segunda-feira, 21 de maio de 2012

Contos contados de Minas (45)

Manuscritos, lousa e lápis de pedra

Não apenas Gutemberg conhecia bem as dificuldades, talvez as impossibilidades para muitos de ascenderem ao conhecimento, à leitura e à escrita, em função de não disporem dos instrumentos democráticos que levavam a esses bens. Desde a invenção da tipografia, anos antes do descobrimento do Brasil, o livro vem sofrendo mudanças, do papel ao pano, do plástico ao cristal líquido, das telas de computadores, Ipeds.
No início da imprensa, despendia-se tempo elástico na produção de um livro. A Bíblia foi aquele que teve a primazia da facilitação da leitura, proporcionada pela nova tecnologia. Até os anos trinta do século passado, a menos de cem anos de agora, quantos livros e quantas casas de edição existiram, só no mundo luso? Entretanto, no interior do Brasil, ainda se usou o manuscrito, em salas de aula, por essa mesma época.
Minha tia guardava a sete chaves, de um passado não tão distante assim, um desses livros escritos a mão, que utilizou na escola rural de sua região. Por diversas vezes, em criança, eu pude manuseá-lo com interesse e curiosidade, para me dar conta, em adulto, de como grande parte de brasileiros aprenderam a ler. Datado de antes de 1943, o referido manuscrito, que guardo comigo, como lembrança e peça de museu a ser mostrada aos descendentes, apresenta as mais diversas grafias. Algumas caligrafias, de tão bem cuidadas, outras grafias nem tão legíveis assim, que prepararam as crianças para decifrarem, como se pensava naquela época, documentos e cartas, chegadas dos mais diferentes endereços.
Afirmar que a grafia manual estará fadada ao desaparecimento seria como acatar também o desaparecimento do livro de papel. Entretanto, nem todo mundo grafa bem, por mais esforço que se possa fazer. Manuais didáticos separam a caligrafia da eugrafia, e esta da disgrafia, para conceituarem a bela, a boa e legível, e a grafia ilegível, por péssima. Daí, poder-se concordar com psicólogos que procuram estudar as personalidades, com base em seu produto gráfico-manual. A grafologia não deixou de ser uma ciência, que, ainda hoje, tem serventia, até para deslindar os mais escuros mistérios da alma, e elucidar crimes.
O tempo passa e com ele os livros manuscritos. Em criança do interior do Brasil, há menos de meio século, remexi em guardados de meu pai, e desvelei uma lousa e um caco de lápis da mesma pedra polida, que usava para seus primeiros rudimentos de escrita. Encontravam-se, ainda, em um pequeno e surrado embornal, do tamanho adequado ao da lousa, uns quinze centímetros por vinte, que os alunos carregavam dependurados ao ombro, para exercitarem nas contas que o professor prescrevia. O lápis, sobretudo, exigia grandes cuidados para não se deixar cair e quebrar. Antes de usá-lo impunha-se saber pegá-lo com os dedos posicionados próximos à extremidade inferior, sem forçá-lo demasiado. Como livro de leitura, o manuscrito. Em alguns lugares, a rigidez dos professores se traduzia no uso da palmatória, cuja etmologia lembrava a palma das mãos onde era aplicada. Alguns alunos, com mais dificuldade de aprendizado, ou menos dedicados às artes da leitura e escrita, a experimentaram para nunca mais se esquecerem. (Esse malfadado instrumento, por tão cruel, moral e fisicamente, veio a servir, tempos depois, a torturadores de pessoas que não comungavam das ideologias vigentes).
A era dos computadores e da digitação viria, supostamente, apagar a possibilidade de se usar a grafia manual. Cartas escritas e enviadas em envelopes serão coisas do passado, presentes apenas nas páginas de romances, quando se deixavam abrir com espátulas prateadas para revelarem mensagens carregadas de emoção e amor, avidamente lidas, relidas e guardadas em relicários de saudades. Felizmente, professores ainda insistem em uma eugrafia, e para isso é preciso manusear bem lápis. Computadores portáteis, apoiados sobre joelhos, em sala de aula, tablets, Ipods e Ipeds estão aí para desafiá-los. Fala-se na falência dos livros impressos. Estes, segundo alguns, jamais deixarão de ser admirados, amados cheirados, pois que carregados de odores, que somente os leitores sabem identificarem. Quem não gosta de dizer, com imenso prazer: “esse livre é meu e dorme com meus sonhos”?
A escrita manuscrita, apesar de exigir todo o esforço para ser lida, muito ainda pode nos ensinar de valores das artes manuais e da expressão de nossa personalidade. Calcamos, nela, nossa alma, nossas idéias e sentimentos. A informática, por mais que se esforce, não deixará de ser fria, mesmo que facilitando nosso dia-a-dia. O calor da alma, porém, vem do fundo do peito, refletido nas páginas de um livro de papel e tinta, tipografado ou manuscrito.
           Dona Inês, ex-moradora de outra beirada das Minas, dos altos de seus noventa anos bem vividos, ainda guarda, orgulhosa, sua lousa de ardósia, e o toco de lápis da mesma lava, para mostrá-los aos quantos curiosos sobre os velhos tempos de escola de roça. Lamenta, contudo, ter perdido seu manuscrito. Mas a saudade dos primeiros tempos a recompensa de boas lembranças.

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