrariam tempo para tanto. No caso dela, além de ter tido “menos leitura”, ainda não dispunha de tempo suficiente para ler, por cuidar de tudo e de todos da casa, do marido e da filharada, “que Deus ia enviando” como bem provia.
 Com apenas cinco meses de aula, aos cuidados de Seu Apolinário, na fazenda do Lázaro Lucinda, ela ainda sacrificava o recreio e um pedaço das aulas para a lida das panelas, no preparo do almoço dela, do irmão de criação e de primos próximos. Isto, sem falar no depois do repasto, quando ficava para trás, lavando pratos e complementos, para deixá-los nas condições de serem usados na mesma rotina do dia seguinte.
O pai, por sua vez, no uso de prerrogativa masculina, naquela sociedade machista, pôde avançar um pouco mais nos rudimentos da leitura e da aritmética, por causa das futuras necessidades nos negócios, por mais incipientes fossem.
Quanto ao filho mais velho, se vê nos tempos de moleque, quando não podia, ainda, avaliar o sacrifício dos pais em proporcionar-lhe a instrução que, hoje, reconhecidamente, carrega consigo. Quando o pai chegava da roça, muitas vezes a cavalo, sentava-se do lado da mesa da cozinha, ora com o livrinho de catecismo nas mãos, ora com a tabuada, para o argüir sobre “Quem é Deus?  Quantos deuses há? O Pai é deus? O Filho é deus? O Espírito Santo é deus? Então, há três deuses?” Cabia ao filho responder na ponta da língua o decorado: “ Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra” ;  “Há um deus em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”; “Sim, o Pai é Deus; Sim, o Filho é Deus; Sim, o Espírito Santo é Deus”. E, assim, enfileiravam-se perguntas e respostas para o cumprimento dos deveres religiosos.
Outras vezes, era a tabuada, as quatro operações, como dizia, a de somar, a de diminuir, a de dividir e a de multiplicar, que era cobrada: “1+1, 1+2...; 2-1, 3-1...; 1x1, 1x2..., e assim por diante. A de divisão trazia mais dificuldade em ser tomada, mas era correlata com a de multiplicar. O pai se convencera de que era mais versátil em aritmética. Aprendera mais com a prática e a necessidade, do que com as aulas que tivera com os professores de circunstâncias, Memelo e João Leite. Além das quatro operações, aprendera o necessário das contas de juro. Nisso, ele não admitia vacilos, para não passar vergonha diante dos outros, levar manta, ser passado para trás nos negócios corriqueiros. Mais tarde, quando acontecia os outros filhos trazerem da escola algum problema de álgebra, ele queria resolver com a raciocínio da aritmética e, algumas vezes, acabava chegando ao mesmo resultado, embora com maior trabalho. Para ele, isso constituía importante vitória e motivo de orgulho, já que não tivera o banco da escola formal a favorecê-lo.
Dizia, entre vaidoso e autorizado, que nunca acontecera ”engolir lobeira”. Mas, uma vez, morador da cidade e no final da vida, vendeu em confiança uns burros. O comprador dos animais ficou de receber o produto na fazenda, sob condições. Em chegando, falou com o filho mais moço que comprara os animais e, ali, se encontrava para apanhá-los. Embora achando aquilo estranho, e duvidando de que o pai não poderia ter feito tal negócio, nos termos relatados, ele entregou os animais. Não estava acostumado a discutir a palavra empenhada do pai. bem depois ficou sabendo que o negócio tinha sido outro. O prejuízo se devera mais em ter acreditado na honestidade das pessoas. Assim, não se sentiu diminuído. Do negócio, supostamente mau feito, nunca teve de que se lamentar. As pessoas são o que são, uns honestos e outros nem tanto. Fazer o quê? A humanidade nunca será equilibrada!
O pai tinha orgulho da autoridade, da dignidade que queria passar aos filhos, para que a seguissem e passassem aos mais novos. Ser filho mais velho tinha suas responsabilidades. O estranho era que ele não demonstrava tal preocupação com as duas filhas mais velhas, talvez por pensar que mulher quando se casa, cabe aos maridos cuidar desses particulares de regências.
Mas, e os acertos de conta nas sabatinas catequéticas, ou aritméticas? À época, se o menino ainda trouxesse no currículo o relato desabonador da mãe, quanto à pouca dedicação aos estudos, o ensinamento deixava de ser numérico ou divino. Mandava o filho buscar o relho, que ele pronunciava “rei”, dependurado no portal da entrada para a despensa, e lhe aplicava umas duas boas lapadas nas pernas, ainda desguarnecidas das calças compridas. Não se pode precisar se foi uma, ou se mais de duas, as vezes em que as correias, trançadas de três a quatro lâminas, de couro cru lamberam-lhe as pernocas de moleque acostumado aos pega-pegas, nas brincadeiras dos começos de noite, na pracinha Genoveva.
Entrementes, vinham as lições de vida. Pedia que o filho buscasse a caixa de fósforos. “Tira um palito e quebra”. Ele quebrava. “Agora, dois”. Ele quebrava. “Agora, três”. Ele quebrava. “Agora, quatro”. Ele ia fazendo o que o pai mandava. “O que é mais fácil, quebrar um palito ou quatro?” Diante da resposta, ele retirava a lição: a de que era preciso ser unidos para não se deixarem esmorecer, os  irmãos todos, nas dificuldades. A união fazia a força, dizia, sem ter lido Esopo.
Hoje, os tempos mudaram. Os filhos não podem mais ser tocados, nem empurrados com o dedo indicador em riste ou com o olhar mais severo. Os jovens não sofrem os rigores da criação ancestral. Aprendem mais, desafiam mais e, mais soltos, têm a liberdade da contestação. Os excessos são tidos em conta da idade. Orgulhosos do que aprendem, podem dizer que sabem mais do que os mais velhos. Não pensam que, por força da máquina do tempo, os hábitos dos pais, “ignorantes” dos bons modos, existiram antes deles, que copiavam, por sua vez, os ensinamentos dos que os antecediam. Reconhecer os progressos do ontem nunca haverá de ser fácil para quem vive os avanços do hoje. Entretanto, a humildade jamais deixará de ser qualidade, considerando os que sofreram as agruras do crescimento evolutivo. O progresso sempre será a soma das conquistas e derrotas passadas.
       Assim, os antigos foram formando os fundamentos dos valores que bem ou mal procuravam imprimir na consciência dos filhos. De sua experiência de viver, ou de ouvir dizer pela boca dos mais velhos, foram fazendo sua história, com os acertos e os desacertos se somando, no cômputo das reminiscências.

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