terça-feira, 1 de maio de 2012

Contos Contados de Brasília (5)

Meus livros


Muito me agrada visitar os livros que, com o passar do tempo, fui lendo ou simplesmente folheando, na esperança de voltar a relê-los algum dia. Quase sempre me reservam surpresas agradáveis. É sempre uma volta ao passado, por meio de uma palavra sublinhada, uma observação feita à margem, uma citação, um trecho que deixei marcado para rever com mais vagar e cuidado, uma marca qualquer no papel, uma relembrança de situações, uma busca da intertextualidade e, sobretudo, uma perícia nos fragmentos e tiras diversos de papéis avulsos que serviram, certamente, para marcar a página, em interrupção brusca de leitura. Muitas vezes, ao ser esta retomada, aqueles sinais eram deslocados para outras partes do livro, de onde passavam ao esquecimento.
Gosto de ficar me perguntando, ao me deparar com tais papeizinhos, o que é que este está fazendo aqui? De vez em quando o achado dá o que pensar. Levo tempo para chegar a uma solução das indagações, ou, como acontece, muitas vezes, não encontro explicação nenhuma, sem, pelo tanto, desprezá-los em um saco de lixo.
Não li todos os livros que perfilam nas estantes. Longe disso. Antes de comprá-los, percorri, evidentemente, a pertinência do assunto para enriquecimento de algo em que estava trabalhando, ou que tencionava basear-me para algo ou, mesmo, garantir-me em assuntos correlatos. Antes de recolocá-los nas prateleiras, tornava a vistoriar algumas de suas páginas, e depois não mais os procurava, na esperança, é claro, de encontrar momentos de voltar a eles.
Por isso é que ficam ali parados, em ou deitados, um tanto esquecidos? Nem tanto, que sempre os visito, mesmo que com o olhar ou a vontade de tocá-los. Em sua maioria, os fito, demoradamente, mas não os vejo. Outras vezes, eu os retiro para uma ou mais olhadelas de curiosidade e expectativa. O que será que vou encontrar de interessante nesse aqui?
me perguntaram se leio todos aqueles livros que ostento. Se não os leio, como parece, então porque guardá-los, ocupando espaço, enchendo-se de pó, necessitando serem espanados com freqüência? Não seria melhor levá-los a um sebo, vendê-los ou doá-los, para que outros, amantes de livros ou de sebos, os possam garimpar e, quem sabe, lê-los, relê-los, folheá-los, amá-los, à procura de alguma surpresa, esquecida em algum recanto de página? Livros que pertenceram a outros leitores também têm seus atrativos e espantos, apesar de abandonados, por insistência, quem sabe, de donas de casa exigentes com a limpeza dos espaços, por considerá-los incômodos e depositórios de poeira?
Já ouvi no rádio uma professora afirmar que seus alunos gostam de consultar os livros nos quais ela fez marcas e comentários no momento quente da leitura. Assim, como nada no texto é inútil, também não deverão ser os sinais de anotações deixados em suas margens e espaços brancos.
Lembro-me de um passado. Uma mudança, transferência de residência, pelos idos de Paris, praça Edmond Rostand, 5º andar. Tratava-se do apartamento de uma velha senhora, nobre decadente, que vivia na companhia de um filho incapaz, para não dizer fraco das idéias. Por força de exigências do serviço social, tinha que ser levada, meio a contra-gosto, para um asilo do governo. O local de onde se mudava estava, naquele dia, em pouco mais em desordem do que habitualmente, segundo relatos de vizinhos. Freqüentemente, eram solicitados a prestar algum tipo de ajuda aos dois moradores, à mãe, sobretudo, que ficava quase sempre sozinha, prisioneira de uma cadeira, assistindo os pombos a entrar pela janela aberta. O excesso de baton sobre os lábios escondia a falta de asseio pela casa e em si mesma. Enquanto isso, o filho vagabundeava pelo bairro, metido em seu surrado e sujo casado bege. No centro de um dos quartos, já desfeitos pelos agentes do governo, livros foram amontoados, como se faz a entulhos ou tijolos quebrados.
Eu alugava um quarto de apartamento do segundo piso e ofereci-me a dar uma mão à remoção da pesada senhora, operação a ser feita por meio de uma maca. Não havia elevadores no prédio, datado dos começos do século XIX, mas as escadarias bem amplas, com degraus de madeira revestidos de tapete vermelho,.facilitariam o translado.
Enquanto aguardava o momento de colocar mãos à obra, dei uma vistoriada naquele monte de papéis, à cata de alguma novidade e recados dos velhos tempos parisienses. Deparei-me, então, com um pequeno envelope delicadamente confeccionado, sobrescrito à pena e tinta preta. Abri-o, maquinalmente, e vi que continha uma carta acompanhada de duas fotos de moça de olhares lânguidos, apaixonados, à moda da Belle Époque. Guardei-os comigo, sabedor de que, aquele amontoado, de mais papéis do que livros, iria para a incineração ou para algum sebo qualquer, onde passaria a fazer parte do insensível esquecimento. Mais tarde, em circunstâncias favoráveis, julgaria se devia ou não lê-la, preservando, evidentemente, o anonimato da autoria.
Conservo-os como lembrança, e, de vez em quando, ainda, remexendo nos meus livros e guardados, deparo-me com o envelope, percorro a carta à procura de mais alguns suspiros inaudíveis, daquela alma apaixonada que a ditou. Como a data não está legível, suponho que foi escrita durante a Guerra de 14-18. Teria sido uma carta de amor, a ser enviada para o amado que se encontrava na frente de batalha, e, que, por algum revés do destino, não fora enviada? Voltara o destinatário da guerra e justificara, com sua presença amorosa, o não envio da missiva? Ficara, simplesmente, guardada entre páginas de livros que a soltaram sobre o monturo daquele quarto desnudo?.Os personagens já não mais existem nesse mundo, e não haverão de culpar-me pela leve indiscrição. Era ela, provavelmente, a senhora toda disforme que eu ajudara a descer pelas escadarias de um prédio nas proximidades da Sorbonne. Mistérios da vida vivida em seu tempo!
Assim, sempre dizer que o meu relacionamento com os livros mantém um saibo sensorial. Eu os pego nas mãos e deles me farto, mesmo não os lendo ou relendo. Há deles que, até, aproximo do nariz para sentir o aroma do papel. Eu os visito sempre, a não ser quando viajo para longe do meu quarto. Isso porque lhes reservo um cômodo, no apartamento, o “quarto dos livros”, tal como existem o quarto do casal, o dos filhos, o das filhas, o do som e da televisão. Eu os olho e tenho a impressão de que eles também me olham, se perguntando: será minha a vez de merecer atenção? Certamente estarão dizendo: “Ele não sabe o que trazemos esquecida em nossas folhas, uma entrada de teatro dos velhos tempos da Cité Universitaire, quando o amigo, especialista destas artes, o convidava a ver peças de sucesso, raramente levadas nas salas mais consagradas e, nem por isso, desmerecedoras das artes”.
Não é que dia desses, encontrei um bilhetinho com dois nomes e uma data! Era um número de telefone e uma solicitação para retorno de chamada, direcionados ao colega de quarto, daqueles já longes tempos do quartier latin. Certamente depois do recado dado, eu tenha aproveitado aquela fita de papel para marcar as folhas do livro revisto. O nome me fez saber que por aqueles idos de maio de 1973, um diretor de teatro passara por Paris. Há quase 50 anos atrás! Rasgos de lembranças, réstias de luz nesta memória um tanto rota!
Ainda uma adenda. Recentemente, em visitas a países argentinos e chilenos, fui tomado de um desejo de reler livros sobre o “cavaleiro de triste figura”, o Dom Quixote. Comprei algumas estatuetas que passam a ilustrar-me as narrativas de Cervantes sobre as aventuras do engenhoso fidalgo da Mancha. Uma septima edición en “Collección Libros de Bolsillo Z”, com anotacción y un índice onomástico y de situaciones, em dois volumes, números de edición 5.033/5034, da Editorial Juventud, S.A. Barcelona, 1971. Na folha de rosto, “offerts à Paris, le17 octobre, 1973, mercredi”, do meu inesquecível amigo e companheiro de quarto do tempo Quartier Latin. Este, um dos livros que mais me convidam para uma entrada em suas páginas.
Pelo mesmo caminhar, minhas estatuetas recentes me levaram a uma edição do Dom Quixote, em português, da Nova Cultural Ltda, de 2003. No interior deste último, encontro um artigo do Correio Braziliense, p. 34, domingo, 10 de fevereiro de 2008, de página inteira, ladeando fantástica figura do famoso cavaleiro andante, e outra foto de menor tamanho do personagem, subintitulada “Dom Quixote vive aqui”, de autoria de Conceição Freitas. O achado causou-me arrepios de emoção, ao reler a não menos fantástica experiência de Oswaldo da Silva Mendes, que mandou erigir, em morro alto de sua propriedade, uma colossal estátua de 12 metros de altura, do herói cervantino. Sem mais dizer, a surpresa vem a cada leitura do texto e revela sempre novo discurso, já que a obra de arte nunca fenece e sempre é atualizada e atualíssima, mesmo tendo sido escrita no ano de 1604.
           E meus livros continuam, pois, aqui, às minhas costas, à minha frente, ao meu lado, olhando-me de cima, de baixo, quando me assento na cadeira, para enfrentar a tela do computador! Que continuem me reservando surpresas ao explorá-los, que gostaria fossem, ainda, por muito tempo. Se não os leio, os revejo, quando menos esperam. Aguardem-me, que continuo vivo e com sempre mais vontade de revê-los e revivê-los!

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