segunda-feira, 26 de março de 2012

Contos contados de Minas (43)

Charlatão e charlatanice

Segundo consta dos dicionários, como o do Houaiss, o significado da palavracharlatão” é: “que ou aquele que se apresenta nas praças ou nas feiras para vender drogas e elixires reputados milagrosos, seduzindo o público e iludindo-o com discursos e trejeitos espalhafatosos (diz-se de mercador ambulante)” O mesmo dicionáriocomo sinônimo à palavrachatim e enganador” e pede para ver a antonímia de trapaceiro. A etimologia vem do italiano “ciarlatano” (ano 1498) “aquele que se passa por aquilo que não é”. Mais adiante diz o Houaiss: “...o vocábulo penetrou no português pelo francês “charlatan (1572) ‘saltimbanco, palhaço’, (1668) ‘impostorou pelo espanhol “charlatán” (século XVI). Em todas as acepções do vocábulo, fica nítido o seu caráter pejorativo, de alguém enganador, trapaceiro.
Como interpretar, então, a gente mais antiga que dizia, com orgulho, ser o tetravô charlatão, desconhecendo o sentido desabonador na tal palavra, uma vez que o ancestral, no caso, “curava”, de boa , as pessoas que o procuravam, de algum mal, curável ou incurável, que os afligiam. Com freqüência, a fama corria de que fulano de tal conhecia o poder das ervas e raízes na cura das variadas doenças. As pessoas passavam a procurar o milagreiro, cada vez em maior número, e ele não podia dar-lhes com a porta no nariz. Assim, o pobre carregava o adjetivo de “charlatão” e seu desgaste através dos tempos. As palavras, para aquela gente, traziam consigo a representação, como o significante carrega em si o significado. O conceito se materializava, o coisa-ruim e suas danações se faziam presentes no som da pronúncia.
Pelo que se conta, o antepassado “charlatão”, passou para alguns próximos parentes, diretos ou indiretos, o conhecimento das plantas que curam, nome, aliás, de publicação recente de grande divulgação, que retoma a arte de descobrir seus princípios ativos. Filho de charlatão sabe-se charlatão. Evidentemente, ninguém reivindicava para si o sentido maldito do adjetivo de quem pratica o “charlatanismo” ou enganação. Na prática fazem pior as publicidades escrita ou falada do que o pobre raizeiro, que, em praças públicas, se fazia abraçar por cobras, com o intuito de chamar a atenção para seus remédios milagrosos. Mesmo a expressão cunhada “falar mais do que o homem da cobra” contribui para diminuir ainda mais o papel que outrora exerceu aquele que procurava minimizar o sofrimento de quantos o procuravam. Porque será que o símbolo da farmácia é uma taça dando de beber a uma cobra? Gastava-se tempo e paciência em procurar na Natureza ramos e raízes, ciência menos exata que vinha sendo transmitida de pai para filho, ou filha. Nestas artes, não se fazia distinção entre homens ou mulheres. Talvez, até, com vantagem para o feminino. As brumas de Avallon podiam explicar muitos dos mistérios destes aspectos tão importantes da vida humana.
Do Zeca Joaquim se ouvia falar coisas boas, nada de trapaças. Até de um fato que se falava a boca pequena, por se tratar da cura de um câncer de seio em sua própria mulher. A materialização de tal palavra trazia consigo a própria maldade da doença, hoje tão “vulgarizada” pela propagação dos meios de comunicação. O tetravô, segundo relato, andava preocupado, pelas beiradas da casa sem saber como agir diante daquele mal da mulher, a “Sá Mariana”. Sabia que seus remédios valeriam pouco para tão grave doença, mas se via na encruzilhada. Ou agia ou perdia para sempre a esposa. Resolveu agir, depois de muito rodar pelos cantos da residência e tomar a drástica atitude. Disse à mulher que lhe restava uma chance de sobrevida e que esta seria a mais dolorida que se poderia imaginar. Providenciou, como era de costume, para dores tão lancinantes, longe dos alívios de anestesias, um pano que colocou entre os dentes da esposa, como, também, se procedia com respeito aos acometidos de epilepsia. Foi à fornalha, onde crepitavam brasas e incandesceu o cabo de um garfo, com o qual queimou o seio da mulher. Narra-se que a “Sá Marianaainda viveu por uns bons pares de anos.
Masmuitos e muitos remédios estranhos por , na China e pelo mundo em geral, sem contar as crenças e simpatias. Chifre de boi queimado e depois raspado, misturado com vinagre, para expulsar lombrigas; picumã misturada com café, para vermes; tártaro, veneno eficaz de matar rato, dado na dosagem adequada para curar epilepsia, croup ou difecteria; infusão de estrume seco de eqüino, para.fazer sair o sarampo; sebo de carneiro para untar as juntas, nas dores nos ossos e reumatismo; banha de capivara, carne de tamanduá, carne de onça, para curar dores nas articulações, e tantas outras práticas que um só manual seria insuficiente para o inteiro apontamento.
O que dizer das superstições, das simpatias? Chocalho de cascavel, aproximado das têmporas de quem tem “ar” (aro) no olho é capaz de desanuviá-lo. O que dizer das benzeções, para afugentar as cobras malignas, peçonhentas, cobreiro brabo, mau olhado, olho gordo ou quebrante. Assim, quem benze as cobras, só deve afastá-las para bem longe, sem as matar, já que tem o poder de “conversar” com elas, segundo ensina um convicto benzedor. Dessas convicções, é que nasce a cura, nem tanto do efeito do remédio prescrito. “A fé transporta montanhas”. O poder da mente supera o físico, o psíquico governa o somático e o milagre é o povo quem o procura. 
Diante de tais certezas, ou de tantas incertezas, como as da vida ou da morte, há que, muitas vezes, se tomar atitudes extremas. A história está cheia de casos em que a razão costuma ceder lugar a crenças e crendices, como recursos de se tentar agarrar a vida. “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia.”
           Do charlatão Zeca Joaquim, alguns descendentes procuram, ainda, nas terras e nos ramos de um cerrado cada dia mais ralo, alívios para algumas dores, e mantêm vivos os mistérios, afastados dos interesses econômicos de laboratórios, comumente, alienados da realidade do povo.

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