domingo, 4 de março de 2012

Contos contados de Minas (39)

Mentiras e verdades 

“Fica decretado que agora vale a verdade” (Thiago de Mello)

O pai deixara, também, de herança a ojeriza pela mentira e buscara a verdade a mais límpida em tudo o que ouvia e fazia, sem perdoar o mínimo deslize que fosse, até mesmo naqueles, que consideravam o meio copo de água, cheio pela metade. Esse proceder faz com que sua mais próxima descendência ainda leve às últimas conseqüências o hábito de taxar de mentiroso qualquer pessoa que se desvie do mínimo milímetro da precisão, tida como próxima vizinha da perfeição. A tendência ainda é considerar os otimistas como exagerados e mentirosos. Daí, subtender e valorizar o pessimismo. Antes diminuir do que exagerar.
Essas sentenças gratuitas, sobre quem não reza pela mesma cartilha dos costumes, chegam até ao cansaço. É um tal de se ouvir a torto e a direito juízos como “fulano é mentiroso”, “sicrano não tem como ser mais lorota”, “beltrano é o pai da mentira”! A bem da verdade, isso leva a pensar que mentiroso é quem acha que os outros é que são os arautos da mentira, como o autor, por exemplo.
Por mal dos pecados, um dos filhos, deu para professar artes das letras e a cometer algumas veleidades literárias. No dia em que deu para analisar aquela tendência dos familiares em distribuir a mancheias as alcunhas de mentirosos a quantos não comungavam de suas supostas verdades, a casa quase caiu. Além do mais, o suposto literato ainda fez um elogio à mentira, ao dizer que preferia ouvir a verdade dos outros para transformá-las em mentiras, ou, mesmo, as supostas mentiras, para torná-las ainda mais mentirosas.
Aliás, ele ainda foi mais longe, em suas elucubrações, ao querer dar uma de professor e afirmar que a ficção nada mais é do que uma mentira com formato de verdade. Que fato contado ou escrito, por mais que procure ser testemunha da verdade, não resvala pelos meandros da mentira, tão somente por ter passado pelo filtro tendencioso de seu autor! Da literatura, o que se espera é a verossimilhança ou coerência diante do fato narrado sob capa de verdadeiro. Até memórias são tendenciosas. Salvam-se dela as biografias e  não as autobiografias.
Na vida real, tem-se a sensação de que a mentira é que comanda o mundo e seus negócios. Diz-se que aquele que não sabe mentir, nas palavras, nos atos e no resto, não vence na vida. As conseqüências não nos atingem, até porque quem mente sabe que também pode ter sido vítima de outra mentira. Um alto funcionário, assessor de governantes, para os garantir de pé, estampa o pomposo título de porta-voz. Tem como missão a de desmentir as mentiras desses partidários de louvaminhas, ditas sem muito pensar, ou, simplesmente,  para se deixar no ar, proposital, um prognóstico para quem gosta de especular as intenções do que será desmentido mais tarde.
Livros há sobre as teorias do discurso que tratam dessas artes e manhas. Muito provável já existirem teorias, ao gosto maquiavélico, com títulos tais que “A arte de mentir” ou “Mentir e desmentir”. Mente-se em tudo, por tudo, no todo e no faz de conta. É mentira para todos os lados. Ouve-se, até, pessoas afirmarem a vida humana é uma enorme mentira. Um sonho, talvez.
Quem é que ao ser perguntado, de maneira fática, “tudo bem?” responderia: “Não, tudo vai mal comigo”, e passasse a debulhar verdades de todos os males que o acabrunha? Quem é que, ao chegar a casa, depois de uma noitada prazerosa, iria contar onde e com quem esteve, só para provocar o desprazer ou assistir à discussão que não levaria a lugar nenhum? Que marido ou mulher, os mais diletos, acreditariam que o cônjuge estava numa tertúlia filosófica, discutindo a solução da fome que grassa o planeta? Quem é que deixaria de oferecer flores para encobrir uma mentira a alguém que, mentirosamente, fingiria acreditar que aqueles mimos traduziam a expressão da verdade?
Assim, quando se pensa, tautologicamente, que não se deve mentir, mas nem pelo tanto dizer a verdade, tudo está conforme ao certo e ao errado da vida. Depende de quem faz as contas, embora o sofrimento de muitos possa chegar por não saberem mentir, e só procurarem em tudo a verdade dos fatos.
Por que, então, o mentiroso sempre levar a melhor parte, e o amigo da transparência ofender a todos, de todos os lados, tornando as pessoas tristes, inclusive ele próprio por ter sido sincero em demasia nas afirmativas e nas respostas? Por que há momentos em que dizer a verdade traz infelicidade, e, mesmo assim, precisar mentir nas palavras, nos gestos, no olhar, na face e no resto? Viver sem mentira seria viver na verdade? O viver certo é o errado, ou o viver errado é o certo? Certo ou errado, mentira ou verdade, sim ou não, depende da situação. Duro com duro não faz bom muro. Nada subsiste sem o seu oposto. Tudo é relativo, até o superlativo, que do absoluto nasce o luto. Simplíssimo.
Entretanto, a pior mentira é filha da vaidade? Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Por que, também não, “mentira das mentiras, tudo é mentira”?. As pessoas procuram ser o que não são. Mentem até na sua falta de espontaneidade, e têm vergonha de ser o que são. O pacto com o social é uma deslavada mentira. Os elogios quase sempre são carregados de falácias, e quem os recebe finge neles acreditar. O ridículo se mascara de mentira.
O pai que acreditava em tais pensares, como, assim, os ainda viventes de um tempo que já não mais existe, parece não estar com a razão, a ponto de um de seus numerosos filhos se lamentar: “nosso pai não nos ensinou a mentir”. Ninguém é mentiroso? Cada um tem sua verdade, esteja ela vestida ou não de descarada falsidade? O que importa é “jouer la comédie”, fazer de conta? “Engana-me que eu gosto”, dizem os perspicazes amantes do social. O olhar, os gestos, o corpo passam a traduzir a enganação. Como a sociedade é astuciosa! Antes não mentir, mas também não precisar dizer a verdade! Escutem, só:

Nosso pai não nos ensinou a mentir,
o ser desonesto, ora tão manifesto,
a trapaça nos combinados acertos,
o olhar de lado, dissimulado, incerto,
o esconder-se de si, fingindo-se esperto,
o viver o diário, assaz encoberto,
no descompasso desse árido deserto.

Pugnou-se, nosso pai, pelo bem proceder, 
e nos doutrinou o andar correto,
em um mundo errado e mal dito,
teúdo e manteúdo, dado como certo.
Disso, por certo, nosso irresoluto conflito
                  a nos deixar, assim, desorientados, aflitos.

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